AS PAIXÕES, DOENÇAS ESPIRITUAIS
Desviando de Deus as diferentes faculdades)) de sua alma e de seu corpo e orientando-as para a realidade sensível para aí buscar o prazer, o homem faz nele nascer as paixões ( pathe ) ainda chamadas de vícios ( kakia ).
Essas, afirmam unanimemente os Padres, não fazem parte da natureza do homem. “Elas não foram incluídas na imagem de Deus“, lembra S. Basilio. “As paixões não foram criadas no princípio com a natureza, caso contrário fariam parte de sua definição”, escreve S. Máximo. Elas são, diz, S. Nicetas Stethatos, “absolutamente estranhas, de modo algum próprias à natureza da alma”. S. Isaac, o Sírio, nota no mesmo sentido: “As paixões vêm se agregar (…). Porque a alma é naturalmente impassível. (…) Cremos que Deus fez o homem a sua imagem: impassível. Logo quando (a alma) se deixa ir aos movimentos apaixonados, ela está, de acordo com todos, fora de sua natureza. É que afirmaram aqueles que nutrem a Igreja. As paixões entraram na alma em seguida, e não é justo dizer que são próprias da alma, quando esta é conduzida pelas paixões. Logo, é claro que a alma é levada por aquilo que lhe é exterior e por aquilo que lhe é próprio”. “O estado contra a natureza (da alma) é o movimento apaixonado. É o que diz o divino e grande Basilio. Quando a alma está no seu estado natural, ela conduz sua vida para o alto. Quando ela está fora de sua natureza, ela se encontra em baixo sobre a terra. Quando ela está no alto, ela se descobre impassível. Mas quando a natureza está fora de sua ordem própria, então as paixões estão nela”. Ele escreve também, usando um vocabulário médico que se notará: “É claro que a saúde existe na natureza antes da irrupção da doença. Se assim é — e é a verdade mesmo -, a virtude está naturalmente na alma. E o que vem a seguir está fora de sua natureza (…). Do momento que é reconhecido por todos que é a pureza que é natural à alma, deve-se afirmar que (as paixões) não existem naturalmente. Pois a doença é segunda, ela vem após a saúde.” Esta última passagem segue de perto uma nota de Evagrio: “Se a doença é segunda em relação à saúde, é evidente que a malícia também é segunda em relação à virtude.” S. João Climaco afirma por sua vez: “Não há, por conta da natureza ela mesma, nem vício nem paixão na natureza (do homem); Deus, com efeito, não é o criados das paixões”; “Deus não nem o autor, nem o criador do mal; se enganam aqueles que afirmam que (as) paixões são naturais à alma.”
As paixões por conseguinte aparecem como o produto de uma invenção do homem ele mesmo, consecutiva ao pecado ancestral. S. Macário ensina: é “pela desobediência do primeiro homem (que) recebemos em nós um elemento estranho à nossa natureza, a malícia das paixões; virando hábito e predisposição arraigada, ela se torna como nossa natureza.” S. Máximo escreve também: “Afirmo, por ter aprendido do grande Gregório de Nissa, que elas foram introduzidas e como que enxertadas na parte irracional da alma por causa da queda fora da perfeição. É por ela que em vez de portar a imagem bem-aventurada e divina, desde o momento da transgressão o homem se pôs a assemelhar-se claramente e visivelmente aos animais sem razão.” As paixões são, dito de outro modo, o efeito de um mal uso do livre arbítrio do homem, o fruto da sua vontade pessoal dissociada de sua vontade natural conciliada com Deus. É assim que S. Isaac escreve: “As paixões vêm portanto se agregar, e a causa desta adição é na alma mesma.” S. João Damasceno precisa: “Tudo que fez Deus é muito bom, tudo aquilo que persiste tal qual ele criou é muito bom. Aquilo que separa voluntariamente do natural e vai contra a natureza se torna mal. Tudo que serve e obedece ao Criador é segundo a natureza. Quando uma criatura, voluntariamente, se revolta e desobedece a seu criador, ela estabelece o mal nela mesma.”
Enquanto elas são constituídas pelo desvio das faculdades de sua meta divina normal e o uso contra natureza destas em vista da obtenção do prazer sensível, as paixões são movimentos desregrados e não razoáveis da alma: “A paixão”, diz S. Máximo, “é um movimento contra natureza da alma, decorrente de um amor não razoável ou de uma aversão não refletida por um objeto sensível qualquer”.
Por esta razão, mas também por causa de todas os outros problemas que lhes são inerentes e várias desregras que elas produzem na alma, as paixões podem ser consideradas como formas de loucura. S. Atanasio de Alexandria fala assim dos “homens caídos na loucura das paixões”. S. João Crisóstomo afirma: “Os vícios não são nada mais que loucura”, e explica adiante: “Cada uma das funestas paixões engendradas em nossa alma produz em nós uma espécie de bebedeira (…) e obscurece nossa razão. Pois a bebedeira nada mais é que a perdição do espírito fora de suas vias naturais, o desvio da razão e a perda da consciência. O Eclesiastes já escrevia : “Me empenhei a reconhecer o mal por uma loucura (aphrosyen)”. E é frequentemente que os Padres apresentam a vida no pecado e as paixões como estados de loucura.
Mais frequente ainda é o termo que utilizam para designar as paixões e os pecados habituais que daí procedem. O termo grego pathos que designa a paixão faz lembrar por sua raiz comum com os termos pathe e pathema que significam “doença“; a aproximação entre estas noções sempre está praticamente implícita, mas muitas vezes os Padres a estabelecem implicitamente. Escreve por exemplo S. Doroteo de Gaza: “Pela prática do mal, adquirimos um hábito estranho e contra nossa natureza, contraímos uma espécie de doença crônica. (Instruções Espirituais XI, 122). As paixões são “as doenças da alma (psyches nosoi)”, afirma mais claramente Clemente de Alexandria. (Protreptico XI, 115, 2) S. Ammonas os qualifica do mesmo modo em suas Cartas (XII, 5). S. Nicetas Stethatos fala da “doença das paixões” (Centurias II, 22). S. Macário da mesma forma em Homilias XXV, 2, 1, e assim escreve: “A alma caiu desde a transgressão do mandamento na doença das paixões”; “Deus sabe a que males a alma está submetida, como é impedida de realizar as obras da vida e como jaz presa à terrível doença das paixões desonrosas”. Evágrio qualifica “a malícia”, em oposição à virtude e considerada por conseguinte como o conjunto das paixões, de “doença da alma” (Capítulos gnósticos I, 41). S. Máximo ensina: “Aquilo que a saúde e a doença são em relação ao corpo de um ser vivo (…) a virtude e o vício ( são) em relação à alma (Centurias sobre a caridade IV, 46). E S. Isaac o Sírio escreve da mesma maneira: “Assim como com as coisas do corpo do mesmo modo com as coisas da alma. Se, portanto, a virtude é naturalmente a saúde da alma, as paixões dela são a doença” (Discursos ascéticos 83). “Se ela não se purifica das paixões, a alma não se cura das doenças do pecado”, nota ainda. “Existem muitas doenças da alma”, escreve Orígenes antes de enumerar a título de exemplo diferentes paixões em Homilias sobre os Números (vide também o Tratado da Oração). Estes são apenas alguns exemplos entre aqueles que veremos examinando cada paixão.
PAIXÕES: A FILÁUCIA; A GASTRIMARGIA; A LUXÚRIA; A FILARGIRIA; A PLEONEXIA; A TRISTEZA; A ACEDIA; A CÓLERA; O TEMOR; A VAIDADE; O ORGULHO