O corpo é o veículo de uma partícula da Alma do Mundo caída neste plano horizontal de existência material, de acordo com a providência divina. A capacidade mental, sentimental e sensorial necessária para esta ex-sistência, para o aparente trânsito passageiro neste plano de existência, apoia-se em parte neste veículo. Entretanto, o corpo não é o que somos; é um instrumento da vida no meio que transita. O mim mesmo que a partir dele se constitui enquanto pseudo realidade do Eu Sou é um sonho, uma ilusão, um personagem em uma estória que cada um se conta. Segundo esta estória, tudo começa com a crença na separação, no pecado original, nas túnicas de pele que são de fato túnicas de cegos, de ignorância. O corpo é, nesta estória de queda, a garantia da validade desta crença na separação, e a afirmação do medo, da morte, da finitude. No entanto, a importância do corpo na estadia neste plano de existência está em ser um instrumento de comunicação, de comunhão, entre as partículas da Alma do Mundo, confinadas nesta aparente prisão do mundo. O valor real do corpo pode ser restaurado pelo Espírito Santo, pois nunca deixou de estar aí presente. O justo propósito dado pelo Espírito Santo, na afirmação da Trindade através do ser humano é aquele capaz de orientar nossa apropriação do corpo na jornada de unificação da multiplicidade em unidade.
… O caráter crucial do problema posto pelo corpo — a substituição do corpo material por essa carne vivente que nós somos realmente e que nos cabe, hoje, redescobrir apesar do objetivismo reinante — é, de modo ao menos implícito para esses pensadores do cristianismo primitivo (de modo explícito em Irineu), tornar possível a Encarnação do Verbo, a única coisa que lhes importa e o fundamento da salvação cristã.
Ora, eis que para nós, fenomenólogos pós-husserlianos — isto é, não gregos –, a pressuposição cristã adquire uma significação decisiva. [372] Ela não nos ajuda somente a rejeitar a redução ruinosa e absurda de nosso corpo a um objeto — objeto oferecido à investigação científica antes de ser entregue à manipulação tecnicista e genética e, no limite, às práticas abertas pela ideologia nazista. Tampouco nos basta interpretar esse corpo-objeto como corpo subjetivo enquanto essa subjetividade é identificada com a intencionalidade — em última instância, com o “fora de si” do aparecer do mundo. O que temos a dizer é que a nova inteligibilidade que a elaboração da questão do corpo exige, na medida em que nosso corpo não é um corpo, mas uma carne, é totalmente estranha ao que entendemos, desde sempre, por inteligibilidade. É somente a percepção mundana de nosso corpo como corpo de carne (Leibkörper), a percepção de um corpo-objeto revestido da significação de não ser um corpo “côisico” comum, mas um corpo capaz de sentir, que decorre dessa inteligibilidade platônica da contemplação ou de seus substitutos modernos. Mais ainda: essa inteligibilidade nunca é senão derivada, pressupondo o todo diverso dela. Originariamente e em si, nossa carne real é arqui-inteligível, revelada em si nessa revelação de antes do mundo própria do Verbo de Vida de que fala João. (Michel Henry, MHE)
Ao desdobramento do agir entre o agir verdadeiro e o comportamento falacioso, corresponde o desdobramento do corpo. Por um lado o corpo na verdade do mundo, o que os homens tomam por corpo real e, para dizer a verdade, pelo único corpo real, aquele que se pode ver, com efeito, no mundo, o corpo visível, o corpo-objeto assimilável a todos os objetos do universo e que partilha a essência deste último, a de uma coisa extensa: res extensa. Por outro lado o corpo na Verdade da Vida, o corpo invisível, o corpo vivente. De modo que, segundo a definição fenomenológica da verdade como vida e como idêntica [338] à realidade, é o corpo invisível que é real, enquanto o corpo visível não passa de sua representação exterior.
Este novo paradoxo cristão pode ser estabelecido filosoficamente. Pois o corpo que é visto pressupõe um corpo que o veja, um poder de visão – que não pode exercer-se senão quando posto em posse de si, dado a ele mesmo na autodoação da Vida absoluta. Assim, há uma gênese transcendental do corpo real na vida, a qual, enquanto gênese transcendental do Eu Posso e assim de todo poder concebível, não é diferente do nascimento transcendental do ego. Com a concentração de toda forma de poder na vida e, mais ainda, com a identificação da geração deste poder com a autogeração da própria Vida absoluta, é globalmente o todo da realidade que se encontra reconduzido a seu lugar de origem, à própria vida invisível e a seu hiperpoder. Longe de o invisível designar o lugar vazio de um céu ilusório, é nele que se edifica todo poder concebível e, assim, toda efetividade tributária de um poder. É nele que toma literalmente corpo todo corpo concebível e toda forma de realidade. As objeções que censuram ao cristianismo sua fuga da realidade ignoram a essência desta. (Michel Henry MHSV)