Jean Daniélou — Orígenes
A Mística de Orígenes
As Três Vias
Segundo o cardeal Jean Daniélou, no livro PLATONISMO E TEOLOGIA MÍSTICA, a classificação das diversas etapas de ascensão espiritual (psychanodia) na Antiguidade, teve em Orígenes uma definição ímpar, pela influência que exerceu posteriormente: a “filosofia” como denominava Orígenes esta ascensão, compreendia três grandes etapas: a praktike theoria, a physike theoria e a theologia.
O termo da primeira etapa é a apatheia, a perfeita pureza e caridade pela observação dos mandamentos; o termo da segunda é “o bom uso de todas as coisas por meio de uma consideração religiosa do mundo e a convicção da vaidade de todo o visível”; enfim a terceira tem por objeto “a contemplação do divino”.
É em Orígenes, de fato, que se associa a correspondência destas três vias com os Livros de Salomão: os Provérbios correspondendo à praktike theoria, o Eclesiastes à physike theoria e o Cântico dos Cânticos à theologia.
Neste capítulo do livro “Orígenes”, Daniélou trata extensivamente da mística de Orígenes, e detalha estas vias espirituais conforme apresentadas por Orígenes alguns de seus escritos, voltados para cada uma das vias. No topo da vida espiritual encontra-se a união perfeita figurada pelo Cântico dos Cânticos, para o qual Orígenes escreveu duas Homílias e um Comentário. Este último é que importa para a doutrina espiritual.
Antes de Orígenes já havia um Comentário escrito por Hipólito, mas que retratava a união do Verbo e da Igreja, como simbolizada no Cântico. Foi Orígenes que primeiro viu no Cântico o poema da união da alma e do verbo. Ou melhor viu ambos: a união do Verbo com a Igreja e do Verbo com a alma. Este Comentário é a obra mais importante, segundo Daniélou, para se conhecer a espiritualidade de Orígenes, e será a que mais influência terá: por Gregório de Nissa e Bernardo de Clairvaux, ela será a origem de toda a simbolização da vida mística.
Neste Comentário do Cântico Orígenes desenvolve uma teoria dos três graus da vida espiritual, que toma de Philon, o qual havia tomado dos filósofos gregos, e cuja fortuna devia ser imensa. Ele faz lembrar que os gregos faziam das ciências gerais três (em oposição às disciplinas preparatórias): ética, física e teórica. Orígenes as designa sob o nome de moral, física e contemplativa: “Salomão querendo distinguir estas três ciências as apresentou em três livros adaptados cada um a seu grau. Primeiramente nos Provérbios, ensinou a moral, expondo as regras da vida. Em seguida guardou no Eclesiastes a física: sua meta é, distinguindo as causas e a natureza das coisas, reconhecer que a vaidade deve ser deixada e que se deve apressar para as coisas eternas e duráveis; ensina que todas as coisas visíveis são caducas e frágeis. Quando aquele que se dedica à Sabedoria tiver cumprido isso, ele as desprezará e as desdenhará e renunciando, por assim dizer, ao mundo inteiro, se voltará para as coisas invisíveis e eternas que são ensinadas de maneira espiritual por imagens tomadas ao amor no Cântico dos Cânticos. Assim a alma, depois de ter sido purificada em seus costumes e estando avançada no discernimento das coisas naturais, é capaz de aceder às realidades contemplativas e místicas e se eleva à contemplação da divindade por um amor puro e espiritual”.
Este texto, do Comentário do Cântico dos Cânticos, é capital na história da espiritualidade. Aí encontramos com efeito a exposição das três vias, purgativa, iluminativa e unitiva. Notemos o que Orígenes diz da segunda, que é particularmente interessante: ela consiste em se formar um juízo verdadeiro sobre as coisas, quer dizer, em compreender o nada das coisas temporais e que só o mundo espiritual é real. Trata-se aqui de se desprender da ilusão do mundo e de se ligar às realidades verdadeiras. Um vez esta convicção estabelecida na alma, ela pode entrar nas vias da contemplação das coisas divinas. Notemos também o paralelismo entre as três vias e a sequência dos três livros sapienciais. Orígenes, inspirando-se aqui de Philon, as associa também aos três patriarcas Abraão, Isaque e Jacó: Abraão representa a obediência aos mandamentos, Isaque a filosofia natural, Jacó a contemplação por causa do nome de Israel. Mas em Philon, Jacó era o que progredia e Isaque o perfeito. Estas três categorias estão figuradas nos “Números” pelos israelitas, os levitas e os sacerdotes, o que vem de Philon; pelas concubinas, as jovens e a esposa, no Cântico. Eslas correspondem aos comerciantes (eisagogikos), os progressantes (prokopton) e aos perfeitos (teleios).
O Cântico corresponde à terceira via. ë o poema do amor espiritual. Orígenes relembra de passagem que Platão falou também do amor espiritual no Banquete. Existe com efeito dois amores: “Assim como há um amor carnal, que os poetas denominam também desejo (epithymia), há um certo amor espiritual que o homem interior amando engendra no espírito. E para falar mais claramente, se alguém se acha ainda portador da imagem do terrestre segundo o homem exterior, é conduzido pelo desejo e o eros terrestres. Mas aquele que porta a imagem do celeste segundo o homem interior é lavado pelo desejo e o amor celestes. A ala movida por este amor quando, tendo visto a beleza do Verbo de Deus, ama seu esplendor e recebe dele uma flecha e um ferimento de amor”. “Assim como a infância não conhece a paixão do amor, assim aquele que é pequenino segundo o homem interior não é capaz de compreender estas coisas”. E eis porque os hebreus eram sábios de não permitir a leitura sem distinção dos livros sagrados.
O tema do Cântico é aquele da alma da qual “todo desejo é de ser unida ao Verbo de Deus e de penetrar nos mistérios de sua sabedoria e de sua ciência como na câmara nupcial do Esposo celeste”. Para isto é preciso que o Verbo a ilumine ele mesmo, pois as forças de sua natureza, sua razão e seu livre arbítrio disto são incapazes. O beijo do Esposo é a operação de Deus que ilumina o espírito e, como por uma certa palavra de amor,, lhe manifesta coisas obscuras e ocultas, se pelo menos ela merece receber a presença desta operação… Todas as vezes que buscamos em nosso coração algo que concerne os santos dogmas e o encontramos sem mestres, creiamos que cada vez é um beijo que nos é dado pelo Verbo”. Vemos claramente as diferença das vias precedentes. Nestas Deus agia na alma pelo mestres exteriores: aqui é o mestre interior que a instrui de dentro.