EVANGELHO DE JESUS: Mt 3:13-17; Mc 1:9-11
Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 46
É importante observar que Jesus e João Batista só se “encontram”, segundo o testemunho dos evangelistas Mateus e Marcos, no momento do batismo de Jesus. Como já apontamos, com este acontecimento se descreve a primeira ocasião na qual as águas psíquicas de João se abrem e o “eleito de Deus” se faz presente a sua consciência. Só desde essa vertente oculta há que se entender a declaração de João: “Eu não o conhecia, mas vim batizar com água para que ele seja manifestado” (Jo 1,31).
- Dada a estreita relação existente entre Isabel e Maria e que deu motivo à Visitação, não se pode aceitar em seu sentido “manifesto” que João Batista não conhecia a Jesus; mas o quarto evangelho segue nisto a vertente oculta.
Nada se diz no quarto evangelho a respeito de que Jesus fosse batizado com água, senão que João viu ao Espírito Santo “manter-se” sobre ele (sobre o eleito de Deus), pois, disse, “esse é o que batiza no Espírito Santo”.
No terceiro evangelho se consigna que Jesus recebeu o batismo, sem explicar se foi de água ou de Espírito; mas a descida do Espírito Santo sobre ele e a proclamação do Filho amado não pertence ao processo do primeiro batismo, senão ao segundo. A voz do céu se dirige a Jesus: “Tu és meu Filho”, e não a um suposto interlocutor (João Batista), como ocorre no evangelho de Mateus: “Este é meu Filho amado”. Não há dúvida de que João não esteve presente segundo Lucas no batismo de Jesus, o qual está explicado, pois o evangelista acabava de dizer que João havia sido encarcerado.
- Mas o tetrarca Herodes, sendo repreendido por ele João Batista por causa de Herodias, mulher de seu irmão, e por todas as maldades que havia feito, acrescentou a todas elas ainda esta, a de encerrar João no cárcere. Quando todo o povo fora batizado, tendo sido Jesus também batizado, e estando ele a orar, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como uma pomba; e ouviu-se do céu esta voz: Tu és o meu Filho amado; em ti me comprazo. (Lc 3:19-22)
Só Marcos e Mateus consignam o batismo de água de Jesus administrado por João Batista, batismo que sobrepassa a João por efeito da descida do Espírito de Deus, e a proclamação do Filho amado alcançará em seu sentido, ao segundo batismo.
Em Mateus se apresenta o batismo de água em seguida a um forcejo entre João e Jesus; um forcejo que se dá por estabelecido quando Jesus afirma: “Convém que assim cumpramos toda justiça”. Tal “justiça” consiste provavelmente no cumprimento do plano completo da Boa Nova, mas não coincide com o puro sentido da exegese oculta.
- Que isto mesmo o entenderam outros testemunhos, o prova não somente a posição tomada por Lucas e João, senão também, aquele que segundo São Jerônimo se consigna no evangelho chamado “dos hebreus”, quando Jesus diz: “Que pecados cometi para que tenha que ir e ser batizado?”.
No relato batismal sinóptico de Marcos e Mateus confluem, em sua natural direção oposta, a assunção desde a água (da alma) e a descida do Espírito. Ambos movimentos respondem a um processo simultâneo que está de acordo com o que explica a exegese oculta. Pela ascensão desde a água, vem a consumação da obra de purificação da alma. Só então, na nova transparência da água clarificada, é possível contemplar a luz própria da região superior. Mateus e Marcos explicam isto dizendo: “Viu que os céus (os estratos superiores da alma) se abriam”.
O que desce então desde aquela luz da região superior do Espírito, não é outra coisa que a chuva de conhecimento que vem nas línguas de fogo que batizam; e se os evangelistas dizem que tal chuva chegava na “forma de pomba”, empregam com isto uma metáfora pela qual querem referir-se à “presença”, pousada dede então na alma, quer dizer, a permanência da luz do Filho do homem sobre a consciência que a contempla desde então.
Convém esclarecer bem isto: quando a alma recebe a chuva de conhecimento que a envia o Espírito, enfoca sua atenção com o propósito deliberado de entender a mensagem que a leva aquela chuva sutil que se derrama sobre ela.
A caída constante de tal chuva, que absorve a alma e que a impulsiona à integração gradual com o Espírito, é denominada na linguagem testamentária a “presença”, a qual se constitui em um processo imperativo da alma. A contemplação ininterrupta da “presença”, a tomada de consciência de que Deus está presente sempre em todo fazer ou pensar, é o único instrumento com que conta a alma para acrescentar as medidas próprias do sagrado, até realizar por fim, diretamente, a “vinda” do Filho do homem.
Na tradução rabínica, a «presença» recebeu o nome de Shekinah e se descreve tão vinculada ao Espírito (de Deus), como a pomba, sua herdeira neotestamentária, o está ao Espírito (Santo).
O evangelista Lucas formula com muita precisão a ação que corresponde ao Espírito e à pomba (Shekinah = presença), na profecia do anjo à Maria (a qual é aqui explicada, em versão oculta, como a donzela — alma — purificada): “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”.
- O poder do Altíssimo vai sobre Maria, a alma virginal, e também ao mesmo tempo, sobre “o que há de nascer”, posto que também Jesus diz, em cumprimento da profecia, rememorando Isaías 61, 1: “O Espírito do Senhor sobre mim, porque me ungiu” (Lc 4, 18-19).
A “sombra” é o mesmo que a nuvem teofânica da glória de Deus; é um “filtro” da luz que, pouco a pouco, quando a contemplação se fixa, insistente, paciente, tenaz, amorosa, se dilui e então, toda disfunção entre a luz e a alma cessa por completo. Uma vez desaparecida a “sombra” projetada pela nuvem, o que era tido por dois (alma e espírito, obscuridade e luz), cessa por completo.
A pomba traz a mensagem da luz e a faz presente; com suas asas em voo, projeta a sombra; quando se “mantém” sobre a alma, que é como a viu João Batista segundo o quarto evangelho, propicia o processo de unidade que corresponde aos frutos da “presença”. Quando ao final, remonta o voo, não deixa traço no ar com suas patas. Então cessa, segundo queria Jesus, a dualidade suposta pelos “muitos” e se resolve na unidade real dos poucos. Este é o cumprimento do mistério pelo qual Jesus deu sua vida. Por isto se recomenda a todos no evangelho: “Sejam simples (unos) como as pombas”.