Pecado [AWVC]

Alan Watts — A Vida Contemplativa

O pecado original — o orgulho, a recusa em dar-se a Deus, o amor a si próprio, o egocentrismo (a colocação de sua própria pessoa, e não Deus, no centro do Universo) — imediatamente confronta-nos com o abismo, a oposição, existente entre nós mesmos e tudo o mais, tudo aquilo que não nós mesmos. Quando o homem tenta usurpar o trono de Deus, toda a criação, todos os outros homens se empenham em derrubá-lo. Assim, de acordo com o mito do Éden, tão logo Adão provou do fruto proibido, tornou-se consciente da sua nudez e da sua solidão, e Deus lançou sobre ele uma maldição que era simplesmente uma descrição do inevitável conflito entre o homem egocêntrico e a natureza. “Maldita é a terra por tua causa; em fadiga tirarás dela o sustento todos os dias da tua vida. Ela te produzirá também espinhos e abrolhos.” (Gênesis 2:17 e 18).

A conseqüência do orgulho é, portanto, o medo, medo de perder o seu próprio e amado ser. Deus e a natureza parecem conspirar para privar-nos de nós mesmos; o primeiro do amor e o outro da obediência a Deus. E o medo de perdê-los nos leva a apegar-nos a nós mesmos com todas as forças e, no esforço, a praticamente nos estrangularmos até ficarmos sem respiração. Mas o medo é sofrimento, o medo ameaça o nosso orgulho, e gostaríamos de não ter nem medo, nem sofrimento. Os santos nos dizem que o medo pode ser dominado pela fé e pelo amor, desde que nos entreguemos inteiramente a Deus. Procuramos seguir esse conselho, mas o orgulho persiste sendo o motivo. Entregamo-nos a Deus para nos proteger, para nos satisfazer não apenas com a posse do poder e glória de Deus, mas também do Seu amor e humildade. A ambição deixa de ser terrena para ser espiritual, mas é sempre ambição.

Encontramo-nos, assim, em um círculo vicioso. Nossa natureza é egoísta e não mais a podemos mudar, assim como também não podemos levantar-nos pelo nosso próprio cinto. Somos o “homem errado” e, como dizem os textos chineses sobre a vida espiritual, “quando o homem errado usa os meios certos, estes se comportam de modo errado”. (NA: Jung e Wilhelm, The Secret of the Golden Flower. Londres e Nova York, 1931, pág. 70.) Ao tentar escapar ao medo, incorremos no círculo vicioso de ficar com medo do medo — de preocupar-nos porque estamos preocupados por estarmos preocupados. Ao tentar escapar do orgulho, ficamos orgulhosos da nossa humildade, e ao tentar escapar ao pecado, arrependemo-nos porque o sentimento de culpa fere a nossa vaidade. Em conseqüência, todas as nossas tentativas de vida espiritual resultam em simples imitações porque nos falta aquilo que torna a vida espiritual possível e significativa — a união com Deus, que não possuímos por tê-la refugado. E como e por que aceitá-la? Retornamos, assim, uma vez mais, ao orgulho.

O egoísmo é como tentar nadar sem se apoiar na água, esforçando-se por flutuar movimentando as pernas; o corpo, em conseqüência, se torna tenso e a pessoa afunda como uma pedra. A natação requer um certo relaxamento, um certo abandono de si mesmo à água; a vida espiritual, analogamente, exige o abandono da alma a Deus. A filosofia hindu refere-se ao egoísmo como sankhocha, uma contração ou tensão da alma; e se é difícil o relaxamento das tensões superficiais de nervos irritados e da insônia, é impossível o relaxamento, por qualquer ação nossa, de uma tensão que se manifesta no próprio íntimo do nosso ser. Todo esse estado de egoísmo inevitável, misturado com o orgulho e o medo conseqüente, toda essa inaptidão de dar-nos sem reservas a Deus, é o que a Igreja chama de estado de queda do homem — servidão, cativeiro, em relação ao pecado de Adão. As pessoas que desenvolveram um grau profundo de autoconhecimento são tão agudamente conscientes dessa situação que se deixam, freqüentemente, dominar por total desespero.

A Igreja ensina formalmente que somos absolvidos do pecado de Adão pela Encarnação, a qual consiste na assunção da nossa natureza humana pelo Logos, o Filho de Deus, que como Jesus de Nazaré vive e morre de uma forma em que essa natureza humana está perfeitamente sujeita à vontade divina. Em virtude dessa submissão perfeita, a natureza humana de Jesus se transfigura e é totalmente informada pela Divindade e, reunindo-se à própria Vida, ressuscita e ascende ao céu. A Encarnação tem efeito para nós, homens, porque a natureza humana de Cristo é a nossa própria natureza e, ainda, porque Cristo introduziu uma nova vida, um novo poder, nessa natureza e veio torná-la capaz de uma perfeita submissão a Deus. Tornamo-nos possuidores desse poder pela nossa incorporação à nova raça humana que Ele iniciou, a raça que é a Sua própria humanidade divinizada e que se estende ao Seu corpo místico, a Igreja. Em Cristo, Deus fez pelo homem aquilo que o homem não podia fazer por si mesmo: Deus, como homem, ofereceu nossa natureza humana ao Pai em um sacrifício perfeito que concretizou a união do homem com Deus, fazendo-nos herdeiros de Sua própria vida eterna e Seus filhos adotivos. A mente moderna, em geral, acha tais considerações quase que inteiramente vazias, por parecerem introduzir uma complexidade mitológica na vida espiritual que, muito embora possa ter um significado algo profundo, é mais um aborrecimento que uma ajuda, e também por envolverem o estudo e a aceitação de uma quantidade de pormenores históricos que não temos condição de verificar. Certamente, se Deus é de fato amor e deseja a nossa salvação com todo o Seu ser, poderia ter concebido nossa redenção de uma forma menos tortuosa.

É óbvio, portanto, que no passado esta mesma história foi da mais alta importância para inumeráveis almas. A razão, como vimos, é que em certos estágios do seu desenvolvimento e em certos níveis de sua natureza o homem somente pode apreender a realidade espiritual em termos de mythos. Entretanto, quando se faz necessário compreender a realidade nua e crua que se esconde por trás do símbolo, este se apresenta confuso e sem importância; quando, porém, a realidade interior pode ser vista, o símbolo se mostra novamente lógico e significativo, embora sua função se modifique. Impõe-se, portanto, a descoberta do significado da Encarnação.