DOIS JOÃO — JOÃO EVANGELISTA
Manuel João Ramos: “Ensaios de Mitologia Cristã” [MRMC]
A biografia lendária de João Evangelista merece a pena ser rapidamente referida, na versão medieval da Lenda áurea, que combina o resumo que Isidoro de Sevilha faz dos Atos de João, com passagens de “O homem rico que descobre a Salvação” de Clemente de Alexandria, e ainda com informações provenientes de Jerônimo, de Cassiano e de Helinando. Segundo Voragine, João é supliciado, em Roma, por ordem do imperador Domiciano: é colocado dentro de um recipiente contendo azeite a ferver, do qual sai sem ter sofrido qualquer queimadura1; em consequência de não poder ser morto (figura 57), é exilado na ilha de Patmos, onde recebe a «revelação» divina e escreve o Apocalipse (figuras 55 e 65). Depois da morte do imperador, que marca o fim da sua estada em Patmos, estabelece-se em Éfeso onde opera diversos milagres, na sequência de ordálias que lhe são propostas: reconstitui à sua forma original pedras preciosas esmigalhadas; numa praia, nas margens do Adriático, transforma em pedras preciosas toros de madeira e seixos; invocando Cristo numa oração, causa a destruição do templo de Diana; para conseguir a conversão de Aristodemo, o pontífice pagão de Éfeso, bebe um veneno letal que este fabrica2, e não apenas sobrevive incólume como ressuscita várias pessoas envenenadas em ordálias, colocando a sua túnica sobre elas; ressuscita ainda um jovem que descreve palácios celestes profusamente decorados com pedras preciosas, inundados por uma iluminação resplandecente e apresentando mesas sempre cheias de iguarias (Legenda áurea, IX, 1-5). A sua morte aos 98 anos é descrita nos termos seguintes: deita-se ainda vivo num fosso e, em oração, afirma aceitar o convite de Deus para se sentar à sua mesa; uma luz resplandecente vinda do alto enche o fosso e, quando desaparece, esta está coberta por uma areia fina como poeira (Legenda áurea, IX, 12-13). A semelhança do milagre relatado no final dos Atos de Tomé, também à poeira do túmulo de João são tradicionalmente atribuídos poderes curativos; complementarmente, Agostinho declara, que a terra mexe sobre o túmulo como se João ainda respirasse (cfr. Chadwick, 1991:586a).
Mas é sobretudo a enunciação da imortalidade tendencial do apóstolo João, implícita no relato da sua descida ao fosso e a sugestão de ascensão ao céu, envolto em pó e luz, assim como a menção de uma culinária celeste (João aceita o convite para se sentar à mesa de Deus), que, à imagem da águia, o confirmam como um mediador poderoso entre Alto e Baixo, e nessa medida associável à figura do Preste João. Estas referências, bem como as expressões de grande proximidade física e mimetismo do apóstolo em relação ao Cristo ressurreto (Henri-Charles Puech, 1978-11:208) e a sua identificação, desde Papias, como ó Presbíteros Ioánnis3, estabelecem, através de um delicado processo de transformação, a possibilidade de constituição de um quadro de interessantes paralelos com a Carta do Preste João. A sobreposição de alguns dos textos analisados sugere um sistema de reflexão simbólica comum e de combinação literária onde o processo de sacralização de um soberano indiano cristomimético (a atribuição de poderes de mediação sacerdotal «melquisedequeana») supõe uma confluência temática com a figura de um apóstolo física e afetivamente próximo de Cristo, e não associado à hierarquia eclesiástica cristã ocidental, hierosolimita ou às «heresias» orientais (respectivamente Pedro, Tiago e Tomé). Tudo se passa como se Vizan, o herdeiro do trono indiano de Mazdaï, convertido e crismado como diácono por Tomé, vestisse a «túnica» imortal e consubstancial do Presbíteros Ioánnis, para habitar, numa «terra alta», um palácio feito à imagem do palácio celeste de Gundafor, assumindo o projeto imperial e unificador de Alexandre e mimetizando (como Jobannes Presbyter) o rei-juiz do Apocalipse — ou, dito de outro modo, como se o Iohannes Presbyter vivesse a utopia pós-apocalíptca que o Presbíteros Ioánnis escreveu4…
Este martírio é também referido por Tertuliano (Ad martyras). É comemorado desde o século IX numa basílica anexa à Porta Latina, em Roma, a 6 de Maio de cada ano. Esta festa de S. João foi expurgada do calendário geral da igreja de Roma em 1960 (Attwater, 1993:232). ↩
Cfr. Marcos, X, 39. ↩
Cfr. Eusébio, Hist. Ed., III, 24-25, 39. ↩
Sampaio Bruno, num capítulo de Os Cavaleiros do Amor onde discute a passagem do reino do Preste João da Ásia para África, sugere também esta ligação entre as duas figuras, no quadro de uma teologia do Amor que faz do soberano cristo-mimético oriental um virtual anti-Papa (Bruno, 1960:157 segs.). ↩