Hermenêutica

ESCRITURAS — HERMENÊUTICA

VIDE: hermenêutica dual; interpretação; exegese; exegese alegórica; pardes; sentidos da escritura; sete sentidos do Corão; teologia simbólica


Segundo Georges Gusdorf [GGOH], a idade de ouro da hermenêutica teria sido aquela do apogeu de Alexandria, Egito, desde de pouco antes da era cristã. A palavra grega hermeneia remitiria ao deus Hermes, mensageiro entre os deuses imortais e os seres humanos, santo padroeiro da comunicação, símbolo da circulação do sentido. Segundo Jean Pépin, “sua tradução latina por “interpretatio” foi prejudicial para a “hermeneia” grega. Pois o substantivo interpretatio, passando como tal para as línguas europeias modernas, tem um prefixo muito visível que lhe confere antes de toda especificação o sentido de base de “mediação”, e esta acepção prenhe de sentido se relacionou à hermeneia grega cuja etimologia desconhecida não oferecia qualquer proteção. Por contaminação, hermenêutica se tornou sinônimo de interpretação, ou de exegese. “Ora o sentido original de hermeneuein e das palavras aparentadas, em todo caso seu sentido principal, não é este; não está longe de ser o contrário, se se acorda que a exegese é um movimento de entrada na intenção de um texto ou de uma mensagem. Hermeneia designa frequentemente o ato de exprimir, cujo caráter de extraversão (…) é fortemente sublinhado”. O sentido antigo e primeiro de hermeneuein seria portanto “significar em falando”, manifestar por meio da linguagem o logos interior, no vocabulário de Aristóteles e de Philon de Alexandria. Mas, muito cedo também, a mesma palavra se aplica à manifestação do sentido de uma palavra, tradução do obscuro em claro; encontra-se empregada nesta acepção pelos Padres da Igreja.


Ananda Coomaraswamy: ARTIGOS SELETOS DE METAFÍSICA — NIRUKTA = HERMENEIA [AKCMeta]

Jean Borella: A CRISE DO SIMBOLISMO RELIGIOSO [BCSR]

No “O MISTÉRIO DO SIGNO” expusemos o que é uma hermenêutica acordada ao símbolo, e quais são as três formas que deve revestir: institutiva, especulativa, integrativa. Mas não se trata mais agora de formas; trata-se de princípio, e de um princípio fundamental. Não mostrar quais são as funções que preenche a hermenêutica, nem quais regras particulares a hermenêutica utiliza em sua interpretação dos símbolos (a ser tratado na “Metafísica do símbolo”), mas que princípio ela obedece na essência mesma de seu ato. Ora, este princípio, operacionalizamos desde o início de nosso estudo, posto que com efeito nada fizemos a não ser buscar compreender o que é um símbolo. E não é precisamente nisso que consiste primeiramente toda hermenêutica? Não é a princípio uma reação ao fato mesmo do simbolismo? Começamos por dizer que o signo simbólico era a princípio signo dele mesmo, signo que tem do simbolismo, assim como declaramos agora que a hermenêutica é a princípio tomada de consciência do simbolismo como fato e que esta tomada de consciência que a constitui propriamente como hermenêutica.
Em que consiste portanto esta tomada de consciência? Dito de outro modo, posto que a hermenêutica é um ato cognitivo ordinário de nossa inteligência? Certamente, não é o ato como tal que pode, por ele mesmo, diferir dos outros atos especulativos; como toda operação cognitiva, ele consiste na apreensão intelectual de um objeto. Portanto é somente o objeto ele mesmo que pode especificar o ato hermenêutico. Em outros termos: que diferença há entre uma realidade “ordinária” e um símbolo, uma entidade simbólica? Dissemos muitas vezes: o conhecimento de um ser determinado importa com ele uma ontologia de referência imediata. O que é dado com a percepção de uma realidade, é o mundo no qual ele é compreendido e ao qual remete.É precisamente a ausência de uma tal ontologia de referência implícita, a ausência de uma referência ao mundo da experiência comum, que caracteriza a apreensão do objeto simbólico; ou, ao invés de uma ausência, seria melhor falar a seu respeito de uma impossibilidade de se referir ao mundo ordinário. A entidade simbólica se apresenta bem neste mundo, ela não remete a ele.

Roberto Pla: Evangelho de Tomé [RPET]

A aplicação do método oculto à exegese da Bíblia não pretende apresentar-se, nem poderia fazê-lo, como um descobrimento, pois ao menos sua hermenêutica para relatar os fatos é necessariamente tão antiga como a própria Bíblia.

O evangelho proclamado e ensinado por Jesus foi narrado, depois da “subida” do Salvador ao Pai, por alguns que uma vez transformados em puros “servidores da Palavra” (Lc 1,2) e “contempladores de sua Glória” (Jo 1,14; Lc 9, 2931), quiseram que os ensinamentos de Cristo completo fossem conhecidos por muitos.

Com o fim de explicar o Cristo “completo”, em sua dupla vertente (manifesta e oculta), os hagiógrafos neotestamentários praticaram um método hermenêutico no qual cabiam por igual os dois sentidos, o da esfera cristológica manifesta e o da oculta, sem que nenhum dos dois sentidos perdesse sua condição própria, genuína.

Os dois modos de exegese que foram praticados por esses primeiros cristão para chagar a suas interpretações do AT, serviram para que se configurara neles a mentalidade necessária par a hermenêutica própria que os hagiógrafos neotestamentários pretendiam desenvolver, e com as quais os cristianismo primitivo atualizava sua interpretação do texto bíblico em harmonia com as revelações proporcionadas por Jesus.

É verdade que na arte de conseguir que um texto expressasse pluralidade de sentidos sem menosprezo da autenticidade de nenhum dos dois, e sem risco de que se entrechocassem entre si, os “escribas” paleo-cristãos se tornaram tão hábeis como seguramente o haviam sido os soferim judeus, os sábios antecessores testamentários de quem tecnicamente dependem os hagiógrafos cristãos.

Como se sabe, os autores sagrados bíblicos foram mestres em conferir um sentido plural a muitas passagens da Escritura, segundo explicava um velho rabino: “Como um martelo faz soltar infinidade de chispas, assim cada Escritura se expressa em multitude de sentidos” (A. del Agua Pérez, El Método midrásico)

O resultado desta mentalidade foi a aplicação aos textos de uma hermenêutica dual, graças a qual as perícopes de duplo sentido, manifesto e oculto, conformam a significação total dos textos neotestamentários, e só quando se pratica em seu conjunto esta leitura dupla se revela Cristo completo, quer dizer, o Cristo oculto que Roberto Pla quer “re-velar” em sua exegese do Evangelho de Tomé.


Henry Corbin

Aunque al filólogo puro, reducido a la condición del zahir (lo exotérico) pueda parecerle arbitrario, el ta’wil (hermenéutica espiritual) revela al fenomenólogo atento a las estructuras las leyes rigurosas de su objetividad. Y es la filosofía de la Luz, representada tanto por Sohravardí como por Ibn Arabi, la que asegura los fundamentos de la objetividad del ta’wil y regula la «Ciencia de la balanza», el «simbolismo de los mundos», que desarrolla la teosofía shiíta. En efecto, la multiplicación de los sentidos esotéricos no hace más que verificar, mediante la experiencia espiritual, las leyes geométricas de la ciencia de la perspectiva, tal como nuestros filósofos la entendían.1

El ta’wil, la hermenéutica shiíta, no niega que la Revelación profética haya quedado cerrada con el profeta Mohammad, el «Sello de la profecía». Pero mantiene que la hermenéutica profética no ha concluido y que no deja de promover la aparición de significados ocultos, hasta el «retorno», la parusía, del Imam esperado que será el «Sello del Imamato» y la señal de la Resurrección de las Resurrecciones. Todo esto sembró la alarma en el Islam oficial sunnita, que reaccionó en la medida en que sentía que la ley se tambaleaba en sus cimientos, y de todo ello da fe la dramática historia del shiísmo. (HCIbnArabi)


  1. Para más detalles véase nuestra obra En Islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, Ed. Gallimard, París 1971-1973 reedición 1991, t. III, pp. 233 ss., 275 ss., los capítulos sobre la hermenéutica espiritual según Sa’inoddín ‘Alí Torkeh Ispahaní y ‘Alaoddawleh Semnaní.