Hermenêutica Dual

Em sua exegese do Evangelho de Tomé, Roberto Pla [RPET] faz uma reflexão importante sobre o método hermenêutico adequado a tal empreendimento, se valendo de estudos sobre os Manuscritos do Mar Morto1. Para ele não é fácil comprovar se a hermenêutica dual paleo-cristã tomou como ponto de referência a ordem de investigação que segundo se afirma era praticado no Qumran. Essa investigação se ordenava a conhecer aquelas coisas ocultas que só se revelavam progressivamente aos que recebiam os ensinamentos da seita. Segundo os textos de Qumran, as Escrituras se expressam em mandamentos que podem ser classificados em “manifestos” e “ocultos”. Mandamentos “manifestos” eram aqueles que já haviam sido revelados, e os mandamentos “ocultos” deviam ser objeto de investigação e só resultavam acessíveis para os elegidos que recebiam o ensinamento.

Nossa investigação atual, a que agora propomos, não deseja penetrar nas origens da hermenêutica dual paleo-cristã, porque uma investigação desta espécie, historicista, cultural, é “manifesta”, quer dizer, se distrai nas preocupações pela ciência acessória e esquece a pura revelação do saber oculto, que o texto propõe.

O único que nós corresponde afirmar neste aspecto é que a doutrina dos mandamentos desenvolvida em Qumran coincide em grande medida com a hermenêutica dual que comprovamos que praticavam os primeiros hagiográficos cristãos e que agora estudamos.

Nos textos neotestamentários pertencem ao ordem manifesto aquelas expressões que se dão em uma primeira e não muito fácil leitura, pois o valor de seu conteúdo sábio e moral se revela por si só, e a exigência que deles dimana é essencialmente de cumprimento. Por outro lado, as expressões de ordem oculto só podem alcançar-se mediante uma releitura nada fácil que permita descobrir nelas um valor gnoseológico que por si só é transformador.

Em seu conjunto, o conhecimento de ordem oculto subjaz à capa manifesta, e há que descobri-lo mediante uma investigação direta, quer dizer, por um estudo no qual o investigador se identifica com a coisa investigada de forma tão entranhada, tão feita “una”, que o conhecedor e a coisa conhecida perdem sua significação separada na unidade do puro conhecimento.

Quando este método de revelação direta é aplicado à investigação do Cristo oculto, interior, eterno, é possível retroagir a investigação à essência do objeto investigado o qual, então, por si mesmo, como ocorre com a semente que cresce sem que o lavrador saiba como, se revela por si só (Mc 4,27).

Tudo isso é o que há que entender em um importante texto do ciclo de Enoque:

Desde o princípio esteve oculto o Filho do Homem e o Altíssimo o guardou por seu poder e o revelou aos eleitos” (1Enoque 62,7).


  1. D. Patte: Early Jewish Hermeneutic in Palestine.