Interpretação

HERMENÊUTICA — INTERPRETAÇÃO
VIDE: EXEGESE, SENTIDOS DA ESCRITURA, SENTIDO OCULTO


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MICHEL HENRY: EU SOU A VERDADE

A verdade do cristianismo se deixa reduzir àquela da história? Há um sentido a considera o cristianismo de um ponto de vista histórico? Suponhamos que as exigências, os critérios, as metodologias pelas quais se define a verdade histórica seja plenamente satisfeitas, tanto quanto se possa pelo menos quando trata-se de uma verdade desta sorte. Suponhamos que os originais dos Evangelhos sejam acessíveis, seus autores conhecidos, que estes, contemporâneos dos fatos que relatam, tendo sido testemunhas fiéis e cujos testemunhos recolhidos nas melhores condições de veracidade se recortem, etc. — a verdade do cristianismo seria estabelecida deste modo, nem que seja em parte?

De modo algum. Pois a verdade do cristianismo não é que um certo Jesus errou de burgo em burgo, atraindo atrás dele multidões, suscitando entre eles a admiração por seu ensinamento como por seus prodígios, agrupando ao seu redor discípulos mais e mais numerosos — até sua prisão pelos sacerdotes e sua crucificação no Golgota. A verdade do cristianismo não é também que o dito Jesus tenha pretendido ser o Messias, o Filho de Deus e como tal ele mesmo — afirmação, ou melhor, blasfêmia e que foi a causa de sua prisão e de seu suplício. A verdade do cristianismo é que Este que se dizia o Messias era verdadeiramente este Messias, o Cristo, o Filho de Deus nascido antes de Abraão e antes dos séculos, portador nele da Vida eterna, que ele comunica a quem bem lhe parece, fazendo que isto que é não seja mais, ou melhor, que isto que está morto, seja vivente. A existência histórica do Cristo, assim como as declarações extraordinárias que não cessou de portar sobre sua própria pessoa, poderia ser bem estabelecida segundo os critérios rigorosos da história — e estas declarações nada mais serem que as divagações de um exaltado ou de um louco. Prova disto é que muitos daqueles que o viram e ouviram não o creram.

Suponhamos ao contrário a redação dos textos canônicos afastada tanto tempo quanto se possa pela crítica cética, os Evangelhos canônicos datados do século IV (hipótese totalmente inverossímil a princípio), seu conteúdo suspeito a ponto que a existência histórica do Cristo se torne o que a bem dizer é: tão incerta quanto aquela de cada um dos milhões de seres humanos que pisaram a terra desde que sobre sua superfície erra a espécie humana — neste caso a identidade do Cristo, sua identificação à Vida eterna, se é verdadeira, não seria menos verdadeira, apesar do grande vazio da história, desta bruma onde se perde no universo do visível tudo aquilo que suposto aí se mostrar. Prova disto é que muitos daqueles que não viram o Cristo e não o ouviram, nele creram e creem sempre nele.

A incapacidade da verdade histórica de testemunhar por ou contra a verdade do cristianismo, na ocorrência a divindade do Cristo, é ainda mais aquela dos textos eles mesmos. Qualquer que seja o respeito do qual são cercados ou, melhor dizendo, o caráter sagrado que lhes é conferido pelos crentes, estes não são, apesar de tudo, nada mais que textos. Se conteúdo nos Evangelhos se desdobra sobre dois registros distintos: trata-se, por um lado, de um relato relatando um conjunto de eventos mundanos, os deslocamentos do Cristo, seus encontros, a escolha dos discípulos, suas curas milagrosas, etc. Por outro lado, este relato é pontuado de aspas que vêm romper a simples trama dos fatos e a esgarçar. É então o Cristo ele mesmo que fala, é a Palavra de Deus que ouvimos, e isto porque o Cristo se definiu como o Verbo de Deus, como sua Palavra. Sem estar circunscrito por aspas, outras passagens relatam no estilo indireto as palavras do Cristo, notadamente estas longas e difíceis sequencias, onde, no Evangelho de João, o Cristo se explica sobre ele mesmo, retornando incansavelmente sobre sua própria condição, sobre a dupla e singular relação que entretém com Deus de um lado, com os homens do outro.

Ora, apesar de sua natureza insólita ou, melhor dizendo, de seu poder estupeficante, estas palavras do Cristo, como a princípio seus atos mais extraordinários, são ditos. Não são, no texto dos Evangelhos, nada mais que fragmentos deste texto, signos ou significações portadas por palavras, momentos e partes de uma linguagem, de uma fala, jamais podendo adicionar um sentido a um sentido, sem jamais atravessar o abismo que separa toda verdade significante da realidade significada por ela. Pois aí está precisamente o estatuto de todo texto, aí compreendido aquele dos Evangelhos: ele é duplo. Composto de termos e significações por um lado, e como tal suscetível de abordagens filosóficas múltiplas. Referencial de outro, quer dizer se relacionando a uma realidade outra daquela do texto ele mesmo, de tal maneira que a realidade visada pelo texto jamais é estabelecida por ele. Aquele que diz: “Tenho uma moeda de 10 francos no meu bolso”, nem por isso possui uma. Assim como aquele que diz: “Eu sou o Messias”, não é o Filho de Deus pelo efeito de sua palavra — tanto quanto se trata de uma fala humana composta de palavras e de significações, como é o texto das Escrituras.


Roberto Pla: Evangelho de Tomé

Tudo o que dissemos não somente é conhecido pela religião mas suspeito por muitos. Mas o que o Evangelho de Tomé – Logion 1 afirma é que há uma interpretação, uma ciência do conhecimento, que uma vez encontrada conduz a culminar essa mutação[[1Cor 12,10 ss. São Paulo expressa a consideração máxima ao que ele chama “dom de interpretar”: Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; E a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; E a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer.”]] da consciência que equivale a passar da morte à vida, e ser, desde então, “como mortos retornados à Vida (Rm 6,13).

Esta não, certamente, a via manifesta, mas a oculta, isto é, ainda não manifestada em muitos, porque tem por objeto a realização — a manifestação — do Cristo Vivente que mora na Câmara interior e secreta de cada um, oculto devido a nossa ignorância e do Paulo fala quando diz: “Mas se Cristo está em nós… (Rm 8,10).

Cristo habita sempre em nós, e isto de “habitar” há que entendê-lo em um sentido muito literal (Rm 8,11), porque ele — ou o que sua denominação significa realmente — é nossa essência pura e indeclinável, da qual só nos separa, certamente, a espessura de nossa ignorância que estende seu véu.

“Encontrar a interpretação” é, no sentido do logion citado, igual a que na mente pacificada e inquisidora se abram interstícios de silêncio que permitam a percepção da Luz do Vivente. Ao princípio, esta Luz haverá de chegar muito atenuada à consciência, mas pouco a pouco esse pão preparado para que o homem “o coma e não morra” (Jo 6,50) e amassado trabalhosamente com nossa incansável busca da eternidade pressentida, se revelará como o único alimento que pode abrir-nos ao Conhecimento perfeito e com ele à intelecção clarificadora dos lampejos da Luz verdadeira.




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