E dizia: O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra. E dormisse, e se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão cheio na espiga. E, quando já o fruto se mostra, mete-se-lhe logo a foice, porque está chegada a ceifa. (Mc 4:26-29)
Uma parábola sobre o reino de Deus, comparado ao ato de lançar semente à terra. Não o ato em si, mas a operação que disto decorre. As questões imediatamente se apresentam: o que é a semente (vide Evangelho de Tomé – Logion 9)? o que ou quem é o homem que a lança? o que é a terra? o que é este algo, este poder (v. energeia) que a leva a brotar, crescer, dar espigas, e grãos na espiga? trata-se de um ciclo completo (v. dynamis) da semente ao grão (semente)? Na completude deste ciclo, a foice, a ceifa…
De uma imagem comum de um processo “natural” tão conhecido no meio agrícola, uma parábola do reino de Deus, fazendo uso de figuras aparentemente ordinárias mas onde os sinais de um poder não humano, não “natural”, se dá, se apresenta, re-velando o ser indizível, o que é, o que na demanda do Pai-Nosso solicitamos que se re-vele para cada um de nós: “venha a nós o vosso reino”.
Segundo Antonio Orbe, há reminiscências desta parábola em 1 Clemente, pela aproximação com a Parabola do Semeador. O apócrifo reaparece em 2 Clemente com alusões à escatologia como em Marcos. Clemente recorre ao motivo para a crença na ressurreição da carne: o ciclo completo da semente ao grão, novamente semente; ou seja, a semente primeiro morre, se desfaz, logo ressuscita e se converte em grão de espiga, pelo poder de Deus.
Mais nenhuma referência desde Clemente até Irineu de Lião: Tertuliano e Clemente de Alexandria nada falam. Orígenes a reconhece nas Homilias de Jeremias, embora com conotações referentes a Parabola do Semeador: a alma, purificada mediante as Escrituras, se dispõe como terra a acolher as sementes.
Orígenes: O PECADO NA PRÉ-EXISTÊNCIA (elementos para a exegese desta parábola)
Antonio Orbe [OPEI]
Procederam em sentido análogo a exegese de 1 e 2 Clemente e Orígenes, os valentinianos. O seio da mulher recebe o esperma, e com ele a semente do homem hílico. No interior do hílico semeia às vezes o demiurgo um sêmen próprio, animal. E dentro deste, por exceção, a Sabedoria (Sophia) deposita o seu próprio (espiritual) esperma, cujo desenvolvimento resulta no “homem perfeito”.
Irineu de Lião alude brevemente ao último processo:
O esperma divino, semeado misteriosamente por Sophia no interior de algumas (privilegiadas) almas, vai incrementando física e moralmente com o corpo e a alma que o coube em destino. O símile do grão, em sua aplicação à semente de Sophia, tem lúcido, embora dissimulado apoio, sem sair de Ptolomeu, nas linhas finais de sua Carta a Flora:
Segundo a economia geral, a semente de Achamoth, segue um processo definido a natura, sem perigo de corrupção, formando-se a mercê da espiga até dispôr-se à gnosis. A exortação a Flora é um caso particular. Em seu devido tempo aparecerá — com a gnosis — o gérmen espiritual. Ptolomeu omite dizer se tal processo beneficia à psyche, em cujo interior se realiza. O beneficia. Mas mais ao grão do espírito, cujo paradeiro interessa aos gnósticos. Não assim ao corpo (à carne) de Flora. A raiz da morte se desfará nos elementos de origem. E o grão maduro não poderá repetir a história prévia a seu desenvolvimento. Maduro, espírito perfeito sem alma nem corpo, não vale para semear de novo a terra, mas para o matrimônio com o anjo do Salvador.