Caráter de Tomé

Manuel João Ramos — Ensaios de Mitologia Cristã

Caráter do Personagem Tomé nos Atos de Tomé
Adicionalmente, convirá mencionar o carácter tendencialmente incombustível que marca a figura de Tomé: no primeiro relato, Gundafor condena o apóstolo a ser martirizado pelo fogo com o único efeito (não subestimável, no entanto) de provocar a morte e renascimento do irmão, Gad (§.21); no segundo, Mazdaï ordena que Tomé seja torturado com ferros em brasa mas do chão brota miraculosamente uma grande quantidade de água que extingue as brasas (§.140) e atemoriza Mazdaï. Esta caraterização de incombustibilidade indiciai deverá ser conjugada com a associação alegórica de Tomé ao meio celeste, tal como pode ser depreendida do sonho premonitório de Karish: este sonha que uma águia desce dos céus e lhe rouba, e a Mazdaï, primeiro duas perdizes já parcialmente comidas, e depois uma pomba e uma rola; o soberano lança então uma flecha que trespassa a águia de lado a lado mas não lhe causa qualquer dano; esta regressa ao ninho (§.91). O motivo do «roubo» das perdizes pela águia é diretamente correlacionável com a conversão das mulheres de Karish e de Mazdaï, conversão essa interpretada como um roubo ou apropriação da parte de Tomé, já que ela é acompanhada de um voto de castidade; neste contexto, o roubo da pomba e da rola surge como metáfora da conversão cristã de Sifur e de Vizan, tornados respectivamente padre e diácono, e o trespasse da águia por Mazdaï e regresso ao ninho como evocação do martírio (apunhalado num lugar alto pelos guardas do rei) e ascensão celeste do apóstolo1.

SONHO DE KARISH:

A descrição de Karish volta a colocar a questão da quase confusão de identidades entre Tomé e Jesus, detectável no recurso à águia, um dos símbolos zoomórficos de Cristo, para representar Tomé no sonho. Tal como Migdônia afirma, a sua recusa de relacionamento conjugal com Karish resulta do fato de a pureza da sua união (espiritual) com Jesus poder ser posta em causa (§.98) pelo contato físico com o marido. Esta possessão espiritual (por intermédio de Tomé, «feiticeiro» para Karish, «médico da alma» para Migdônia) evidencia o papel do apóstolo estrangeiro como instrumento humano do seu «gêmeo» divino no contexto social indiano (§.98)2, tal como a águia do sonho de Karish, que lhe rouba o alimento, o é no plano zoológico.

A associação de Tomé a Jesus e à águia, a sua definição como «estrangeiro» e a sua capacidade de sobrevivência ao fogo, bem como a referência, no final dos Atos, à cura maravilhosa de um filho de Mazdaï graças ao do túmulo do apóstolo e à trasladação do seu corpo para ocidente, deverão vir a ser correlacionadas com informações presentes noutros textos, que permitirão circunscrever melhor estes motivos. Por outro lado, importará analisar o carácter ambíguo das ações de Tomé na índia, através da comparação com o conjunto de referências já apresentadas antes acerca do confronto entre adversários de naturezas distintas. Antes, porém, é imprescindível mencionar o chamado Hino da Pérola ou da Alma, e equacionar a sua mensagem com os Atos, onde é (no Ato IX) incluído.


  1. Cfr. G. Bornkamm, «Mythos und Legende in den apokriphen Thomas-Akten», Forsch, z. Ret und Lit. des A.u.A.T., 49,1933, pp. 61-62 (cit. in: Klijn, 1962:269). 

  2. No episódio da conversão, Migdônia prostra-se perante Tomé porque o confunde com Jesus (§.88). 

Figurações – Personagens