Carreira das Neves Batista

Joaquim Carreira das Neves — Escritos de São João
João Batista
O quarto evangelho interessa-se mais por João Batista do que os sinópticos. A razão consiste no fato de João Batista ser aceite por muitos judeus como o Messias que havia de vir e não Jesus. O testemunho de João Batista a favor de Jesus tem este fundo histórico e doutrinal como “pedra de toque”. O mesmo se diga dos discípulos de João Batista que deixam o profeta do deserto para seguirem o profeta de Nazaré e todas as demais temáticas correspondentes.

O assunto aparece nas narrativas de Jo 1, 19-51 e 3, 22-30. O fato do autor colocar o “sinal” das Bodas de Caná (2, 1-12), o “sinal” da Purificação do Templo (2, 13-25) e o grande diálogo-sinal de Jesus com Nicodemos (3, 1-21) entre o primeiro testemunho de João Batista e o segundo testemunho do mesmo Batista já é muito significativo. Vejamos, então, o assunto nas suas coordenadas mais importantes.

Na primeira grande narrativa de 1,19-51, João Batista testemunha sobre si próprio diante dos enviados das autoridades judaicas (1,19-28), testemunha sobre Jesus diante do seu público (1, 29-34) e, finalmente, encaminha alguns dos seus discípulos a Jesus “Cordeiro de Deus” (1, 35-51). A narrativa tem lugar em “Betânia, na margem além do Jordão, onde João estava a baptizar” (1, 28), lugar reconhecido pela arqueologia1. Na segunda narrativa (3,22-36),”João estava a baptizar em Enon, perto de Salim, porque havia ali águas abundantes e vinha gente para ser baptizada” (3,23). Enon fica na região da Samaria e o lugar também foi descoberto pela arqueologia. A narrativa apresenta as discussões havidas entre os discípulos do Batista sobre a natureza do “batismo” e o próprio Jesus, de quem o Batista volta a dar o seu testemunho.

Comecemos por reparar que o quarto evangelho segue, de perto, a ordem dos Sinópticos. Com excepção dos evangelhos da infância de Mateus e Lucas, de formação tardia, os três Sinópticos abrem o kerygma primitivo com o encontro entre Jesus e o Batista, de acordo com o que lemos em Ac 1, 21-22 por causa da eleição de Matias: “Portanto, de entre os homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu no meio de nós, a partir do batismo de João até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto…”.

O autor, ao contrário dos Sinópticos, não apresenta a doutrina de João Batista sobre a conversão, os tempos apocalípticos e o seu batismo como necessidade intrínseca para “preparar os caminhos do Senhor” (Mt 3,1-17 e par). Apenas se interessa em testemunhar sobre Jesus e sobre a sua própria pessoa. Sobre si mesmo afirma:

1) “Eu não sou o Messias” (1, 20);

2) “Não sou nem Elias nem o Profeta esperado” (1, 21);

3) “Sou apenas a voz que clama no deserto:Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías”;

4) “Eu baptizo com água” (1, 26);

5) “Eu não sou o Messias, mas apenas o enviado à sua frente” (3,19);

6) Eu sou apenas o amigo do esposo. “Ele é que deve crescer e eu diminuir” (3, 29-30).

Sobre Jesus afirma:

1) “Preparai o caminho do Senhor” (1, 23);

2) “No meio de vós está quem vós não conheceis” (1, 26);

3) “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29);

4) “Existia antes de mim” (1, 30);

5) “O Espírito Santo desceu sobre ele… é o que baptiza com o Espírito Santo” (1, 33);

6) “Ele é o Filho de Deus” (1, 34);

7) Ele é “o esposo a quem pertence a esposa” (3, 29;

8) “Ele é que deve crescer, e eu diminuir” (3, 30).

Em relação ao batismo de Jesus por João Batista, patente nas narrativas sinópticas, o quarto evangelho não é claro:”Eu não o conhecia bem; mas foi para ele se manifestar a Israel que eu vim baptizar com água”. E João testemunhou:”Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre ele. E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que me disse:’Aquele sobre quem virdes descer o Espírito e poisar sobre ele, é o que baptiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.”

A narrativa está carregada de mistério. Por duas vezes o Batista afirma que “não o conhecia”, mas Deus, que o enviou a batizar “com água” fez-lhe “ver” que “aquele sobre quem repousasse o Espírito é o que baptiza com o Espírito Santo.” Por três vezes aparece o verbo “ver” que tem por sujeito ativo a pessoa do Batista (“Vi o Espírito… sobre quem virdes descer o Espírito… eu vi e dou testemunho”). O verbo “ver” aparece continuamente no quarto evangelho e, muitas vezes, com o significado de “revelar”, como é também o caso deste texto. Trata-se dum “ver” em profundidade teológica, que corresponde a um “conhecer” também em profundidade teológica. Mas já antes, no v. 29, se narra:”No dia seguinte, ao ver Jesus, que se dirigia para ele, exclamou: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” O autor põe na boca do Batista a fé cristã vivida e acreditada por ele mesmo.

Enquanto os judeus esperavam por Elias e pelo “Profeta” escatológico (Dt 18, 15. 18), João Batista afirma que nada tem a ver com tais personagens. E apenas a voz de quem grita no deserto: ‘Retificai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías” (1, 23; cf. Is 40,3).

A sua descoberta de Jesus como “Cordeiro de Deus” é prenhe de sentido se tivermos em consideração que Jesus, no quarto evangelho, ao contrário dos Sinópticos, morre quando se sacrificavam no Templo os “cordeiros pascais” (18, 28; 19, 13. 31). Em 19, 36, os soldados não quebram os ossos a Jesus para se cumprir a Escritura acerca do “cordeiro pascal” (Ex 12, 46; Nm 9,12; SI 34,21): Não se lhe quebrará nenhum osso. Jesus só é descoberto como “Cordeiro de Deus” depois da Páscoa, mas profeticamente e prolepticamente já o é pelo Batista. E assim que ele o “vê” sempre associado ao Espírito, Espírito este que Jesus entrega aos seus discípulos só depois da Páscoa (20, 22: “Em seguida, soprou sobre eles e disse-lhes:’Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados…’”).

O Espírito de que Jesus é possuído só pode ser o Espírito Santo ou o Espírito de santidade, razão porque Jesus é o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (1, 29). A missão de Jesus como Cordeiro pascal e, também, como o Servo de YHWH que se sacrifica pelo seu povo como cordeiro (Is 63, 7), é a da santidade da sua própria pessoa que se confronta com o mal e o pecado. O Deus Santo do AT exorta o seu povo: “Sede santos, porque eu sou santo” (Lv 11,44-45; 19,2; 20,7.26; 21,8; 22, 3233). Esta exortação aparece no livro do Levítico, cujo conteúdo tem a ver sobretudo com a santidade ritual, enquanto que em João se trata de santidade como mistério ontológico-teológico do Cordeiro de Deus e Filho de Deus, que vai muito para além da santidade na linha profética de Ez 36, 26-27 e de Jl 3, 1-22.

Na narrativa de 1, 35-51, João Batista encaminha alguns dos seus discípulos para Jesus: “No dia seguinte, João encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus!’ Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus.” (1, 35-37).

A macronarrativa abrange dois dias. No primeiro, o Batista dá testemunho sobre si mesmo e sobre Jesus, e, no segundo, uma vez que as identidades dos dois protagonistas ficam estabelecidas, o Batista só tem um papel a desempenhar: desaparecer da cena e encaminhar os seus discípulos para o “Cordeiro de Deus”, isto é, para o mistério pascal de Jesus.

E importante acentuarmos a pessoa de João Batista como profeta do deserto e rodeado de discípulos que o admiravam e amavam. Segundo os Sinópticos, João envia da prisão alguns dos seus discípulos a Jesus para tirar dúvidas sobre a pessoa do mesmo (Mt 11,2-4; Lc 7,18-20), e, depois de decapitado, os seus discípulos sepultam os seus restos mortais com toda a dignidade (Mc 6, 29).3

Nos Sinópticos, os primeiros discípulos de Jesus são vocacionados na pesca do lago de Tiberíades (Mc 1,16-2O e par.). Jesus convida-os e eles “seguem-no” imediatamente, abandonando redes, barco e família. O mesmo acontece com Levi: “levantando-se, seguiu-o” (Mc 2, 14 e par.). Trata-se de “fórmulas de seguimento” como paradigmas para o “seguimento” cristão. Mas é muito mais natural e histórico que os primeiros discípulos de Jesus viessem do âmbito dos discípulos de João Batista como também o próprio Jesus, na sequência de Jo 1, 35-51 e 3,22-30.

São cinco os discípulos do Batista que deixam o profeta do deserto e do batismo “na água” e seguem o “Cordeiro de Deus”: André e o discípulo anônimo, Simão Pedro, Filipe de Betsaida e Natanael. Era gente da Galileia que descia, de vez em quando, à Judeia para passarem alguns dias com João Batista. Quando chegaram a Jesus já pertenciam ao grupo maior do Batista de quem Jesus também fazia parte. Mas só descobrem o verdadeiro Jesus como “Cordeiro de Deus” e “Filho de Deus” pouco a pouco, sempre através da mão do profeta João Batista e este através do ato revelador de Deus que faz com que “veja”Jesus em continuidade progressiva de revelação (“Eu não o conhecia”, por duas vezes, em 1,31.33;”vi o Espírito… virdes descer o Espírito… eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus, em 1, 31-34).

O modo como se descreve a passagem dos discípulos do Batista para Jesus é deveras impressionante. André e o discípulo anônimo tratam Jesus por “Rabi” (Mestre) e, depois, por “Messias”. Entretanto Filipe, que tinha sido convidado por Jesus a “segui-lo”, encontrou Natanael e disse-lhe: “Encontramos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”. Finalmente, Natanael declara Jesus como “Rabi, Filho de Deus e rei de Israel”. Pelo meio, Natanael interpela Filipe: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?” E Jesus dirige-se a Natanael como “um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Sem dúvida que estes cinco discípulos são históricos e paradigmáticos. Simão, irmão de André é classificado por Jesus como “Cefas” e Natanael como “um verdadeiro israelita” porque Jesus o “vira debaixo da figueira”.

Estes cinco discípulos representam todos os cristãos com as suas dúvidas e certezas acerca da pessoa de Jesus. Sobre as dúvidas, pergunta Natanael:”De Nazaré pode vir alguma coisa boa?”. O quarto evangelho está salpicado de referências recorrentes a semelhante dúvida (cf. 6, 66; 7,3-5. 27. 42. 48-49; 9,34; 11, 48). Sobre as certezas, a narrativa afirma alguns epítetos cristológicos de Jesus como “Messias”,”Rabi”,”Filho de Deus” e “Rei de Israel”. E também é importante reparar no valor que a narrativa dá às Escrituras como testemunhas de Jesus (v. 45: “Encontramos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”; cf. 5, 39: “Investigai as Escrituras, dado que julgais ter nelas a vida eterna: são elas que dão testemunho a meu favor’; cf. Lc 24,21). A observação estranha de Jesus sobre Natanael: “Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira” (v. 50) é passível de muitas interpretações, mas a mais plausível tem a ver com o costume rabínico de estudar as Escrituras à sombra amena das figueiras. Simboliza, então, que Natanael era um judeu inquieto em busca do sentido final das Escrituras como a grande profecia de Deus. Assim se explica que Jesus diga de Natanael: “Aí vem um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento” (v. 47). Neste sentido, o que está em causa é a verdade sobre o verdadeiro Israel. De agora em diante, o verdadeiro Israel não está fundado no sangue de Abraão e Jacob-Israel, pai das doze tribos de Israel (Gn 49), mas na verdade-revelação de quem descobre nas Escrituras, como Natanael, que Jesus é o “Filho de Deus e o verdadeiro Rei de Israel”4.

Na narrativa de 3,22-30 sobressaem duas realidades importantes: a questão das discussões sobre a natureza do batismo e o testemunho — uma vez mais — do Batista sobre a natureza da pessoa de Jesus. Diante das discussões dos discípulos do Batista sobre a natureza dos “ritos de purificação” (v. 25) ligados ao fato do batismo por parte de Jesus (v. 26), o Batista responde aos discípulos: “Um homem não pode tomar nada como próprio, se isso não lhe for dado do Céu… Eu não sou o Messias, mas apenas o enviado à sua frente. O esposo é aquele a quem pertence a esposa, mas o amigo do esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do esposo. Pois esta é a minha alegria! E tornou-se completa! Ele é que deve crescer e eu diminuir” (vv. 27-30).

O Batista faz três afirmações para responder às dúvidas dos seus discípulos: 1) Jesus veio do Céu (cf. 1, lss) e é por isso que pode fazer afirmações com autoridade própria, ao contrário dele; 2) Jesus é o “Messias”, enquanto que ele não passa dum simples enviado; 3) Jesus é o verdadeiro esposo, enquanto que ele não passa de um amigo que o acompanha nas bodas finais (o shoshbin), pronto para todo o serviço nas festas da boda.

A imagem do “noivo-esposo” já tinha aparecido nas Bodas de Caná (2, 9; cf. Mc 2, 19 e par.). O Senhor Deus YHWH prepara em Jerusalém o banquete final recheado das melhores carnes e do melhor vinho (Is 25,6; 55,1-2; Dt 16,15; Lc 14,15-24). Tanto as Bodas de Canaã como a parábola em ação de 3, 27-3O ou o apotegma de Mc 2,19 significam a realização escatológica das promessas messiânicas sobre as bodas do esposo (Cf. as bodas do Cordeiro em Ap 19, 7ss). O sentido escatológico está definido na expressão: e esta é a minha alegria completa. Nem admira que a narrativa termine com a lição: “Ele é que deve crescer, e eu diminuir”, aplicada sem dúvida aos “batistas” do tempo do autor que continuavam a pôr o profeta do deserto à frente de Jesus.


NOTAS


  1. Cf. Brown, Scott G.,”Bethany Beyond the Jordan: John 1,28 and the Longer Gospel of Mark”, in RB 10O (2003) 497-516; Dorsey, D. A., The Roads and Highways of Ancient Israel (The John Hopkins University Press, Baltimore 1991) 205; Ciriaci, Francesca,”Controversy Aside,Wadi Kharrar Remains a Site both Inspiring and Spiritual,’”Jordan Times, 21 March 2000; Sulidovsky, Judith., “Site of Jesus’ Baptism Found — Again: Is it the Bible’s ‘Bethany Beyond the Jordan’?, BAR 25/3 (May/June 1999) 14-15. 

  2. Sobre a santidade na Bíblia, cf. Santos Vaz, A.,” Sede santos porque Eu sou santo”. A santidade na Bíblia. Revista de Espiritualidade, 43 (2003) 165-188. 

  3. Ver também as declarações de Flávio Josefo sobre João Batista em Antiquitates Judaicae, 18, 118. 

  4. Como muito bem se exprime José Luis Espinel Marcos, Evangelio según San Juan. Introducción, traducción y comentario, (San Esteban-Edibesa, Salamanca 1998), p. 77:”Natanael prefigura , simboliza a los israelitas que reciben a Jesús, a los que el apóstol Pablo llama “Israel de Dios” (Gal 6,16), incluyendo en ese nombre a todos los cristianos, distinguiéndolos del “Israel según la carne” (1 Cor 10, 18). Estos son los que permanecen adheridos a Moisés y no recibieron a Jesús. Jesús “ha visto” a Natanael, en su interior (v. 47). Por eso dijo la fórmula de revelación :”He aquí”. 

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