Mani Grady

MANIQUEÍSMO
Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”

No princípio do terceiro século, a Igreja em Roma era vista de um modo geral como o centro de onde as interpretações da doutrina e as formas de ensinamento aceitas deviam ser passadas para as Igrejas secundárias. Era assim que Irineu de Lião pretendia que fosse. Mas foi apenas quando da formulação expressa do Papa Leão I, no século V, que se passou a considerar a autoridade do Papa assentada na sucessão direta de Pedro. Irineu de Lião já havia destacado a importância desta doutrina, mas ela ainda não havia sido sancionada por uma autoridade.

Nos séculos anteriores a Leão I, havia inúmeras controvérsias a respeito da teologia cristã, que afetaram a história subsequente da Igreja. Essas controvérsias também estiveram entrelaçadas com o estabelecimento do cristianismo como religião oficial do Império. Mas, antes de dedicarmos nossa atenção às controvérsias teológicas, que já começavam a surgir no segundo século, e às grandes mudanças históricas que teriam lugar nos destinos da Igreja cristã, há outro sistema “herético” que precisa ser estudado. Esse sistema é importante porque está intimamente vinculado ao gnosticismo, com “hierarquias”, e com o modo de viver julgado correto por aqueles que “buscavam a Verdade”. O sistema religioso de que falamos é o maniqueísmo.

O maniqueísmo não é uma heresia, segundo o significado exato do termo, já que os maniqueus não se consideravam cristãos. Mas, num certo sentido, eles faziam parte da Igreja. Sua sociedade era secreta. Seu objetivo era encontrar o vínculo interno entre todas as religiões, de modo que suas próprias regras lhes permitiam adotar a linguagem da religião dominante no lugar onde viviam e se adaptar externamente a ela.

Segundo se diz, Mani, Manes ou Maniqueu, seu fundador, afirmava ter misturado os ensinamentos cristãos com os dos magos persas. Esta deveria ser a nova religião perfeita. Mas, mesmo sendo considerada uma religião separada, o maniqueísmo tem de ser incluído aqui, por causa de seus vínculos com as doutrinas cristãs e sua influência sobre estas, tanto as “ortodoxas” quanto as “heréticas”, e por causa de seu efeito nos cristãos seus contemporâneos e nos seus descendentes de eras posteriores.

Maniqueu ou Manes nasceu na Pérsia por volta de 215 d.C. e, segundo se diz, vinha de uma família de boa posição. Ao redor de 280, ele se mudou para as províncias orientais do Império Greco-Romano, com a finalidade de ensinar e de difundir suas ideias religiosas. Tinha estudado com os magos persas, viajado à índia e ouvido falar um pouco sobre o budismo. Parece que teria aprendido a respeito do cristianismo por intermédio das seitas gnósticas basileanas e por meio das Igrejas marcionistas. A maior parte de tudo o que sabemos sobre o maniqueísmo vem de documentos romanos do século V e dos historiadores muçulmanos do século X. Havia muitos textos maniqueístas, conhecidos dos muçulmanos, que acabaram se perdendo; muitos deles foram destruídos pelos bispos cristãos.

O sistema e a mitologia de Maniqueu baseavam-se numa concepção dualista do Universo, de acordo com os ensinamentos zoroastristas dos magos persas. O mundo está claramente cheio de contradições estarrecedoras e, para os maniqueus, a única explicação possível para isso encontra-se na existência de dois reinos cósmicos separados — o reino da Luz e o reino das Trevas. No sistema maniqueísta, os aspectos físico e ético não se distinguem um do outro. A Luz e o Bem são a mesma coisa, assim como o são o Mal e as Trevas. Existem dois soberanos no Universo. O reino da Luz é governado pelo bondoso Deus primordial. O reino das Trevas é outro reinado espiritual, de onde nascem Satanás e os demônios. Os dois reinos encontram-se em oposição por toda a eternidade.

Segundo o mito maniqueísta, Satanás invadiu o reino da Luz. Para lutar contra ele, Deus criou o Homem Primordial que, para os maniqueus, era um arquétipo — um padrão original ideal, e não o primeiro ser humano. Satanás venceu seu inimigo e, apesar de o Homem Primordial ter sido salvo por Deus, Satanás lhe roubou algumas partículas de Luz e as misturou com cinco elementos do mundo das Trevas. A partir destes elementos misturados, Deus formou o mundo visível, de maneira a libertar a Luz aprisionada. O Homem Primordial e seus espíritos ajudantes moram no Sol, e as doze constelações recolhem quaisquer partículas de Luz liberadas e as derramam sobre o Sol. Ali elas são purificadas e podem alcançar a Deus.

O primeiro homem da humanidade, Adão, foi gerado por Satanás, em conjunção com o “pecado”. Satanás, porém, introduziu nele as partículas de Luz roubadas, de modo a poder dominar melhor estas centelhas. Eva foi criada para ser companheira de Adão. Também tinha dentro de si uma centelha de Luz, apesar de menor. Os espíritos celestes tomaram esse ser humano sob os seus cuidados e mandaram os eons (poderes espirituais) para ajudá-lo. Estes assumiram a forma de profetas. Assim como nos sistemas gnósticos, o seu propósito ao descer à Terra era instruir a humanidade quanto à sua verdadeira natureza.

No sistema maniqueísta, esses profetas são algumas vezes chamados de Adão, Noé, Abraão, Zoroastro, Buda, Jesus, Paulo. Maniqueu teria sido o último e o maior de todos. Os profetas só podiam salvar o homem e libertar a Luz interior conferindo-lhes a verdadeira gnose de sua natureza e suas forças. A Luz libertada subiria para Deus. Se o homem não for redimido durante sua vida, terá de passar por diversos ciclos de vida depois da morte para poder purificar-se. Quando toda Luz estiver unida com Deus, os anjos se retirarão do mundo. Urna enorme conflagração destruirá então o Universo material e uma vez mais haverá, como no começo, uma separação completa entre os dois reinos espirituais.

A concepção maniqueísta do cristianismo parece ter sido influenciada pelos ensinamentos marcionistas, no antagonismo em relação ao Velho Testamento e ao “Deus do Velho Testamento”. O Cristo docético dos maniqueus é semelhante ao dos marcionistas — “um ser divino vestido com a aparência de homem”. O docetismo também vincula os maniqueus com o gnosticismo. E o núcleo da crença maniqueísta aproxima-se do princípio gnóstico de que, dentro da humanidade, existe algo que tem de ser libertado para que ela possa retornar ao Criador. Mas, no sistema maniqueísta, era apenas por intermédio de Maniqueu, que continuava o trabalho dos ajudantes do Paraíso, que a separação entre a Luz e as Trevas poderia ser concluída — só por meio dele e de seus imitadores, “os escolhidos”.

Além disso, como nos sistemas gnósticos, havia diferentes escalões entre os fiéis. Havia pessoas de diferentes graus, que não tinham as mesmas obrigações a cumprir. No sistema maniqueísta, a ênfase parece estar sobre o que era exigido das pessoas pertencentes aos escalões mais altos, mas ninguém se encontrava na categoria dos desesperançados. Os escalões inferiores tinham uma esperança de reencarnação e, num novo ciclo de vida, poderiam esperar pela libertação.

Eram cinco os escalões dos maniqueus. Nos primeiros três encontravam-se os Mestres, os “Filhos da Mansidão”. Eram chamados de Perfccti, ou de Escolhidos. Depois vinham os administradores, os “Filhos do Conhecimento ou do Discernimento”, iluminados pelo Sol — estes eram os bispos e sacerdotes. O último escalão era formado pelos Anciãos, os “Filhos da Compreensão ou da Inteligência”, que eram os presbíteros. Juntos, os administradores e os presbíteros eram chamados de Auditori — os ouvintes. Os Mestres, ou “Filhos da Mansidão”, eram o próprio Maniqueu e seus sucessores.

O dualismo dos maniqueus e sua crença na matéria como a prisão da Luz deu origem a um ascetismo rígido em suas regras de comportamento. Não podiam comer carne, e o casamento e a procriação eram condenados, já que, gerando novas almas, outras partículas de Luz acabavam sendo aprisionadas.

Eram apenas os escolhidos, porém, que observavam esta e outras obrigações, e só eles podiam ser chamados de maniqueus no sentido estrito do termo. Os Auditori estavam sujeitos a exigências menores. Eram obrigados a se abster da mentira, do adultério, do assassinato, da dúvida e da negligência, assim como a observar um determinado número de jejuns. Além disso, podiam viver uma vida bem mais fácil. Os Auditori tinham de tratar os Perfccti com o maior respeito, chegando quase ao ponto da adoração, pois os Perfccti eram considerados Redentores. Só eles tinham conhecimento total das verdades religiosas e eram os únicos que podiam interceder pelos outros.

O maniqueísmo espalhou-se rapidamente por todo o Império Romano e penetrou fundo pela Asia. Já no princípio do século IV, o elevado número de seus membros fazia com que a seita parecesse uma das grandes religiões que reivindicavam a adesão. Havia apenas um chefe acima dos cinco escalões de fiéis — o papa dos maniqueus; e durante muitos séculos houve um papa maniqueísta na Babilônia.

Havia um grande número de marcionistas entre os convertidos ao maniqueísmo, pois muitos ensinamentos maniqueístas eram semelhantes e talvez tivessem sido originalmente tirados do marcionismo. Ao final do terceiro século, a maioria das Igrejas marcionistas havia sido incorporada pela comunidade maniqueísta.

O maniqueísmo conquistou elevado número de seguidores entre os círculos de intelectuais e pessoas cultas no Império Greco-Romano. Parecia proporcionar uma filosofia inteligente e um repúdio ao antropomorfismo das Escrituras do Velho Testamento. Em Roma e na África do Norte muitos, principalmente os estudiosos e os professores, voltaram-se para o maniqueísmo. O mais famoso convertido foi Agostinho, que, durante nove anos, foi um dos Auditori.

Agostinho tinha aprendido sobre o cristianismo quando criança, mas não se tornara cristão nem seguira as ideias cristãs quando jovem estudante. Da primeira vez em que entrou em contato com o sistema maniqueísta, sentiu que essas ideias lhe davam uma explicação satisfatória sobre o significado do mundo e o propósito de sua existência. Mais tarde, no entanto, ficou insatisfeito com as explicações dadas no mito cósmico maniqueísta. Parecia-Lhe que a concepção dos mundos rivais da Luz e das Trevas, e da guerra entre eles, só empurrava a questão do Bem e do Mal um passo atrás, sem nada responder. Ele não conseguia entender como um Deus perfeito poderia ser atacado e invadido por um Espírito das Trevas.

Quando Agostinho se tornou cristão, sua devoção ao maniqueísmo e sua subsequente rejeição a ele exerceram uma certa influência sobre a maneira como expôs a doutrina cristã, o ponto fundamental de seu ensinamento era o Poder universal e totalmente abrangente de Deus, o Criador, e a impotência e a natureza pecaminosa do ser humano, cuja maldade era intrínseca, não fazendo parte, portanto, do mundo ao seu redor. Segundo Agostinho, os homens e as mulheres não podiam culpar um poder exterior por seus próprios erros e pecados.

A invasão do Norte da Africa pelos vândalos, no século V, coincidiu com o fim do maniqueísmo nessa região, mas as comunidades maniqueístas continuaram a existir no Império Bizantino do Oriente, e muitas delas se estabeleceram na Bulgária e na Armênia. E provável que os paulicianos e os bogomils, que se encontravam nessas regiões no século V, e que eram considerados cristãos heréticos, fossem as mesmas seitas maniqueístas, usando nomes diferentes. Eles também tinham os seus Perfecti e seus Auditori, acreditavam num Cristo docético e na maldade intrínseca da matéria. Os cruzados do século XI encontraram seitas paulicianas na Síria e na Palestina, e até o século XIX ainda existiam bogomils na Rússia.

Os imperadores bizantinos publicaram éditos condenando os maniqueus à morte. Desde o final do século V, o maniqueísmo tomou um caráter “secreto”, até o seu reaparecimento entre os cátaros, no Sul da França e na Espanha, no século XI. Esse ressurgimento talvez tenha sido encorajado pelos paulicianos e pelos bogomils do Oriente, cujas ideias foram levadas para o Ocidente ao longo das rotas de comércio leste-oeste. Os teólogos da Igreja daquele tempo denominavam todas essas heresias de maniqueístas.