Enquanto objeto das Tradições, dada a condição central desta individualidade no plano de manifestação que lhe cabe, especialmente no que se refere à proposta de salvação (soteria) que estas Tradições oferecem, a noção de homem é apresentada e tratada de muitas formas nas exposições tradicionais. Em nosso site pode-se dizer que tudo se refere ao homem, seu meio — o Mundo —, e a sua origem e destino — Deus.
Do ponto de vista filosófico, a definição do homem como retirando sua realidade na Afetividade da vida, e assim como vivente que não cessa de se experimentar ele mesmo no sofrimento ou no prazer, tem uma amplitude revolucionária. No plano histórico, abalou o horizonte de pensamento que era aquele dos gregos para os quais o homem é um ser racional. É justamente por sua Razão — enquanto “provida do Logos” — que o homem se diferencia do animal. A definição cristã que faz do homem um “vivente” não tem portanto nada a ver com sua interpretação biológica atual. Para esta com efeito, o que se denomina tradicionalmente “vida” se reduz a um conjunto de processos materiais homogêneos àqueles que estuda a física. É este domínio, no qual se polariza o olhar científico, que nos aparece segundo a descrição de Mateus e de Marcos (v. O MAL DE DENTRO) como o “exterior”, onde não há qualquer mal porque com efeito não há nele nada de humano.
Ou, se se prefere, é à ideia de homem no sentido que se entende habitualmente que é preciso renunciar. Cremos que há algo como um homem porque olhamos o mundo. É neste olhar, formado por ele, que a silhueta de um homem se recorta diante dele, sobre este horizonte de visibilidade que é a verdade do mundo. Porque o homem que se vê tem seu aparecer do aparecer do mundo, as leis deste aparecer são também as suas: o espaço, o tempo, a causalidade, as determinações múltiplas que tecem cada dia as ciências da natureza e as pretendidas ciências do homem e na rede das quais ele é aprendido. Este homem é o irmão dos autômatos suscetíveis de serem construídos segundo as mesmas leis — e que o serão. Para ser semelhante a isto que somos, o que falta a este espectro, é ser vivente — não este vivente estrangeiro à vida do qual fala a biologia mas este que porta nele o viver da Vida fenomenológica absoluta, o homem que não se vê, não mais que o Cristo, o homem teve nascimento na Vida e tem de seu nascimento transcendental todos seus caracteres patéticos, o homem transcendental do cristianismo, o Filho de Deus.
ENCARNAÇÃO (MHE)
Sucede, porém, que, como fomos obrigados a reconhecer várias vezes, é a uma leitura superficial — e que não poderia ser senão provisória — que a criação bíblica se dá como uma criação do mundo na qual está implicado o homem. Tal conceito da criação explode em pedaços a partir do momento em que se trata, precisamente, do homem e que intervém a proposição transtornadora e reiterada segundo a qual Deus criou o homem à sua imagem e segundo sua semelhança. Semelhante a Deus, o homem não é produto de um processo que o põe fora de si na forma de uma imagem. O homem nunca foi posto fora de Deus. O homem não é uma imagem que se poderia ver. O homem não é visível. Ninguém jamais viu a Deus, mas tampouco ninguém jamais viu um homem — um homem em sua realidade verdadeira, um Si transcendental vivente. É somente nos processos idolátricos de profanação que se dá o esforço – aliás, vão — por vê-lo. Pois a vida nunca é visível. É porque Deus [334] é Vida que ele é invisível. É por essa razão que o homem também o é. O homem nunca foi criado, nunca veio ao mundo. Ele veio à Vida. É nisso que ele é semelhante a Deus, feito do mesmo material que Ele, assim como toda vida e todo vivente. Desse material que é a substância fenomenológica pura da própria vida.
Agostinho de Hipona
Pierre Gordon
Pierre Gordon: IMAGEM DO MUNDO NA ANTIGUIDADE