Enquanto objeto das Tradições, dada a condição central desta individualidade no plano de manifestação que lhe cabe, especialmente no que se refere à proposta de salvação (soteria) que estas Tradições oferecem, a noção de homem é apresentada e tratada de muitas formas nas exposições tradicionais. Em nosso site pode-se dizer que tudo se refere ao homem, seu meio — o Mundo —, e a sua origem e destino — Deus.

Michel Henry

Do ponto de vista filosófico, a definição do homem como retirando sua realidade na Afetividade da vida, e assim como vivente que não cessa de se experimentar ele mesmo no sofrimento ou no prazer, tem uma amplitude revolucionária. No plano histórico, abalou o horizonte de pensamento que era aquele dos gregos para os quais o homem é um ser racional. É justamente por sua Razão — enquanto “provida do Logos” — que o homem se diferencia do animal. A definição cristã que faz do homem um “vivente” não tem portanto nada a ver com sua interpretação biológica atual. Para esta com efeito, o que se denomina tradicionalmente “vida” se reduz a um conjunto de processos materiais homogêneos àqueles que estuda a física. É este domínio, no qual se polariza o olhar científico, que nos aparece segundo a descrição de Mateus e de Marcos (v. O MAL DE DENTRO) como o “exterior”, onde não há qualquer mal porque com efeito não há nele nada de humano.

EU SOU A VERDADE” [MHSV]

Ou, se se prefere, é à ideia de homem no sentido que se entende habitualmente que é preciso renunciar. Cremos que há algo como um homem porque olhamos o mundo. É neste olhar, formado por ele, que a silhueta de um homem se recorta diante dele, sobre este horizonte de visibilidade que é a verdade do mundo. Porque o homem que se vê tem seu aparecer do aparecer do mundo, as leis deste aparecer são também as suas: o espaço, o tempo, a causalidade, as determinações múltiplas que tecem cada dia as ciências da natureza e as pretendidas ciências do homem e na rede das quais ele é aprendido. Este homem é o irmão dos autômatos suscetíveis de serem construídos segundo as mesmas leis — e que o serão. Para ser semelhante a isto que somos, o que falta a este espectro, é ser vivente — não este vivente estrangeiro à vida do qual fala a biologia mas este que porta nele o viver da Vida fenomenológica absoluta, o homem que não se vê, não mais que o Cristo, o homem teve nascimento na Vida e tem de seu nascimento transcendental todos seus caracteres patéticos, o homem transcendental do cristianismo, o Filho de Deus.

ENCARNAÇÃO (MHE)

Sucede, porém, que, como fomos obrigados a reconhecer várias vezes, é a uma leitura superficial — e que não poderia ser senão provisória — que a criação bíblica se dá como uma criação do mundo na qual está implicado o homem. Tal conceito da criação explode em pedaços a partir do momento em que se trata, precisamente, do homem e que intervém a proposição transtornadora e reiterada segundo a qual Deus criou o homem à sua imagem e segundo sua semelhança. Semelhante a Deus, o homem não é produto de um processo que o põe fora de si na forma de uma imagem. O homem nunca foi posto fora de Deus. O homem não é uma imagem que se poderia ver. O homem não é visível. Ninguém jamais viu a Deus, mas tampouco ninguém jamais viu um homem — um homem em sua realidade verdadeira, um Si transcendental vivente. É somente nos processos idolátricos de profanação que se dá o esforço – aliás, vão — por vê-lo. Pois a vida nunca é visível. É porque Deus [334] é Vida que ele é invisível. É por essa razão que o homem também o é. O homem nunca foi criado, nunca veio ao mundo. Ele veio à Vida. É nisso que ele é semelhante a Deus, feito do mesmo material que Ele, assim como toda vida e todo vivente. Desse material que é a substância fenomenológica pura da própria vida.

Agostinho de Hipona

Estas três coisas, memória, inteligência, vontade, como não são três vidas mas apenas uma só, nem três mentes, mas uma só mente, não são, por conseguinte, três substâncias, mas uma só substância. (…) Pois me lembro de que tenho memória e inteligência e vontade; e entendo, quero e lembro; e quero querer e lembrar e entender; e lembro ao mesmo tempo toda minha memória e minha inteligência e minha vontade. Pois aquilo que de minha memória não lembro, não está em minha memória. Portanto, nada está tanto na memória quanto a própria memória. Analogamente, quando entendo estas três coisas, as entendo todas ao mesmo tempo. Pois não deixo de entender nenhuma das coisas inteligíveis, salvo o que ignoro. Ora, o que ignoro, nem o lembro nem o quero. Portanto, todas aquelas coisas inteligíveis que não entendo, tampouco as lembro nem as quero. De modo contrário, quantas coisas inteligíveis lembro e quero, consequentemente as entendo. Minha vontade, pois, compreende toda minha inteligência e toda minha memória, enquanto uso de tudo o que entendo e lembro. Por esta razão, quando todas estas coisas são compreendidas alternativamente por cada uma, é igual cada uma delas a todas as demais, e todas elas separadamente, ao mesmo tempo, a todas, e estas três coisas são uma só, uma vida, uma mente, uma essência. (De Trinitate, XI, 11.)

Pierre Gordon

Pierre Gordon: IMAGEM DO MUNDO NA ANTIGUIDADE

O homem que vemos e tocamos não é o homem real; ele guarda, nas dobras dele mesmo, um ser dinâmico, que o comanda, que lhe sobrevive, que conhece as coisas por outras modalidades e cuja ação não está sujeita às mesmas constrições. Esta força interior porta segundo os povos os nomes mais diversos. Frequentemente, multiplica-se por ela mesma a fim de sublinhar bastante os aspectos; aloja-se assim no centro invisível do homem, até seis ou sete princípios dinâmicos. Estas variantes não mudam nada à concepção essencial, que é que a realidade do homem, no que concerne tanto o conhecimento quanto o poder, não é o aspecto fenomenal. Abaixo está oculta uma fonte de vida.