Filho de Deus

O cristão vê a humanidade do homem – a humanitas do homo – a partir de sua distinção da Deitas. Na história da salvação ele é homem como “filho de Deus”, que, em Cristo, percebe e assume o apelo do Pai. (CartaH)


Jean Borella

Jean Borella: A CARIDADE PROFANADA

Não são somente considerações de ordem cosmológica que convidam a reportar ao Filho uma função de relação prototípica. O próprio texto de São João disto fornece um testemunho mais importante ainda e mais decisivo, além daquele que estabelece seu título de Filho de Deus, do qual dependem todas as outras considerações. São João diz com efeito: “E o Verbo estava junto a Deus”. O latim “apud”, como o português ao lado, rendem mal o grego “pros” construído com o acusativo (pros ton theon), preposição notável, posto que se esperaria normalmente “para” e o dativo. Ora esta preposição significa ao mesmo tempo: voltado para, em presença de, em relação com. Vê-se claramente o interesse teológico destas significações. Notemos por outro lado que a palavra Deus está aqui precedida do artigo: o Deus, enquanto no versículo seguinte: “e o Verbo era Deus”, Deus está escrito sem artigo. A maior parte dos empregos similares do grego neotestamentário mostram que Deus (sem artigo) designa a natureza divina, e “o Deus” designa Deus o Pai. Assim, em seu Prólogo, São João afirma: a identidade do Verbo à Essência divina, e sua distinção de “relação” do Pai. Esta ideia de relação nos parece ainda mais certa dado que em todos os casos onde o grego neotestamentário emprega “pros” (e o acusativo) diante das palavras “o Deus” ou “o Pai”, o contexto indica um sentido particular de relação do Filho ao Pai, ao passo que onde, para significar “junto a Deus”, o Evangelho utiliza a preposição “para”, nos parece que esta ideia de relação ao Pai está ausente. O exemplo mais característico se encontra em Jo XVII,5: “Pai, glorifica-me junto de ti da glória que tinha junto de ti”. Se João aqui utiliza “para” é, pensamos, que se trata aqui não da glória que pertence ao Filho em virtude de sua relação ao Pai, mas daquela que lhe revem devido a sua identidade à Essência divina, identidade que o faz igual ao Pai. Em relação à Essência divina, o Pai e o Filho são “para”, uma ao lado do outro; mas em relação ao Pai, o Filho é pros ton theon, em relação de proximidade com Deu o Pai. O versículo joanico poderia portanto ser traduzido, glosando a tradução: “o Verbo estava Próximo de Deus o Pai, a Relação de proximidade ao Pai”.

Logo pode-se apropriar ao Verbo, no seio da Trindade, a função da ordem de relação subsistente, tão bem que tudo aquilo que, na Trindade, é da ordem da relação subsistente, refere-se, de certa maneira ao Filho, primeira relação da Essência divina com ela mesma. (Correlativamente, tudo o que é da ordem da hipóstase referencia-se ao Espírito Santo, como ao Pai refere-se o que é Deidade1. Esta função, tal como tentamos descrevê-la brevemente constitui, para nossa pesquisa, uma aquisição importante. Outras considerações a ilustrarão, como o mostrará em seguida este estudo. Mas desde já ela significa que o Filho é o fundamento metafísico da relação de proximidade.

Michel Henry


  1. A teoria das funções trinitárias permite compreender igualmente que a teologia latina, em considerando a Trindade segundo a pura racionalidade das relações, a encara do ponto de vista do Filho, enquanto a teologia grega, em considerando-a segundo as hipóstase, a encara do ponto de vista do Espírito Santo.