viver

A vida é sem porquê, pois não tolera em si nenhum fora de si ao qual ela deveria manifestar-se e, assim, ser o que é — ao qual ela teria de perguntar por que ela é o que é, por que, por desígnio de que ela é vida. Mas, se a vida não deixa fora de si nenhuma realidade exterior a ela — à qual teria de indagar a razão de sua manifestação e, assim, de seu ser, nenhum horizonte de inteligibilidade a partir do qual lhe fosse necessário voltar-se para si para se compreender e se justificar a si mesma –, é unicamente porque ela traz, em si, esse princípio último de inteligibilidade e de justificação. É por isso que ela se revela a si mesma de tal modo que, nessa revelação patética imanente de si, é ela também que é revelada. A autorrevelação da vida é sua auto justificação. Se a vida é sem “porquê”, se ela não pergunta a nada nem a ninguém — a nenhum saber ek-stático, a nenhum pensamento intencional em busca de um sentido qualquer, a nenhuma ciência, o porquê de sua vida –, é porque, experimentando-se a si mesma, não é somente nem antes de tudo o que ela experimenta quando se experimenta a si mesma, mas o próprio fato de se experimentar a si mesma, a felicidade dessa experiência que é seu gozo de si, o que lhe diz que ela é boa. Tal é o enraizamento fenomenológico das proposições radicais de Mestre Eckhart: “Por mais dura que seja a vida, quer-se, no entanto, viver (…). Mas por que vives tu? Para viver, dizes tu, e todavia não sabes por que vives. Tão desejável é a vida em si mesma, que ela é desejada por si mesma”. E que a justificação suprema seja não somente o que a vida experimenta quando se experimenta a cada vez a si mesma, mas o próprio fato de se experimentar a si mesma e viver: eis o que atesta a própria vida [327] na medida em que subsiste em cada circunstância, mesmo no máximo do sofrimento e da infelicidade. Pois somente uma justificação absoluta, uma autojustificação fenomenológica enquanto autorrevelação — contra a qual nada tem poder e que obra, assim, em toda modalidade da vida, tanto a mais horrível como a mais nobre – autoriza a asserção-limite de Eckhart: “Mesmo aqueles que estão no inferno, nos tormentos eternos, anjos ou demônios, não querem perder a vida; pois sua vida para eles é tão nobre (…).”1 (Michel Henry, MHE)

  1. Traités et Sermons. Trad. francesa Aubier et Molitor. Paris, Aubier, 1942, p. 48.[]