Joaquim Cerqueira Gonçalves — Homem e Mundo em São Boaventura
Excertos do Capítulo I — O Tema do Mundo
O mundo como ‘problema
Não é intenção nossa levantar, no momento, a questão filosófica da natureza do mundo, o que requereria outro espaço e esquema diferente. Contentamo-nos, para já, com um preliminar a esse tema, a desenvolver, depois, segundo a perspectiva de S. Boaventura.
Aceitamos o facto de o mundo ter sido um problema1 na historia da filosofia e tentaremos, a partir daí, extrair os processos e intenções fundamentais que presidiram à sua formulação.
A verificação de que ocupou quase sempre, por forma directa ou indirecta, o pensamento filosófico denota bem quer a impossibilidade de a inteligência prescindir dele quer o relevo com que se impõe ao espírito humano.
Efectivamente, o ser e o mundo revelam-se como os grandes horizontes da inteligência humana, ou seja, como o seu alimento essencial.
A aproximação destas duas noções não surge artificiosa ou casualmente. Indica, por um lado, a importância do mundo para a dinâmica filosófica, semelhante à da instância do próprio ser, e manifesta, por outro, a margem de extensão que acompanha o conceito de mundo, á maior da temática filosófica, depois da noção de ser2.
Tal extensão é inevitàvelmente acompanhada de uma larga margem de ambiguidade e de polivalência de significados3. Se não era intenção nossa analisar, por agora, o problema do mundo, tarefa demasiadamente ambiciosa, aceitando-o antes como um facto na história da filosofia, nem por isso a dificuldade fica atenuada, pois, se o tema era de per si complexo, não o será menos a interpretação da cópia de significados que lhe têm sido atribuídos, ao longo do itinerario especulativo.
Com efeito, desde a consideração vulgar até aos apurados esquemas de ordem científica e filosófica, o mundo é uma realidade proteica, tomando uma variedade de perspectivas consoante as épocas e os autores.
E possível registar algumas interpretações definitivamente integradas na história do pensamento, mas, além da dificuldade de as seleccionar, subsistirá o problema da sua exacta função e significado. Lembramos, entre outras, o mundo como espaço, onde as coisas se encontram e os acontecimentos se sucedem, como horizonte dos entes e das inteligências, como realidade criada oposta ao Ser divino, como ideia reguladora, na concepção kantiana, como espírito objectivado, no esquema hegeliano…
Perante a dificuldade de uma enumeração completa e da determinação rigorosa do significado de cada uma, é talvez preferível, e certamente mais útil, auscultar as linhas de intenção que inspiram a génese desse tema. Será também uma forma indirecta de definir o que é perene e histórico em tal filosofema.
Julgamos, com efeito, serem essenciais à formulação do problema do mundo o sentido de: a) Relação ao homem; h) Totalidade organizada; c) Horizonte absoluto ou referência a um horizonte absoluto.
Uma rápida leitura deste esquema denunciaria fácilmente incompatibilidade entre a primeira e as outras duas alíneas. De facto, a referência do mundo ao intelecto humano dificultaria a visão do mundo como totalidade e, a ser exclusiva essa relação, anularia também qualquer outro ponto de referência. Semelhante conflito seria possível descortinar em todas e cada uma dessas relações. Existe, efectivamente, uma tensão entre elas, aliás essencial à dinâmica do problema.
Mas, se analisarmos o processo da sua génese, verificaremos a presença simultânea dessas três linhas de intenção. Partindo, indiferentemente, de qualquer das duas primeiras, será inevitável o encontro de todas as outras.
Se, por sugestão metodológica, começarmos pela alínea a), não será penoso inferir que a inteligência humana tem real necessidade de se exprimir através do mundo como totalidade, ora tomando-o como seu ponto de referência, ora referindo-o. a um outro horizonte. E-lhe tão urgente e natural revelar-se mediante ele que o mundo passa a constituir um perigo para a sua própria actividade. Ela terá a tentação de se fechar aí, constituindo-o em horizonte absoluto.
Mas um mundo onde a inteligência se encerra é forçosamente um mundo aberto à inteligência e, portanto, dirigido a uma referência absoluta, que não poderá ser o mundo4.
Com efeito, uma inteligência sem mundo seria um nada de inteligência; um mundo sem inteligência seria um nada de mundo; uma inteligência fechada no mundo não seria inteligência, mas apenas a inteligência de um mundo dado. A inteligência do mundo será, pois, uma abertura a um horizonte absoluto; mas o horizonte de uma inteligência sem mundo será um horizonte de nada.
O nosso esquema em três alíneas pretende acentuar a implicação recíproca das duas primeiras e a necessidade de se abrirem a uma terceira, a fim de possibilitar e justificar a relação entre o homem e o mundo.
Cada uma delas tenderá a constituir-se horizonte absoluto, inclusive a própria inteligência, dificuldade evitável se o espírito humano viver da fidelidade ao seu inesgotável dinamismo, em constante referência a um Sujeito absoluto.
A rotura entre o homem e o mundo, bem como a referência a um horizonte diferente dos dois, é condição essencial da possibilidade tanto da relação como de cada um dos seus dois membros.
Nem o homem nem o mundo teriam sentido sem um movimento de antropomorfização e de mundanização5. O espírito sem mundo seria uma realidade sem conteúdo, e um mundo vazio de espírito tornar-se-ia inconcebível.
Esta intimidade de implicações recíprocas é de tal forma essencial que a corrente fenomenológica julgou tudo compreender a partir dessa relação, deixando de ter sentido, nesse caso, a subordinação do mundo a um horizonte absoluto6.
A despeito do valor e importância dessa verificação7, parece-nos não ser possível explicar, a partir daí, nem os membros da relação, nem a própria relação, que a fenomenologia, aliás, julga não necessitar de fundamento, porque ela mesma o constitui8.
Se é artificioso erigir em horizonte absoluto qualquer dos membros da relação, difundindo luz a tudo mais a partir dele, também não parece viável constituir em princípio a própria relação, fundamentalmente ambígua e até paradoxal.
O reconhecimento da relação não elimina todas as interrogações possíveis e necessárias, antes as estimula. Ela não poderá ser solução de um problema, mas princípio dele.
Admitida, porém, a impossibilidade de partir de — ou de ficar em — qualquer dos membros da relação, ou de tomar esta como princípio fundante, resta-nos, como é óbvio, a abertura a um horizonte absoluto. Deparamos, no entanto, com uma dificuldade metodológica, à qual não se pode ser indiferente9. Donde e como partir em direcção a esse ponto de referência absoluto? Como dissemos, este será um horizonte de nada se, de facto, não for um horizonte de inteligência e mundo. Mas, partir de uma ou de outro é uma atitude que não corresponde à realidade, visto não terem sentido separadamente, e partir da relação é porventura correr o risco de nunca encontrar nem o homem nem o mundo10, pois nela existe uma rotura, por nós considerada a própria condição de sua possibilidade.
NOTAS
O mundo não tem sido apenas um problema da história da filosofia, mas, para além do facto, ele aí se encontra porque é, de direito, um problema filosófico. S. Breton não deixa de o considerar como tal — Le monde comme problème — esclarecendo a propósito : «Constitué en totalité, le monde ne bénéficie pas pour autant de l’apodicticité.» (Monde et nature, in «Idée de monde et philosophie de la nature», p. 26).
Ao falarmos de problema, recordamo-nos das palavras de J. P. Sartre, ao fazer a análise da origem da negação: «Ainsi la question est un pont jeté entre deux non-êtres: non-être du savoir en l’homme, possibilité de non-être dans l’être transcendant.» (L’Etre et le Néant, Paris, 1957, p. 39). Se não são, porventura, generalizáveis a toda a questão filosófica, estas palavras traduzem, todavia, a natureza da interrogação do homem sobre o mundo, mostrando, de certo modo, como interrogante e interrogado vivem dessa relação, em si mesma contingente. ↩
Ser e mundo substituem-se frequentemente na especulação filosófica. Os pensadores de tendência metafísica julgam encontrar — e salvar — o mundo na esfera do ser, enquanto outras correntes, onde sobressai a da fenomenologia, para evitarem um suposto abstractismo metafísico, procuram não se desligar do mundo, visto ser aí possível beneficiar do conteúdo da presença das coisas. «Por outras palavras, à filosofia, tal como a concebe Husserl, ou à fenomenologia — tal é a designação husserliana do seu próprio pensamento filosófico — compete o estudo do mundo que é pressuposto pelas ciências mundanas ou positivas. Se a filosofia pretérita, a metafísica dogmática, portanto, era movimentada pela questão fundamental da origem do ente (Seiendes), a fenomenologia, por seu termo, pergunta pela origem do mundo.» (A. F. MORUJÃO, Mundo e Intencionalidade. Ensaio sobre o Conceito de Mundo na Fenomenologia de Husserl, Coimbra, 1961, p. 45). ↩
M. Heidegger anota o equívoco da palavra mundo, possível de debelar se se destrinçarem os diversos níveis — segundo ele quatro — em que a multidão de significados costuma situar-se (Sein und Zeit, parte I, secção I, capítulo III, § 14, Hala, 19415, ps. 63-66). ↩
O nosso intuito tem consistido em uma análise do processo da génese do problema do mundo, não pretendendo de forma alguma definir o que ele é essencialmente. O esquema desse processo certifica-nos já da impossibilidade de uma tal determinação, visto a ideia de mundo resultar sempre daquela relação dinâmica, esquematizada em três alíneas.
Quando se põe o problema nestes termos, avulta logo uma vetusta quaestio que pretende reduzir todas as dificuldades a uma decisão pro ou contra o idealismo. Ora, temos já suficientes argumentos quer para não derivar o mundo da consciência quer para impossibilitar a redução desta àquele, situação que Pascal exprimiu de forma considerada clássica: «(…) par l’espace, l’univers me comprend et m’engloutit comme un point; par la pensée, je le comprends.» (Pensées, ed. Brunschvicg, n. 348). Uma perspectiva metafísica do mundo convencer-nos-á certamente do alcance realista da ideia que dele alimentarmos.
Cingindo-nos ao nosso método de análise, diríamos que aparece a ideia de mundo quando se estiver em presença duma totalidade organizada referida ao homem, sendo tal entidade um horizonte de referência ou horizonte referido a um outro de carácter absoluto. ↩
Devido ao sentido ético que monopolizou este termo, poderia ser aqui interpretado como um neologismo. Servimo-nos dele, porém, a fim de o contrastar com o movimento de antropomorfização, traduzindo ambos essa relação dinâmica entre o homem e o mundo, com tendência para a hegemonia ora de um ora de outro, que M. Merleau-Ponty descreve nos seguintes termos : «La chose et le monde n’existent que vécus par moi ou par des sujets tels que moi, puisqu’ils sont l’enchaînement de nos perspectives, mais ils transcendent toutes les perspectives parce que cet enchaînement est temporel et inachevé. Il me semble que le monde se vit lui-même hors de moi, comme les paysages absents continuent de se vivre au-delà de mon champ visuel et comme mon passé s’est vécu autrefois en deçà de mon présent.» (Phénoménologie de la perception, Paris, 194511, ps. 384s.). ↩
Poder-se-ia descrever uma curva, delineando ora uma progressiva aproximação entre o homem e o mundo, ora uma mais acentuada consciência dela na história da filosofia. O ponto de partida podia ser a filosofia grega, onde o mundo desfrutava ainda de certos caracteres absolutos.
Tal progresso não é de forma alguma rectilíneo, como o faria supor um errado esquema, vendo a evolução do pensamento humano numa transferência do plano do ser para o do conhecer.
Contribuiu decisivamente para a acentuação da dita curva o pensamento científico, deixando de ver o mundo como um absoluto para o considerar como a síntese das relações do homem com a natureza. ↩
Sem diminuir o valor e o ineditismo da fenomenologia, têm sentido estas palavras de E. Beaucamp, ao mostrar a relação estreita entre o homem e o mundo na Bíblia: «L’idée du monde extérieur paraît être une abstraction moderne que les auteurs inspirés, en tout cas, ont ignoré. La Bible ne sait pas isoler le contenant du contenu ou, inversement, le vivant de son milieu.» (La Bible et le sens religieux de l’univers, p. 177).
Tal ideia é já fortemente vincada por Aristóteles, para quem a alma era de certo modo todas as coisas (De Anima III, 8; 431b21). ↩
O nosso desacordo relativamente à posição fenomenológica situa-se, sobretudo, no nível de radicalidade, pois enquanto ela parte da — ou chega à — relação, nós insistimos na necessidade de fundamentar a própria relação. Mas esta exerce, afinal, naquela corrente filosófica, o mesmo papel que uma explicação mais profunda desempenha em outros sistemas filosóficos. Deve até perguntar-se se, fundamentalmente, com essa atitude, a fenomenologia superou as dificuldades da filosofia anterior, como pretende. «Le monde du phénoménologue, quelle que soit l’obédience dont il se réclame, se présente, en fin de compte, comme l’inconditionné sur lequel se fonde tout le reste. Le phénoménologue serait-il un kantien qui s’ignore? Ou bien, puisque l’exigence qui s’affirme ici déborde le kantisme, ne retrouvons-nous pas, dans les deux thèses, la requête d’un ultime et la conclusion d’une analyse régressive, d’une resolutio, comme disaient les médiévaux? C’est cela que nous appelons le monde.» (S. BRETON, Monde et nature, p. 12).
Mais tarde, ao recorrermos ao plano do ser como mediação, a fim de iluminar a própria relação homem-mundo, continuarão a contar muito, para nós, as reflexões da fenomenologia, de grande valor descritivo. ↩
Este problema metodológico é estimulado pela paradoxal situação em que o homem se encontra: por um lado, superior ao mundo enquanto o interroga e, por outro, elemento dele. Tal dificuldade foi claramente notada por J. Merleau-Ponty, ao referir-se a Newton: «Sans défaut lorsqu’elle considère l’Univers «à vol d’oiseau», la méthode newtonienne, nous dit Bondi, montre sa «faiblesse intrinsèque» quand il s’agit de savoir comment l’Univers apparaît à un observateur situé dedans et qui prend part à son mouvement, c’est-à-dire à nous-mêmes.» (Cosmologie du XXe siècle, Paris, 1965, p. 132). ↩
Esta última dificuldade é comentada por J. P. Sartre, em tom de crítica a Husserl: «Interroger «l’expérience», comme Kant, sur ses conditions de possibilités, effectuer une réduction phénoménologique, comme Husserl, qui réduira le monde à l’état de corrélatif noématique de la conscience, c’est commencer délibérément par l’abstrait. Mais on ne parviendra pas plus à restituer le concret par la sommation ou l’organisation des éléments qu’on en a abstraits (…).» (L’Etre et le Néant, p. 38). ↩