Heresias do século IV

Excertos da tradução em português de José Antonio Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies

O Édito da Tolerância, promulgado por Constantino em 311 d.C., trouxe a paz física aos cristãos do Império. Mas foi esta mesma segurança e ausência de perigo que deu lugar à controvérsia interna. O século IV foi uma época de intensos debates teológicos.

A Igreja católica, no sentido de uma igreja “universal”, baseada na tradição apostólica, estava começando a ser uma instituição organizada, com seu próprio cânon de Escrituras e um corpo de doutrinas declaradas. As disputas religiosas achavam-se então centradas na formulação dessas doutrinas, apesar de a diferença em formulação levar inevitavelmente à diferença quanto à crença. No entanto, as divergências, que acabariam por se transformar em heresias, eram diferentes das divergências dos séculos anteriores.

As heresias tendem a se manifestar quando se levantam questões que parecem estar além da lógica humana. As heresias primitivas surgiram ao redor do eterno problema do Bem e do Mal — como compreendê-lo e como interpretar o ensinamento cristão para explicá-lo. As heresias do século IV surgiram de outro problema que parecia impossível de responder, apesar de ser, neste caso, uma questão doutrinária — o significado da Trindade e da Natureza de Cristo.

A ideia do que constitui uma heresia mudou bastante. Até o século IV, a “Igreja ortodoxa” — a “Grande Igreja”- concentrava-se na tarefa de preservar a unidade e a continuidade do ensinamento cristão. Atacava o que era considerado “heresia”, porque tal “heresia” poderia dividir e enfraquecer a continuidade cristã. Mas, a partir de então, uma “heresia” passava a significar “uma negação direta daquilo que é verdadeiro”. “Estamos evitando que a Tradição seja mal compreendida” tem uma ênfase diferente de “Esta é a exposição da Verdade, e tu a estás negando”.

Mas já no segundo século começaram a surgir os questionamentos sobre a Natureza de Deus, revelada nos ensinamentos do Novo Testamento, e estas especulações e discussões continuaram pelos séculos subsequentes. No entanto, apesar de existirem diferentes escolas de pensamento sobre estas questões, que recebiam diferentes nomes, a princípio, nenhum desses ensinamentos foi considerado “ortodoxo” e, portanto, nenhum deles poderia ser rotulado de “herético”.

As palavras rituais (tiradas de Mateus 28,19): “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, foram usadas no batismo desde os primórdios do cristianismo. Justino Mártir, no começo do segundo século, descreve os novos convertidos como aqueles que “são lavados com água cm Nome de Deus Pai e Senhor do Universo, e dc nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo. Estas palavras exigem uma explicação.

A prática de cultuar Jesus como Filho de Deus estava se tornando aos poucos a forma aceita de devoção nas reuniões cristãs. Os teólogos tinham de explicar aos pagãos curiosos o que isto significava, sob a pena de o cristianismo lhes parecer uma forma de retorno ao politeísmo. Para os judeus-cristãos, ensinados desde a infância de que eram os defensores do monoteísmo entre as nações pagãs circundantes, uma explicação também se fazia necessária. A ideia de um Cristo divino tinha de ser conciliada com a Unidade de Deus. Explicações conflitantes passaram a multiplicar-se a partir do segundo século em diante, formando o pano de fundo das grandes controvérsias do século IV.

Foi o desejo de enfatizar a Unidade de Deus, e de evitar qualquer processo que pudesse levar ao abandono do monoteísmo, que deu origem a uma escola de pensamento conhecida como monarquianismo. Este termo foi usado primeiro por Tertuliano, autor cristão que viveu no final do segundo século. Ele chamou de “monarquianistas” aqueles para quem a ideia da soberania única de Deus era de tamanha importância que todas as explicações a respeito da Natureza de Cristo tinham de ser dadas sob essa luz.

Visando ater-se à ideia rígida da Unidade de Deus, os monarquianistas aceitavam o que se chamava de visão “adocionista” de Cristo, ou o que se conhecia por pneumos. Surgira uma divisão entre aqueles que consideravam Cristo um Homem habitado pelo Espírito de Deus, e os que acreditavam que um Espírito divino tinha assumido a carne humana. Os adocionistas aceitavam a primeira ideia e consideravam Cristo um ser humano, ainda que concebido de maneira milagrosa, preenchido pelo Poder Divino até o máximo grau. O Homem Jesus, por ser tão completamente obediente a este Poder, teria sido elevado à condição de Filho de Deus. Os monarquianistas-adocionistas afirmavam que, com esta concepção de Cristo, não havia dificuldade alguma em compreender a Unidade de Deus Pai.

A outra escola de pensamento, a dos chamados “pneumos”, afirmava que Cristo na Terra era a manifestação temporária, em forma humana, de um Redentor Divino. Mas os monarquianistas, visando garantir a mais rígida observação do monoteísmo, adotaram o que passou a ser chamado de visão modalista de Deus que, nas Igrejas orientais, foi mais tarde chamada de sabelianismo, por causa de seu protagonista, Sabélio. Segundo esta concepção, “o Pai” e “o Filho” eram considerados designações diferentes do mesmo sujeito — isto é, diferentes aspectos ou modos do Deus Uno. Antes da criação do mundo, Deus devia ser considerado em Seu aspecto de “Pai” e, em relação a Seu aparecimento no mundo, como “Filho”. Em seu ataque contra os monarquianistas-modalistas, Tertuliano afirmava que o resultado lógico de seus pontos de vista era de que Deus Pai, Ele próprio, tinha sofrido e morrido na cruz: e isto dera aos modalistas o apelido de “patripassionistas”. Apesar de haver um certo caráter de ridicularização envolvido neste ataque, os líderes da Igreja temiam um perigo verdadeiro de parte dos modalistas. Se a substância divina era destacada de maneira tão exclusiva, o Filho e Salvador não teria substância em si mesmo. Sua humanidade acabaria desaparecendo. Ao final do terceiro século, Sabélio e seus seguidores monarquianistas eram vistos como heterodoxos. Sabélio foi condenado, mas o sabelianismo, sob diversas formas, esteve presente nas disputas teológicas do século seguinte, aumentando suas complicações.

Os problemas cresciam inevitavelmente enquanto os escritores da Igreja continuavam a procurar uma terminologia filosófica apropriada para suas exposições. Mas, durante todo esse tempo, os cristãos reuniam-se para orar e para celebrar o culto; a instrução estava sendo dada; tentava-se viver a vida conforme os preceitos cristãos. Enquanto os líderes da Igreja e os teólogos tentavam encontrar as formulações corretas, a crença cristã e as formas de liturgia iam tomando uma forma permanente nas igrejas. Porque, já no segundo século, Cristo, como Redentor da humanidade, era cultuado nas reuniões regulares dos cristãos e pedidos de orações eram endereçados a Ele.

Para alguns monarquianistas da escola adocionista, isto parecia ser uma tendência perigosamente antimonoteísta. Paulo de Samosata, Patriarca da Antioquia no final do terceiro século, não permitia orações a Jesus Cristo em sua igreja, nem que se cantassem hinos em honra de Cristo. Só Deus deveria ser adorado. As orações deviam ser feitas através de Cristo, intermediário entre Deus e os homens.

Mas Paulo de Samosata entrou em conflito com o Papa, foi condenado e exilado. Neste conflito sobre a Natureza de Cristo, foi usada pela primeira vez a palavra homoousios (de substância parecida) — uma palavra que assumiria grande importância nas disputas do século IV. Nessa ocasião, porém, o termo foi rejeitado.

O ensinamento e os textos de Orígenes, o jovem líder da escola catequética alexandrina, tinham exercido uma influência dominante sobre os pensadores cristãos do final do segundo e começo do terceiro séculos. Aqueles que, como Paulo de Samosata, sublinhavam a humanidade de Cristo acima de tudo, atacaram os ensinamentos de Orígenes por enfatizar Sua divindade, apesar de que, por mais estranho que pareça, os ensinamentos de Orígenes seriam mais tarde atacados e condenados pelos homens da Igreja, para quem Cristo era igual a Deus, e consideravam que Orígenes tinha tornado o Filho um subordinado.

Segundo a explicação de Orígenes, a Santíssima Trindade está unida em uma só Divindade — o Pai, não gerado; o Filho, a Sabedoria e o Poder de Deus que dirigem o Universo; e o Espírito Santo, trazido à existência pelo Pai através de Cristo.

Os gnósticos do segundo século tinham levantado seriamente a questão dos aspectos humano e divino de Cristo. Em suas escolas de pensamento, Cristo era apenas um Espírito divino, parte da hierarquia dos seres celestiais, cuja vinculação com a Terra podia ser compreendida apenas em termos de um mito cósmico. Orígenes, apesar de simpatizar com muitos ensinamentos gnósticos, escreveu procurando contradizer estas ideias em particular, considerando-as um perigo para a autêntica tradição cristã. Assim, em suas explicações sobre a Natureza de Cristo e do relacionamento de Cristo com Deus, Orígenes não estava preocupado, como os monarquianistas, em defender o conceito de monoteísmo, mas em dar o verdadeiro significado da Salvação.

O ensinamento de Orígenes centralizava-se na tese de que “o homem como um todo não teria sido salvo a menos que Cristo tivesse tomado sobre si o homem inteiro”. Isto acabou se tornando um argumento de importância vital nos debates posteriores. Apesar de Orígenes acreditar, como os gnósticos, num Cristo divino, Filho de Deus, descido do céu, ele também afirmava que Cristo devia ter tido a alma, a mente e o corpo de um homem. À essência do cristianismo, para Orígenes, era que Cristo “tornara sua humanidade divina como primeiro fruto da esperança que é nossa ” (Orígenes, Sobre as doutrinas fundamentais).

Por mais profundo que fosse o ensinamento de Orígenes, ainda parecia deixar sem resposta a questão de como podiam existir em Cristo tanto o Divino quanto o humano, e qual era a relação de Jesus Cristo com o Deus Uno Onipotente.

Orígenes aceitava a ideia de que o Logos — o Filho, conforme é descrito no Evangelho de João — era o mediador entre Deus e o homem e portanto, em certo sentido, subordinado a Deus, o Pai de Todos. E que o Filho, o Poder orientador de Deus, fora gerado da Essência de Deus. Este “subordinacionismo” foi uma das chamadas “heresias” que causaram a condenação dos textos de Orígenes no século V.

As relações entre Cristo e Deus e entre Cristo e o homem, formaram a substância das controvérsias dos séculos IV e V e, através destas, a das heresias do mesmo período.

Ao estudar essas controvérsias e os concílios que as tentaram resolver, descobrimos com frequência que as intermináveis dissidências, condenações e contracondenações não passavam de disputas entre os teólogos quanto ao detalhado uso das palavras e sobre diferenças mínimas na “expressão do inexprimível”.

Hilário de Poitiers escreveu ao imperador Constantino queixando-se de que “todos os anos, não, todas as luas, criamos novos credos para descrever mistérios invisíveis. Arrependemo-nos do que fazemos, defendemos aqueles que se arrependem, anatematizamos aqueles que antes defendíamos. Condenamos as doutrinas dos outros em nós mesmos ou as nossas nas dos outros; e, retalhando-nos mutuamente uns aos outros, causamos a ruína de todos.” (Hilarius e Constantium, I ii C 4, 5, citado na obra de Gibbon, Decline and Fall of the Roman Empire, vol. II). As tentativas de tornar concisos os pronunciamentos lógicos a respeito dos “mistérios invisíveis” levaram de modo inevitável a dificuldades lógicas. Toda formulação traz consigo suas próprias contradições, ou então nada diz.

Os ensinamentos dos Evangelhos diziam aos homens o que deveriam fazer para que viesse o Reino dos Céus; não explicavam uma filosofia religiosa nem estabeleciam uma teoria sobre o Universo. Já que os seres humanos sempre fizeram perguntas, aqueles que aceitavam e ensinavam a nova religião se empenhavam em encaixar suas crenças e sua obediência numa forma cosmológica, que fosse compreensível para eles e para aqueles que os ouviam. As deduções continuaram sendo tiradas a partir do ensinamento original. Era inevitável que as disputas surgidas desta luta em busca de um sistema fossem destrutivas para a unidade cristã. Mas as mentes foram feitas para a indagação, e as mentes inquisitivas não podem ser impedidas de tentar buscar a compreensão.

No século IV, a parte oriental do Império Romano era o centro principal de discussão teológica. Os gregos, que haviam adotado a nova religião, trouxeram consigo o amor pela disputa e pela definição lógica das coisas.

A cultura bizantina era essencialmente religiosa e, para o bizantino do século IV, o “mundo celestial”, suas esperanças e seus temores com relação a ele tinham importância muito maior do que os assuntos políticos e econômicos de sua cidade. Isto explica por que as controvérsias teológicas dessa época eram acompanhadas com interesse tão apaixonado, não apenas pelos líderes da Igreja mas também pelos cidadãos comuns. Os soberanos do céu obviamente detinham um poder muito maior do que os soberanos da Terra. E parecia natural que as pessoas se interessassem mais pelas condições da vida eterna do que pelas condições desta vida, tão curta e incerta como é. “Foi uma autoridade da importância de Gregário Nazianzeno que descreveu o modo como uma pessoa seria recebida cm Constantinopla, ao procurar uma padaria para comprar um pão, onde ‘o padeiro, em vez de dar o preço, discutiria que o Pai e maior do que o Filho. O cobrador falaria sobre o Gerado e o Não-Gerado em vez de fornecer o dinheiro e, se a pessoa fosse em busca de um banho, o zelador do banheiro público lhe garantiria que o Filho certamente procede do Nada”‘ (C. Dawson, The Making of Europe).

Os problemas religiosos ocupavam a tal ponto a vida diária que a ideia de uma separação entre Igreja e Estado não seria possível no pensamento geral daqueles tempos. A crença no caráter sagrado do imperador dos tempos pré-cristãos continuou na era cristã. E o próprio imperador via-se como Regente Divino. “Ele se sentia chamado para orientar a raça humana a caminho da verdadeira religião que ele proclamava e ensinava (Jean Daniélou, The First Six Hundred Years). Portanto, a instituição dos concílios ecumênicos, por parte do imperador, era considerada não o ato de um líder político mas do líder do povo cristão. O imperador era automaticamente solicitado a intervir nas disputas teológicas. Os concílios gerais eram convocados e orientados por autoridade imperial.

No entanto, nem todos os bispos eram subservientes ao imperador. Nas controvérsias teológicas do século IV, não existia uma divisão clara entre os homens da Igreja e os do Estado; havia um cisma de consciência e de lealdades divididas.