Agostinho: vontade

Nesta minha infância, na qual eu tinha menos que temer por mim do que em minha adolescência, eu não gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem não procedia bem era eu, que não estudava a não ser constrangido, pois ninguém faz bem o que faz contra a VONTADE, mesmo que seja bom o que faz. Confissões I, XII

Tampouco os que obrigavam a estudar agiam corretamente; antes, todo o bem que eu recebia vinha de ti, meu Deus, porque eles não tinham outro fim ao me obrigarem a estudar senão saciar o apetite de abundante miséria e de gloria ignominiosa. Mas tu, Senhor, que tens contados os cabelos de nossa cabeça, usavas do erro de todos os que me coagiam a estudar para minha utilidade; e usavas da minha falta de VONTADE de estudar para meu castigo, de que certamente eu já era digno, sendo ainda tão pequeno, e tão grande pecador. Confissões I, XII

Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinada VONTADE para as coisas baixas. Confissões II, III

Ó amizade inimiga! Sedução impenetrável da alma, VONTADE de fazer o mal por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingança! Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; “Vamos! Façamos!”. Confissões II, IX

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência — enigma de Salomão — que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei à VONTADE dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual me seduziu por andar eu vagando fora de mim, sob o império da vista carnal, ruminando em meu íntimo o que meus olhos haviam devorado. Confissões III, VI

Há outras ações semelhantes a ações maldosas ou a delitos, e que não são pecados, porque nem te ofendem a ti, Senhor, nosso Deus, nem tampouco à sociedade humana; como por exemplo quando procuramos coisas convenientes para o uso da vida e às circunstâncias, sem que se saiba se essa busca é cobiça, ou quando castigamos a alguém como desejo de que se corrija, fazendo uso do poder ordinário, e não se sabe se o fazemos por VONTADE de mortificar. Confissões III, IX

Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim tua VONTADE, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse meu pão à custa de trabalho. Confissões IV, XVI

Tão logo porém soube que o ilustre pregador e mestre a verdade proibira tal costume — mesmo para os que o praticavam sobriamente, para não dar aos ébrios azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales (festas pagãs que se celebravam de 13 a 21 de fevereiro consagradas especialmente aos deuses lares) era muito semelhante à superstição dos pagãos — ela se absteve de muito boa VONTADE. No lugar da cesta cheia de frutos da terra, aprendeu a levar ao túmulo dos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres. Confissões VI, II

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a VONTADE paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava. Confissões VI, VII

Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com vínculo de amizade tão estreito, que foi comigo para Milão, tanto para evitar nosso afastamento como para exercer o Direito, embora mais para agradar aos pais do que por VONTADE própria. Já por três vezes fora assessor, sempre com admirável lisura, e ficando ele mais admirado ainda de que juizes preferissem o dinheiro à inocência. Confissões VI, X

Esforçava-me por compreender a tese que ouvira professar, de que o livre-arbítrio da VONTADE é a causa de praticarmos o mal, e de teu reto juízo é a causa do mal que padecemos. Confissões VII, III

O fato de eu ter a consciência de possuir uma VONTADE, como tinha consciência de minha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado. Quanto ao que fazia contra a VONTADE, notava que isso mais era padecer do mal do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça. Confissões VII, III

Mas de novo refletia: “Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não só é bom, mas a própria bondade? De onde, então, me vem essa VONTADE de querer o mal e de não querer o bem? Confissões VII, III

Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, e semeou minha alma esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meu dulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este, de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua VONTADE perversa, de onde lhe veio essa VONTADE má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo por um Criador boníssimo?” Confissões VII, III

Portanto, logo que vi que o incorruptível deve ser preferido ao corruptível, imediatamente deveria buscar-te no incorruptível, para depois indagar a causa do mal, isto é, a origem da corrupção, que de nenhum modo pode afetar tua substância. É certo que, nem por VONTADE, nem por necessidade, nem por qualquer acontecimento imprevisto, pode a corrupção afetar nosso Deus, porque ele é Deus, e não pode querer senão o que é bom, e ele próprio é o sumo bem; e estar sujeito à corrupção não é nenhum bem. Confissões VII, IV

Tampouco poder ser obrigado, contra a tua VONTADE, seja ao que for, porque tua VONTADE não é maior do que teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior do que és, pois a VONTADE e o poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver de imprevisto para ti, se conheces todas as coisas, e se todas elas existem porque as conheces? Confissões VII, IV

E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua VONTADE? E, se é eterna, por que deixou-a existir por tanto tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servirse dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, não poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa e com a qual plasmar toda a criação? Confissões VII, V

Também neles li que o Verbo, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem da VONTADE do varão, mas de Deus. Mas que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, isso não o li naqueles livros. Confissões VII, IX

Também eu vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua VONTADE, teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. E disseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos movemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham os livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais sacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador. Confissões VII, IX

Indaguei o que era a iniquidade, e não achei substância, mas a perversão de uma VONTADE que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus — e se inclina para as coisas baixas, e que derrama suas entranhas, e se intumesce exteriormente. Confissões VII, XVI

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à VONTADE, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o corpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real, que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior, que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, e que o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades; procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa VONTADE a se conformar à sua, que não quis persistir com tua verdade. Confissões VII, XXI

Mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depois acrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos ensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de palradores a abandonar teu Verbo, que torna eloquentes as línguas dos meninos. Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se consagrar por ti. Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de uma VONTADE estranha, mas por minha férrea VONTADE. Confissões VIII, V

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual me mantinha cativo. Da VONTADE perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o hábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéis enlaçados entre si — por isso lhes chamei corrente — me mantinha preso em dura servidão. A nova VONTADE, que despontava em mim, de te servir sem interesse, de me alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de vencer a VONTADE antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a alma. Confissões VIII, V

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua VONTADE, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por VONTADE própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas com querer enérgico e pleno, e não com VONTADE tíbia, que se dispersa em todos os sentidos, e se agita incerta, dividida, ora levantando-se, ora voltando a cair. Confissões VIII, VIII

Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comando de minha alma, movendo os membros segundo sua VONTADE, do que a própria alma obedecer a si mesma para realizar seu grande desejo com a VONTADE. Confissões VIII, VIII

Manda a alma que queira — e não mandaria se não quisesse — e, não obstante, não faz o que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total. A alma manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não são executadas, porque é a VONTADE que dá a ordem de ser a uma VONTADE que nada mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por que não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria que fosse, porque já seria. Confissões VIII, XI

Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores do espírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da VONTADE, concluem que temos duas almas de naturezas opostas, uma boa, outra má. Confissões VIII, X

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a VONTADE que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas. Confissões VIII, X

Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a VONTADE, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma VONTADE plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais. Confissões VIII, X

E logo, mudando de semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhas lembranças se porventura esta cantiga fazia parte de um jogo que as crianças costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindo o ímpeto das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a VONTADE divina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capitulo que encontrasse. Confissões VIII, XII

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha VONTADE! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I

Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando nasceu em mim e se firmou a VONTADE plena de repousar e de ver que és o Senhor, então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos nunca me permitiram ser livre. Confissões IX, II

No fundo de meu coração penetrou o sinal da tua VONTADE e, alegre na , louvei teu nome. Confissões IX, IV

Mas conseguiu conquistá-la com respeito, contínua tolerância e mansidão, que ela mesma, espontaneamente, denunciou ao filho as línguas intrigantes das criadas, que perturbavam a paz doméstica entre ela e a nora, e pediu que as castigasse. Ele, em obediência à mãe, para manter a disciplina familiar e a harmonia entre os seus, mandou açoitar as acusadas, segundo a VONTADE da acusante; e esta prometeu-lhes ainda que esse era o prêmio que devia esperar quem, querendo agradá-la, lhe dissesse mal da nora. E ninguém mais se atreveu a fazê-lo, e viveram as duas em doce e memorável harmonia. Confissões IX, IX

Fechei-lhe os olhos, e uma tristeza imensa invadiu-me o coração, e já me ia desfazer em lágrimas; ao mesmo tempo, meus olhos, obedecendo ao enérgico poder de minha VONTADE, fechavam sua fonte até secá-la. Como foi angustiosa essa luta! E foi quando ela deu o último suspiro, que o meu filho Adeodato rebentou em soluços; mas, instado por todos nós, se calou. Confissões IX, XII

Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o mundo supremo governante, Que o dia vestes com tua luz brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à VONTADE, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII

Mas onde e quando, então, experimentei a felicidade para lembrar-me dela, para amá-la e deseja-la? Não sou eu apenas, ou alguns que a desejam; mas todos, sem exceção queremos ser felizes. Sem uma noção precisa da felicidade, nossa VONTADE não teria essa firmeza. Confissões X, XXI

Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a ideia de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua VONTADE não se afasta. Confissões X, XXII

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua VONTADE. Confissões X, XXXV

Posso avaliar o quanto dominei a minha alma a respeito dos prazeres da carne e das vãs curiosidades, quando me vejo privado de tais coisas por minha VONTADE ou por necessidade. Confissões X, XXXVII

Mas, como falaste? Porventura do mesmo modo como aquela voz que, saindo da nuvem, disse: Este é meu Filho bem-amado? — Essa voz fez-se ouvir, e passou; teve começo e fim; suas sílabas ressoaram, depois passaram, em sucessão ordenada até a última, que vem depois de todas as outras — e depois foi o silêncio. Por onde se vê claramente que essa voz foi gerada por órgão temporal de uma criatura a serviço de tua VONTADE eterna. E essas palavras, pronunciadas no tempo, foram comunicadas pelo ouvido material à inteligência, cujo ouvido interior está atento à tua palavra eterna. E a razão comparou essas palavras, proferidas no tempo, com o silêncio de teu Verbo eterno, e disse: “É diferente, muito diferente. Tais palavras estão bem abaixo de mim, nem sequer existem, pois fogem e passam; mas o Verbo de Deus permanece sobre mim eternamente”. Confissões XI, VI

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma VONTADE nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma VONTADE que não existia antes? Mas a VONTADE de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a VONTADE do Criador não a precedesse. A VONTADE, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua VONTADE não varia conforme o tempo, pois a VONTADE mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma VONTADE que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a Verdade disse ao ouvido de minha alma sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substância não varia no tempo, e que sua VONTADE se confunde com sua substância? E que por isso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis, simultaneamente e para sempre. Sua VONTADE não se exerce repetidas vezes, não se propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nem deixa de querer o que antes queria, uma vez que tal VONTADE seria mutável, e o que é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno. Confissões XII, XV

Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seus erros! Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse. Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam de tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de teu Livro, procurando tua VONTADE nas intenções de teu servo, a cuja pena as revelaste. Confissões XII, XXIII

Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua VONTADE, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII

Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua VONTADE era suspensa acima da vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porque ela vive, mesmo quando flutua sobre as trevas. Esta vida carece ainda voltar-se para seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a luz na Luz divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade. Confissões XIII, IV

Mas o Pai e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos como um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao Espírito Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindade acima de tudo o que é transitório, então o Pai, o Filho e o Espírito Santo pairavam igualmente sobre as águas. E por que só se menciona o Espírito Santo? Por que se menciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, não ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teu dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade para longe das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa VONTADE. Os corpos tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende só para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água, flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso a procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar se agitam; mas quando o encontram, repousam. Confissões XIII, IX

Meu peso é meu amor; para onde quer que eu vá, é ele quem me leva. Teu dom nos inflama e nos eleva; ardemos e partimos. Subimos os degraus do coração e cantamos o cântico gradual. É o teu fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome e nos eleva, enquanto subimos para a paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me ao ouvir essas palavras: “Vamos para a casa do Senhor!” — Ali nos há de instalar tua boa VONTADE, e não desejaremos nada mais do que permanecer ali eternamente. Confissões XIII, IX

Há outras águas, creio eu, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas da corrupção terrena. Que elas louvem teu nome! Que os povos celestes de teus anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem de ler para aprenderem a conhecer tua palavra! Eles sempre veem tua face, e ali leem, sem as sílabas transitórias, o objeto da tua VONTADE eterna. Confissões XIII, XV

Leem, escolhem, amam. Leem perpetuamente, e o que eles leem jamais fenece; escolhendo e amando, leem tua imutável VONTADE. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra, para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua verdade se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. Confissões XIII, XV

Assim como só tu existes plenamente, só tu possuis o conhecimento absoluto: imutável, com efeito, és em teu ser, imutável em teu saber, imutável na tua VONTADE. Tua essência sabe e quer imutavelmente, tua ciência é e quer imutavelmente, tua VONTADE é e sabe imutavelmente. Confissões XIII, XVI

Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a VONTADE, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua VONTADE. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a VONTADE de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua VONTADE, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

Porque ele diz em seguida: “Eu não procuro a dádiva, mas o fruto”. — Aprendi de ti, meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aquele que acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, um abrigo, e auxílio. O fruto é a VONTADE boa e reta do doador. O bom Mestre não se limita a dizer: “Aquele que receber um profeta” — mas acrescenta: “Aquele que receber um justo…” — mas acrescenta: “na qualidade de justo”. — E assim, aquele receberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas: “Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos” — mas acrescenta: “na qualidade de discípulo”. — E prossegue: “Na verdade vos digo: este não ficará sem recompensa”. Confissões XIII, XXVI

Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que, para serem iniciados e conquistados para a , precisam desses rituais de iniciação e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os primeiros não são movidos por VONTADE santa e reta, e os segundos não se alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma só se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os cetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separados e purificados de amargura das águas do mar. Confissões XIII, XXVII