Escrituras

A questão da Palavra impôs-se a nós desde nosso primeiro encontro com o cristianismo, na medida em que este se apresenta na forma de um texto. Desde o início, é verdade, o texto do Novo Testamento se dá como diferente de todos os outros, e isso em razão de sua proveniência divina. Esta se manifesta no fato de o relato dos acontecimentos relativos à existência de Cristo ser constantemente interrompido pelas aspas que introduzem outra palavra, já não a que relata esses acontecimentos, a de Mateus ou de Marcos, de Lucas ou de João, mas a do próprio Cristo, isto é, de Deus. “Erguendo então os olhos para os seus discípulos, dizia: ‘Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”’ (Lucas 6,20). Se é como uma espada de dois gumes que nos atinge a Palavra de Deus, não é somente em razão do caráter estupefaciente do que diz, mas precisamente porque é Ele quem fala.

E era esta a primeira dificuldade. É Cristo quem fala, mas sua palavra não nos atinge senão no relato que disso fazem Mateus, Marcos, João, Lucas, nos textos dos Evangelhos. Reinserida neste relato, retomada pelo texto, a palavra das Escrituras novamente se torna semelhante à palavra falada pelos homens, é um conjunto de significações irreais incapazes por si mesmas de pôr uma realidade diferente da sua – notadamente a realidade d’Aquele que fala através delas, a realidade de Cristo e de Deus. Assim se desenhava um primeiro círculo, o da impotência da palavra, de que a impotência da Lei e do Mandamento ético não é, afinal de contas, senão uma consequência ou um exemplo. A impotência da ética é a da Lei de produzir o agir que ela prescreve. Foi esta impotência o que [303] provocou o deslocamento decisivo operado pela ética cristã, o da palavra para agir, agir estranho à linguagem e exterior a ela, imerso na vida e cuja ação coincide com o próprio movimento desta vida.

Surge então um paralelo singular entre a questão da ética e a, mais geral em certo sentido, das Escrituras. Tanto em uma quanto na outra, encontra-se desnudada a impotência da palavra. O dizer ético, todavia, consciente de sua fraqueza, apela por instinto ao agir e confia a ele a tarefa ontológica da realização. Mas as Escrituras são mais do que uma ética, não se limitam a um conjunto de preceitos, por mais importante que sejam. O que os caracteriza mais essencialmente e de que depende a legitimação dos próprios preceitos é, como o vimos, a reivindicação da origem divina. Mas a que instância a palavra das Escrituras fará aqui apelo para estabelecer seu caráter divino? De que fonte disporá para superar a carência ontológica inerente ao universo das significações, da linguagem? No plano da ética, a substituição da Antiga Lei pela Nova Lei eliminou a dificuldade. A Nova Lei, o Mandamento de amor tal como João o concebe, pondo no princípio do agir, em lugar do preceito edificante mas inoperante, um poder efetivo, não o simples poder do ego, mas o hiperpoder da Vida absoluta com o peso formidável de suas determinações patéticas – sofrimento, alegria, amor –, varreu de um golpe a ética tradicional, seu legalismo formal, seu moralismo impotente, todos os efeitos enfim dessa impotência: suas argúcias, sua casuística, sua hipocrisia. Mas, no caso das Escrituras, sobre qual fundamento a palavra poderá estabelecer a verdade do que diz, se ela é incapaz de fazê-lo por si mesma?

É outra intuição decisiva do cristianismo que se oferece então a nós – ou a mesma de sempre em outra forma. E essa é a razão por que já estamos em posse dela. Esta intuição, muito frequentemente despercebida e, todavia, explícita, é a de que existe outra palavra além da que falam os homens. Esta palavra fala de forma diferente de como o faz a palavra humana. O que ela diz é diferente do que diz a palavra humana. É porque ela fala diferentemente que diz [304] outra coisa. Porque ela fala diferentemente, o modo como convém entendê-la difere também do modo como se entende a palavra dos homens. Esta outra palavra, que fala diferentemente da palavra humana, que diz outra coisa e que se entende de outro modo, é a Palavra de Deus.

Quando, pois, se declara como se faz habitualmente, como o fazem, em todo caso, os crentes, que as Escrituras são a Palavra de Deus, esta afirmação permanece equívoca no mais alto sentido. Ela é compreendida do seguinte modo: quer-se dizer que, dirigindo-se aos homens, as Escrituras usam, por essa razão, a palavra usada pelos homens. Esta palavra é uma palavra humana em sua forma, em sua maneira de falar. Mas o que ela diz – nessa linguagem compreensível para os homens – é um conteúdo que já não é humano, mas sagrado. Inspirado por Deus, ele transmite aos homens o que Deus tem para lhes dizer, para lhes revelar. O conteúdo das Escrituras é uma revelação divina, mas esta revelação é feita aos homens na linguagem que é a deles. Agora, como uma linguagem humana é capaz de receber e de transmitir uma revelação divina? Ou, inversamente, como uma revelação divina pode tomar a forma de uma linguagem humana e porque seria ela obrigada a fazê-lo? A revelação divina, em outros termos, não seria revelação enquanto divina mas enquanto se exprime numa palavra humana, tomando a forma desta, e isso de maneira que possa ser compreendida por homens. Mas esta revelação tornada acessível aos homens numa palavra humana, que se revela a eles na forma desta palavra que é a deles, como poderia ela provar seu caráter divino? Como, para além de sua natureza humana, tal palavra teria condições de atestar que ela é a de Deus? Deus, por sua parte, deveria demandar sua aptidão para se revelar, para se revelar aos homens em todo caso, a um poder de revelação diferente daquele que constitui sua própria essência. (Michel Henry, MHSV)