A ESTRUTURA TEOLÓGICO-METAFÍSICA DA MÍSTICA ECKHARTIANA
Excertos de Giuseppe Faggin – Meister Eckhart e a mística medieval alemã
Ao reconstruir historicamente o processo da mística medieval geralmente se busca sua inspiração na doutrina neoplatônica e,de modo particular, em Plotino, como se fosse possível seguir ininterruptamente a corrente mística desde o filósofo de Licópolis até as mais maduras expressões da experiência cristã, e como se a originalidade da mensagem de Cristo e a complexa elaboração católica desaparecessem ou se atenuassem sob o influxo da especulação sistemática do pensamento helênico. Não há dúvida que a filosofia plotiniana é a expressão racional de profundas exigências ético-religiosas e que está totalmente animada por um profundo sentido místico mas, a fim de estabelecer cautelosamente o efetivo alcance deste misticismo e também para colocar em seguida sob sua luz verdadeira a originalidade da doutrina de Eckhart, bastará expor brevemente as linhas fundamentais do sistema de Plotino, fazendo realçar, junto ao aspecto místico, seu aspecto racional e humano. Não será difícil decidir se o panteísmo, que se reprova habitualmente aos místicos de evidente inspiração neoplatônica, tem sua verdadeira origem em Plotino.
O absoluto é o Uno, o Bem, o Primeiro; é o manancial de toda a realidade mas, por sê-lo, está além de todo o ser e de toda a determinação lógica. O pensamento, que existe em função de uma multiplicidade ideal que se deve discriminar, não pode nem defini-lo nem pensá-lo, pois o Uno é mais que pensamento e o pensamento não é a única realidade. Toda a determinação racional o limita e, portanto, não o pode alcançar. O Uno não é auto-consciência porque a auto-consciência implica na distinção do diferente de si mesmo; não é pensamento porque o pensamento está em função do Bem, seu fim absoluto; não é vontade porque a vontade é a aspiração consciente em relação a um objeto; não é amor porque o amor deriva de uma deficiência espiritual. O Absoluto não é, portanto, nem o sujeito puro, intelectualmente compreendido, nem puro objeto; pode ser concebido como sujeito apenas a condição de que se o pense como absoluto poder criador que produz, sem contemplar, o objeto engendrado; pode ser concebido como objeto de nosso pensamento e de nossa vontade, mas sempre que se o considere como o centro mais íntimo da subjetividade e deixe de constituir um dualismo lógico. É absoluta liberdade, não no sentido de realidade livre senão como ato libertador.
A teologia negativa força o pensamento até o limite extremo sem querer admitir compromissos com analogias proporcionais: toda a fórmula fica abstrata e inadequada para significar a Vida profunda e infinita. Nossa inteligência, justamente porque compreende a limitação de qualquer conceito, renega a si e reconhece acima de si mesma a Transcendência que não é pensamento, exigindo assim do espírito uma superior potência intuitiva que seja supremo ato de vida. Com efeito, na vida, dentro de sua penosa confusão, através de alegrias e dores, em luta dialética com os limites e com o tempo, a alma pode esclarecer progressivamente a si própria o profundo impulso rumo ao Uno que a inquieta diante da multiplicidade exterior e interior. O Absoluto, que se converte em um nome vão se o quisermos reduzir ao objeto pensado, manifesta-se como valor e ato vital nas alternativas vividas pela alma e adquire significado tão somente se nosso pensamento sabe distinguir a numinosa presença do que não é Uno.
Sem pensamento não há vida espiritual, ainda que esta não se reduza finalmente ao pensamento. O Uno, com efeito, não é a mística noite que anula em si a distinção,senão que é o princípio do dualismo e da distinção, porque é Potência geradora. Se as hipóstases engendradas (o Nous e a Alma) não existissem, todo o universo se resumiria em uma oca identidade; se o Uno não fosse, o múltiplo não existiria nem teria um fim supremo. Uma vez consolidado o Uno, o esforço máximo de Plotino consiste em salvar, no seio do Uno, o múltiplo e as distinções, isto é, a articulação do ser e do pensamento: o Uno não deve conduzir-nos à posição eleática, porque nem sequer se poderia falar do Uno se não existisse o diferente do Uno. Os distintos planos da vida universal estabelecem, portanto, o caráter concreto do real e constituem a paisagem metafísica onde se moverá a alma individual com as indefinidas possibilidades de seu destino. Pois bem, o que o Uno engendra não pode ser inferior a ele, ainda que participando dele: o Nous é inferior ao Uno e por conseguinte é dualidade de ser — pensamento e multiplicidade ideal; mas, ao participar do Uno, é infinito Cosmos noético que com a inesgotável riqueza das ideias e das inteligências constitui uma imóvel unidade eterna e idêntica a si mesma. A Alma é inferior ao Nous enquanto é princípio de movimento e de vida e está destinada a animar uma realidade corpórea; mas por participar do Nous e estar eternamente orientada em direção a ele em uma indefectível contemplação, é alma universal que implica uma infinita riqueza de almas individuais, capazes de viver uma personalíssima vida própria de acordo e também em oposição, com a vida cósmica e de alcançar o supremo limite da realidade. Cada alma em particular, por sua vez, por meio das razões seminais, com sua potência formadora pode dar vida a um corpo (mais ainda, a uma série de existências corpóreas) e realizar no tempo e no espaço sua vida sensitiva: o corpo está nela e as sensações são seus atos. O mundo sensível não é então mais que a expressão visível da Animação universal e um símbolo vivo do Inteligível e do Eterno; a matéria é a tenebrosa matriz deste mundo que faz surgir de si e que em si absorve o contínuo fluir das aparências fenomênicas. é absoluto não-ser e absoluto nada e limite inferior extremo do processo divino, lugar em que aparecem os efeitos das obras da alma.
Uno, Nous e Alma não podem então reduzir-se a uma só realidade senão com a condição de anular o próprio ser e a natureza do Uno gerador; mas é conveniente recordar também que não se deve colocar o Uno junto com as outras duas hipóstases se não o quisermos destruir como Uno, transformando-o em um determinado aspecto da realidade. O Uno é o onipresente; presente ao Nous não menos que à Alma e ao cosmos sensível; mas imanência não significa identidade. Daí que os diferentes planos hipostáticos, apesar dos titânicos esforços da especulação plotiniana, fiquem separados e distintos, mas não deduzidos, e que a distinção não se concilie com a unidade. Mas o que fica sem concatenação lógica nem explicação metafísica encontra sua mediação vital na obra da alma, que com seu impulso amoroso pode percorrer todos os graus do real, voltar da exterioridade fenomênica ao seu princípio e encontrar novamente, na clareza do seu pensamento, a riqueza do Nous e ao Uno mesmo no fundo do seu espírito. Intermediária entre o Nous e o mundo, é portadora do tempo e de sua dramaticidade e delineia o problema de sua história. Fora dela a história não existe, nela está seu destino. A alma pode dispersar-se na exterioridade que é dor e morte e pode reencontrar-se em seu interior e na livre unidade consigo mesma submergir-se em um gozo sobre-humano. O Eterno se torna valor porque ela assim o quer e sua vontade não é arbítrio porque se ajusta ao Eterno. Mas a relação da alma com Deus não é possível senão através da mediação do Nous: não é obra nem do pensamento nem da vontade,— mas como dirão os místicos cristãos — do ápice da mente. A alma é a irredutível substância individual e enquanto tal, não é nem o Nous nem o Uno, ainda que vivendo no Nous e no Uno; mas, por outro lado, imanência não quer dizer identidade. E ademais a alma individual não pode nunca alcançar os limites da Alma universal, do Nous ou do Uno, porque a potência destes é infinita e não conhece limites: viver neles não significa para a alma anular-se ontologicamente, porque não se anula o que emana do Uno, senão reunir-se com eles esquecendo sua própria finitude.
Não é possível afirmar decididamente que esta concepção seja panteísta. Plotino insiste contínua e vigorosamente sobre a transcendência do Uno e sobre a irredutibilidade das três hipóstases; a onipresença do Uno não destrói as distinções senão que constitui seu fundamento. E, além disto, a falta de perfeição no processo descendente acentua ainda mais o dualismo dos planos da vida espiritual, de modo que Plotino se vê obrigado a ensaiar sempre novas mediações para explicar a continuidade da vida que é um dos princípios fundamentais de sua metafísica. E mais ainda, em seu sistema justamente essa continuidade delineia a possibilidade e o alcance do elemento empírico que geralmente persiste nas doutrinas místicas — o veremos também em Eckhart — como suspenso no vazio, sem nenhuma justificação. A corporalidade, com efeito, enquanto por um lado é o limite extremo e inevitável da irradiação divina e,portanto,elemento necessário da potência criadora absoluta, por outro lado é o ponto de partida de um retorno espiritual e cumpre uma função propulsora que, no grego Plotino, não é tão somente moral, como também cultural e estética. Também o corpóreo tem seu grau de ser: a própria individualidade não deriva da matéria, senão que pertence à ordem da forma e não se pode explicar mais que mediante as razões seminais e não é, portanto, um momento efêmero de um mundo de sombras, mas originalidade irredutível e destino concreto.
Indubitavelmente, o que delineia a questão panteísta é sobretudo a visão estática e final do Uno. Com frequência Plotino não fala desta experiência suprema como de um acontecimento comum e natural; mas tem que falar dela para não deixar sem solução o problema da salvação e não abandonar o Uno como vazia negação lógica. Porque o Uno é o Ser, quer dizer, objeto de pensamento, a alma não pode acalmar-se em um ato de conhecimento; deve atualizar em si mesma esta unidade que é o ato supremo de sua própria liberdade, é impossível definir a experiência mística; mas o pensamento, ao refletir sobre este ato, segundo as imprescindíveis exigências do espírito, não pode deixar de conceber a intuição mística como unificação absoluta da alma com Deus: de outro modo a alma não alcançaria seu fim último, condenada a um vão esforço e Deus se reduziria a ser o inalcançável objeto do pensamento, símbolo eterno da derrota de nossa inteligência, e não seria nosso Bem e nossa Vida imanente. Parece então inevitável que, ao declarar o valor da suprema experiência, nosso pensamento empregue termos de autêntico sabor panteísta e proponha à reflexão este angustioso problema que no ato vivido não existe, portanto, não será nunca possível transpor o círculo mágico das fórmulas místicas para resolver o problema do panteísmo se no lugar de nos atermos unicamente a elas, não olharmos o complexo sistema racional que as sustenta e organiza. Em Plotino, a alma não é individualidade efêmera nem é idêntica natural e imediatamente a Deus; entre o Uno e a alma está o Nous, que impõe ao nosso agir moral e intelectual uma tarefa teórica que nos eleve a planos espirituais superiores. A alma não é divina, mas se torna divina. A onipresença do Uno a acolhe como acolhe em si qualquer outra realidade substancial e fenomênica; e a alma o encontra em seu “centro” como sua própria unidade íntima e nele esquece tudo o que no mundo da multiplicidade a colocava em oposição — no tempo e no espaço — a outras coisas, mas nem por isso anula sua individualidade espiritual que é originária e irredutível. Parece-nos que o sistema plotiniano compreende plenamente as exigências do dualismo entre a alma e Deus; e isto lhe permite colorir dramaticamente o destino da alma errante afastada do Pai. Mas com maior intensidade põe em relevo o que vale mais, isto é, o retorno ao Bem. Mas neste caso quem pode, melhor que Plotino, atenuar as expressões da própria alegria divina?
Por esta razão, se Plotino parece oscilar entre uma posição panteísta e as declarações de uma decidida transcendência, isto não se deve à incerteza do seu pensamento senão à própria natureza da vida espiritual que é ritmo de Vida e de forma, de Infinito e de finito, de inefáveis experiências e de árduos pensamentos. E o pensamento, chamado a pronunciar-se sobre o prodígio maior, não pode nem sabe dar-se conta de si, senão escandalizando-se com a audácia de suas fórmulas, como para renovar com elas nas mentes adormecidas o assombro e a maravilha do numinoso, sabendo muito bem que elas também continuam sempre um nome vão diante do Inexpressável.
A doutrina plotiniana, que é a expressão mais apropriada do gênio helênico em suas relações com as novas exigências religiosas da época, não teve influência direta sobre o mundo ocidental. Parece que a tradução das Enéadas realizada por Mario Victorino teve um êxito limitado; Agostinho, no mundo latino, mostra várias vezes que conheceu diretamente o pensamento plotiniano, enquanto que no mundo greco-bizantino, escritores eclesiásticos como Basílio, Cirilo, Gregório Niceno, citaram-no explicitamente ou revelam sua evidente influência. Também os escolásticos conhecem-no tão só indiretamente, através dos testemunhos e das referências de Agostinho ou de Macróbio. Meister Eckhart recorda a Plotino com respeito às quatro espécies de virtude (que é uma classificação bem mais porfiriana), nas Atas do processo de Colônia, mas tornando-as de Tomás, que por sua vez as tomou de Macróbio.
Contudo, o pensamento de Plotino atua poderosa ainda que invisivelmente sobre a especulação do mundo cristão por meio de seus seguidores, especialmente de Proclo. Em Proclo a doutrina plotiniana sofre uma profunda reestruturação, mas sem modificações essenciais: a teologia negativa e a teoria do “centro da alma” são objeto de um novo e mais insistente exame; a doutrina das “enadas”, que parece ausente no sistema de Plotino — mas que, na realidade, está implícita nele — enfoca mais claramente a relação dialética entre o Uno e o múltiplo e cria um certo pluralismo espiritualista que encontrará a expressão moderna e mais completa em Berkeley e em Leibniz; a doutrina cíclica do real através da detenção, do avanço e da volta, que encontrará entusiasta aceitação em Hegel, é a formulação de maior exatidão metafísica e a que melhor abarca o núcleo do sistema plotiniano, destinada a reunir intimamente o que a teoria das “enadas” parecia haver separado inexoravelmente. Somente na importância reconhecida às artes mágico-teúrgicas Proclo contrasta com o equilíbrio místico-racional de Plotino e obedece às caprichosas e sentimentais exigências de sua época; mas também estas teorias deviam encontrar tácita aceitação até no mundo cristão, que da teurgia de Proclo podia tirar motivos adequados para fundar uma teoria dos sacramentos.
As obras de Proclo, traduzidas para o latim, divulgaram as ideias neoplatônicas no Ocidente e resgataram indiretamente do esquecimento o pensamento plotiniano. Em 1268 Guilherme de Moerbecke traduziu a Elementatio theologica e mais tarde, o De decem dubitationibus circa providentiam, oDe providentia et fato et eo quod in nobis e O De malorum subsistentia, cujo texto grego se perdeu. Mas as intuições neoplatônicas podiam conservar-se no mundo escolástico e atuar em profundidade sobretudo por obra do De Causis. A pequena obra, atribuída geralmente a Aristóteles, era na realidade uma redação livre da Elementatio theologica de Proclo realizada por um árabe e traduzida para o latim por Geraldo de Cremona nos fins do século XII com o título de Liber de Expositione bonitatis purae. O De Causis, que foi traduzido também para o hebraico nada menos que quatro vezes, foi considerado digno de estudo e de comentário por Alberto Magno, por Tomás de Aquino e por Egídio Colonna e foi conhecido também por Dante que o cita várias vezes no De Monarchia, no Convívio e nas Epístolas. Mas o pensamento neoplatônico, chegava ao Ocidente, por intermédio dos árabes,também em outra obra, atribuída assim mesmo, por engano, ao Estargirita: a Theologia Aristotelis. O original grego é de data e de procedência incertas; sabemos ao invés, que a versão árabe de Ibn Abdallah Naima de Emesa remonta ao ano 800 mais ou menos e que a reelaboração de Abu Joseph Jacob Ibn Isaac Alkindi pertence ao período compreendido entre 833 e 842. Segundo a opinião de Henry, a Theologia não seria mais que uma parte, talvez a primeira, dos cem livros de Escolios, isto é, dos apontamentos tomados por Amélio nas aulas de Plotino, e neste caso nos conservaria nada menos que a tradição oral da ensinança plotiniana. Por intermédio do De Causis e da Theologia Aristotelis, o neoplatonismo inspirou as obras de Avicena, de Al-Ghazali e até de Averroes e através delas penetrou no Ocidente, mas numa estranha e singular síntese com a metafísica de Aristóteles. Mas a “contaminação” aristotélico-plotiniana devia parecer a muitos escolásticos um híbrido conúbio que era necessário desfazer para retornar às fontes do platonismo autêntico. Também a filosofia hebraica, sobretudo por obra de Avicebron e Moisés ben Maimon, renovava muitos motivos neoplatônicos e preparava preciosos materiais para as grandiosas construções do Escolasticismo medieval.
Mas o neoplatonismo chegava ao Ocidente cristão ainda por outra via e através de outra contaminatio. As obras do Pseudo Dionísio, o Areopagita (De divinis nominibus, De hierarchia coelesti. De hierarchia ecclesiastica, Theologia mystica, Epistulae) — que remontam ao século V e foram traduzidas para o latim, primeiro pelo monge Hilduino e depois por João Escoto Erígena,justamente até a metade do século IX, quando Al Kindi reelaborava a Theologia Aristotelis — introduziam no mundo cristão o pensamento neoplatônico, mas na forma que havia recebido através da elaboração cristã. O primeiro a deixar-se seduzir por estas obras foi o próprio tradutor, Erígena, que no De Divisione naturae demonstrava até onde podia conduzir a doutrina neoplatônica invocada para constituirá estrutura metafísica da revelação e da experiência cristãs. Através de João Escoto Erígena perpetuava-se a intuição plotiniana da vida, mas ao mesmo tempo se acentuava cada vez mais o perigo de que o Cristianismo se desviasse para uma especulação puramente racional, obra dos homens. Sua atração se exercerá secretamente sobre os místicos posteriores, ortodoxos e heréticos e sobre o próprio Eckhart e será objeto de grandes amores e enormes ódios, acusado de panteísmo e apontado como fonte de ruinosas doutrinas e ao mesmo tempo, defendido como muito pouco panteísta. O mistério de sua exegese é o que encontramos em Plotino e o que encontraremos em Meister Eckhart.
Também a sistematização teológico-filosófica de Agostinho, original mas claramente inspirada em alguns motivos plotinianos fundamentais, contribui para arraigar profundamente na especulação cristã este conjunto de ideias e de orientações de genuína entonação neoplatônica que, a despeito de qualquer peripatetismo, ficará como depósito sagrado em toda a filosofia escolástica.
Mas, sob os filosofemas do pensamento grego, que parecem dominar os “sistemas” de Orígenes, de Agostinho e de Erígena, vive e pulsa a alma nova da experiência cristã, que é prodígio e revelação, não obrado raciocínio humano; é super racionalidade que desfaz todo o compromisso com a palavra e o conceito porque alcança uma Verdade que somente o homem interior reconhece; é a heroica ruptura com tudo o que os homens chamam o “mundo”, porque é pressentimento, mais ainda, posse, de um “além”. O historiador busca nas civilizações e nas religiões pré-cristãs as antecipações da mensagem evangélica e fatalmente impulsionado até as fontes mais remotas, cria a ilusão de poder explicar como fenômeno sincretista e intelectualista o que é, em vez disto, a originária e irredutível revelação do Espírito. Com efeito, não só o Novo Testamento é expressão de uma verdade que não pode de modo algum retrocederá filosofia helênica ou a tradição hebraica, senão que também os primeiros dogmas fundamentais da Igreja católica representam a originalidade plena e absoluta da consciência cristã e estão afastados de qualquer influência e compromisso filosófico com a sabedoria dos gregos. Assim acontece com o dogma da Trindade e com o da Encarnação. Para que possam ser formulados se servirão indubitavelmente de termos do ambiente filosófico (hipóstase, substância, essência, logos, etc), mas as intuições que eles devem sustentar não tem nenhum precedente naquele mundo. O dogma da Trindade determina nitidamente a personalidade de Deus em sua absoluta transcendência como círculo espiritual auto-suficiente; o ser, a inteligência e o amor não constituem três momentos de um processo descendente ou de uma emanação dispersiva, senão que são a íntima articulação viva da Unidade absoluta. Nenhuma hierarquia de hipóstases que pretenda preencher o abismo que separa Deus do mundo, o Criador do criado; nenhuma transação com as doutrinas helênicas do logos, do Nous, do demiurgo, da Alma do Cosmo. O dogma da Trindade quer ser a mais decidida afirmação da Transcendência divina, justamente porque concebe a Deus como personalidade absolutamente perfeita em si mesma e isto delineará à especulação filosófica o problema da origem do mundo em toda a sua gravidade.
O dogma da encarnação fixava, por sua vez, em uma fórmula inequívoca, uma concepção teológica que, se parecia um vago pressentimento na crença hindu dos avatares, devia parecer loucura à reflexão dos gregos. Se o dogma trinitário contribuía para manter separado Deus da humanidade, o da Encarnação reunia em Cristo, na unidade de sua pessoa, a natureza divina e a humana. Em Cristo o círculo divino, que parecia inexoravelmente fechado por cima do mundo, se abria para receber em seu seio o homem como se nesta prodigiosa queda completasse o próprio ciclo. O Eterno se introduzia na história e a redimia do seu vago errar. Em Cristo a humanidade se elevava até o Divino e permanecia no Eterno. A ferida que o mundo antigo havia sofrido e percebido, ficava para sempre sanada; e o homem já não devia ansiar em vão, com o pensamento e a vontade, um Absoluto inexoravelmente transcendente, senão que podia encontrar na profundidade de sua alma redimida a luz e a salvação. O espiritualismo, neoplatônico, apesar da proclamada onipresença do Uno, devia conservar intacta a concepção dualista do divino e do humano. O cosmo, ainda que considerado como signo e símbolo da realidade invisível, continuava representando sempre o sedimento extremo da geração divina, condenado a desenvolver-se no tempo, em uma história carente de graça e de significado. Ainda que Agostinho e o Pseudo Dionísio testemunhem em suas construções filosóficas o poderio do influxo neoplatônico demonstram quão essenciais mudanças especulativas podiam trazer a própria estrutura do pensamento helênico os dogmas da Trindade e da Encarnação. Não se podia conciliar a aceitação destes dogmas com as doutrinas fundamentais da filosofia grega; era necessário optar por Platão ou por Cristo, pela sabedoria ou pela fé. Assim acontece que no pensamento de Agostinho domine o dogma da Trindade e que este inspire diretamente a doutrina da alma, acentuando mormente as relações íntimas entre Deus e o espírito humano e exaltando o valor irredutível da personalidade e que no Areopagita o lugar central dado a Cristo na hierarquia dos seres chegue a reconhecer a esta uma plenitude e uma unidade que não encontramos no sistema plotiniano. As tentações da especulação grega deviam ser fontes e sugestivas; contudo o neoplatonismo cristão inspirava-se na mensagem de Cristo; mensagem que, mesmo para uma mente ansiosa de especulações intelectuais, era rica em motivos inesgotáveis, ainda intactos.
Também Meister Eckhart, como Agostinho e o Pseudo Dionísio, é antes de tudo um filósofo cristão e se orienta para a revelação: sua alma está sedenta, não de construções filosóficas, mas de paz e de saúde espiritual. Sua atitude originária, admiravelmente expressada nos Reden der Unterscheidung, é a de quem se liga com total entrega à Vontade absoluta e se propõe a alcançar a verdadeira liberdade do espírito. Se não queremos condenar-nos a desconhecer o valor da personalidade e da ensinança de Eckhart e a ver nele unicamente um escolástico, nem melhor nem pior que muitos outros, é necessário recordar os Reden que nos proporcionam este tom fundamental em que se organizarão todas as suas investigações teológicas e metafísicas e no qual adquirem seu autêntico significado e sua justificação espiritual. Sua alma é originariamente cristã e não conhece outra relação s que a que existe com Deus e, só através de Deus, com as outras almas: i a verdade é a que está contida no Novo Testamento, à que Eckhart recorre sempre e com insistência, aprofundando as fórmulas evangélicas com estrito rigor dialético. Com efeito, seu ponto de partida, para quem saiba localizá-lo no emaranhado das argumentações e das citações filosóficas, é sempre a palavra de Cristo e os dogmas da Trindade e da Encarnação, para os quais inclina as doutrinas dos filósofos com esforços interpretativos as vezes paradoxais e desconcertantes. Não há nele, como em Tomás de Aquino, nenhuma preocupação em criar uma doutrina filosófica que cumpra a função de praembulum fidei: pode-se dizer que toda a sua metafísica nasce da simples necessidade de interpretar as palavras de Cristo ou o enunciado das crenças cristãs fundamentais e que se encerra e se esgota no círculo desta exegese. É pouco, se pensarmos nas extensas Summae da idade escolástica, mas este círculo se amplia progressivamente, implicando novas investigações e complicando cada vez mais as relações entre o pensamento e a fé.
Pois bem, a revelação neotestamentária revelava o destino da alma redimida com expressões que, se estavam substancialmente imunes de misticismo panteísta na medida que não os sustentava uma sistematização racional, podiam conduzir, por obra de uma audaz interpretação, a uma concepção decididamente imanentista. João, no prólogo do Evangelho atribuído a ele, escreve: “deu-lhes o poder de tomarem-se filhos de Deus” e “o que nasceu do espírito é espírito”; e mais adiante: “esta é a vida eterna, para que te conheçam só a ti”. Esta afirmação, junto com a de Mateus: “ninguém conheceu o Pai senão o Filho”, adquire um significado inequívoco. E na Primeira Epístola o próprio João: “vejam que amor nos prodigalizou Deus, para que nos declaremos e sejamos filhos de Deus”; “seremos iguais a ele e o veremos tal qual é”. Por sua vez o apóstolo Paulo na Segunda Epístola aos Coríntios: “refletindo com o rosto descoberto a gloriado Senhor, nos transformamos nesta mesma imagem, convertidos em claridade pela claridade”; e na Epístola aos Romanos: “recebestes o espírito de adoção dos filhos de Deus; e se filhos, também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”, “predestinou que se transformem à imagem de seu Filho, de modo que este mesmo primogênito esteja em muitos irmãos”; “dele e por ele e nele são todas as coisas”; e na Epístola aos Gaiatas: “visto que sois filhos, mandou Deus o espírito do Filho aos vossos corações”.
Nas obras eckhartianas estas e outras fórmulas do mesmo alcance teológico se repetem com frequência. Nelas o mestre reconhece o núcleo central da mensagem cristã e o testemunho solene da obra redentora de Cristo na alma. Mas a interpretação de Eckhart se faz ainda mais rigorosa e desconcertante quando, depois de haver assimilado ao Filho a alma resgatada, leva em consideração todas aquelas palavras com que Cristo declara sua unidade com o Pai: “ninguém viu jamais a Deus: o unigênito, que está no seio do Pai, o deu a conhecer”; “eu e o Pai somos um”; “eu estou no Pai e o Pai em mim”; “ninguém conheceu o Filho senão o Pai e ninguém conheceu o Pai senão o Filho”.
Na realidade o sistema plotiniano, com seus distintos planos de vida espiritual, com a doutrina das hipóstases decrescentes, com o multiplicar-se das mediações, com a concepção do corpóreo como limite extremo da geração divina, estava mais afastado da posição panteísta. Na doutrina cristã, ao invés, se o dogma trinitário parecia isolar Deus em uma absoluta Transcendência, afirmava no entanto um contato mais direto entre a alma e Deus por obra da encarnação e o descenso do Espírito. Em Agostinho o esquema do chamado emanatismo neoplatônico começou a dissolver-se; em Tomás de Aquino já não existe. Os intermediários permanecem especialmente no pensamento árabe, mas o pensamento cristão os rejeita cada vez mais decididamente, sobretudo por influência do renovado aristotelismo. Mas enquanto este último, especialmente por obra de Tomás de Aquino, humilha as pretensões metafísicas e as tendências dedutivas da razão humana frente às construções sistemáticas a priori e frente à fé, e obriga o pensamento a revisar suas possibilidades gnosiológicas, o cristianismo de Eckhart pretende abandonar o neoplatonismo como determinado sistema de doutrinas,e, portanto, manter-se absolutamente fiel à mensagem cristã; mas do neoplatonismo conserva o método e a presunção metafísica. Em Meister Eckhart a razão não se detém diante das fórmulas dogmáticas e dos princípios evangélicos como diante do hiper racional e do incognoscível, senão que se refere a estes para construir uma metafísica que quisera ser a “metafísica da revelação”.
Por conseguinte, se se quer falar de neoplatonismo eckhartiano deve-se ter bem presente que este é unicamente um “meio”, o mais apropriado, talvez, para construir uma doutrina de alcance teológico-místico e que se fundamenta e justifica em uma originária atitude espiritual. A estrutura do seu sistema não conhece, portanto, nem os esquemas emanatistas dos neoplatônicos e dos árabes, nem as hipóstases, nem as complicadas teorias psicológicas, gnosiológicas ou físicas do aristotelismo, nem a função e o valor autônomo da natureza. Se em Plotino, a entonação dominante é ético-religiosa e inspira toda a sua metafísica, não faltam de modo algum os problemas cosmológicos e psicológicos, nem o gosto da investigação racional, nem o desejo do conhecimento como tal. Em Meister Eckhart, ao contrário, como veremos detalhadamente mais adiante, pode-se dizer que não existe mais que uma relação vital, a de Deus e a alma, e portanto, toda a sua especulação depende desta relação. Nisto consiste seu cristianismo e por este motivo concentra toda sua investigação nos dogmas da Trindade e da Encarnação. A eles se refere constantemente, não para construir uma teologia independente de todo interesse ético, mas para encontrar novamente ali o esquema doutrinai que lhe permita a construção de uma doutrina e,ao mesmo tempo, a justificação confessional do seu pensamento. O dogma da Trindade lhe serve para realçar a posição do Verbo, consubstanciai com o Pai e idêntico a ele, em quem vivem os eternos modelos das coisas, isto é, não tanto para confirmar a absoluta auto-suficiência de Deus, como para demonstrar a imanência da alma em Deus e sua origem divina. O dogma da Encarnação não se transforma no centro de uma teologia que propõe narrar a história de Deus e o mistério que transcende toda a compreensão humana e tampouco quer encaminhar o crente para um místico culto de Cristo: tudo isto equivaleria para Eckhart, a colocar a alma mais aquém do Divino e conceber a Deus como simples Objeto e não como vida e espírito operante. Cristo é o Verbo encarnado, ou melhor dito, o Verbo que se encarna não em um tempo e lugar determinados, mas na eternidade do presente, isto é, em toda a alma espiritual. O Verbo assumiu a natureza humana atualizando na história o que vale fora do tempo, manifestou sensivelmente o que se cumpre tão somente no mais íntimo da alma. As frases evangélicas que temos citado não são interpretadas por Eckhart em um vago sentido analógico, mas literalmente na forma mais rigorosa. Os termos generatio, filius, pater, spiritus, referidos ao Verbo, são reconsiderados em relação à alma regenerada em Deus, pois o Verbo, enquanto assumiu a natureza humana, instaura nela o Eterno. Mas, a fim de evitar uma excessiva valorização da Encarnação como fato histórico, Eckhart sempre reduz Cristo ao dogma trinitário para consagrar novamente sua eternidade e sua identidade com o Pai, que parecem atenuar-se na historicidade da Encarnação. Somente assim a história do Homem-Deus adquire um significado espiritual, porque se transforma no símbolo de uma geração eterna: tudo o que é passageiro, temporário, objetivo, exterior, não se redime de sua inferioridade metafísica, senão enquanto pode significar o prodígio da íntima vida divina.
O sistema eckhartiano constitui-se então na polarização de Deus e alma e na sua dialética extra-temporal: a contínua referência ao dogma tem justamente a finalidade de encontrar na revelação cristã o fundamento teológico, absoluto, de sua doutrina ético-mística. Deus é Pai porque gera o Filho, e o Filho é Filho enquanto é gerado pelo Pai e é igual ao Pai: o Espírito de amor consagra sua íntima relação. Mas o Filho encarnou e se fez homem; isto quer dizer que Deus não é Deus senão na alma, e a alma não é alma senão em Deus. Tudo o que se interpõe entre um e outra não tem valor e é nada. Se a alma é alma tão somente em relação a Deus e enquanto Deus se gera nela, é natural que todo conhecimento, todo ser, toda ação, devam reduzir-se a Deus e não haja lugar para uma realidade intermediária. Daí o eleatismo teológico de Eckhart que tende a anular todo o compromisso entre a alma e qualquer realidade inferior, para que o destino espiritual da alma se cumpra totalmente e o círculo divino-humano se ajuste e se feche em si mesmo, como o círculo do Deus Uno e Trino. Deus é o único Ser, o único Cognoscível, o único amável; por conseguinte tudo o que não é Deus, é nada. A oposição entre Deus e a criatura chega ao limite extremo e conduz a uma concepção do Uno muito parecida à teologia negativa do neoplatonismo e também à mística de Sankara. Mas Deus não é Deus senão enquanto gera o Filho, em dualidade com o gerado, quer dizer, a alma. Mas a dualidade não é nem identidade nem oposição. Se fosse identidade absoluta teríamos o Uno indiferenciado, a morte do pensamento e do amor, o vazio deserto. Se fosse oposição, teríamos o desespero da alma ou, uma vez mais, a nulidade exasperante, pois o oposto a Deus não é realidade senão nada. E, ao contrário, a dualidade na unidade que torna possível a relação viva, quer dizer, a unificação que é unidade real. Transcendência e imanência não se contradizem, pois se integram no ato espiritual: a transcendência é funcional e oferece a possibilidade da relação. Por causa da transcendência Deus não é a alma e a alma não é Deus; a alma fora de Deus é criatura e não-ser e Deus fora da alma é o Nada inominável. Pela transcendência o nascimento eterno é valor, porque supera a condição da criatura e conquista o Ser na Vida e no Espírito eterno. A imanência é o fim supremo e não imediatismo, e condiciona o que vale mais: a instauração de Deus e de sua obra na alma, a geração eterna.
A dialética eckhartiana renova, portanto, no sentido inteiramente cristão a concepção cíclica do espírito que encontramos em Plotino e em Proclo: a alma é gerada por Deus e a Deus retorna; o processo da alma é a própria vida da Divindade. Se não levamos em conta esta dialética do divino e do humano e de sua viva relação, para considerar primeiro a um e depois a outro dos dois termos, separadamente e chegar finalmente à sua conciliação, nos veremos condenados a desembocar em duas metafísicas opostas e a desaprovar em Eckhart enormes contradições: por um lado a absoluta transcendência, pelo outro o panteísmo. Não se pode negar que a profunda originalidade da intuição místico-metafísica nem sempre permite que Eckhart se expresse claramente. A miúdo leva-o a incongruências e a incertezas, mas sem dúvida, todas as suas obras — as latinas e as alemãs — se tornam luminosas e transparentes à luz desta dialética divino-humana, que já se encontra nos Reden e que constitui para nós o tom originário (não o filosofema originário) de sua personalidade e de sua alma cristã.
Indubitavelmente, não se pode desconhecer a afinidade desta doutrina com vários motivos dos sistemas neoplatônicos. Para esclarecer a si mesmo e aos demais o conteúdo vivo de sua experiência espiritual, Eckhart toma elementos filosóficos, metafísicos, teológicos de todas as partes, interpretando-os segundo suas exigências e transformando-os essencialmente na unidade original de seu pensamento. Temos que reconhecer que às vezes falseia a doutrina alheia; mas isto sucede com todos os grandes gênios do pensamento e da arte, que não são historiadores senão criadores. Eckhart possui um grande conhecimento da literatura filosófico-teológica de sua época, e por esta razão suas obras, sobretudo as latinas, estão também excessivamente engalanadas com referências, citações e lembranças, E claro que os autores que aparecem com mais frequência são aqueles em que Eckhart acredita refletir-se por uma verdadeira afinidade eletiva e são os de tom neoplatônico, não porque sobre eles Eckhart haja formado sua alma, mas porque neles podia encontrar a expressão racional menos inadequada de seu misticismo.
Temos visto através de que obras — nas contaminações árabe e cristã — o plotinismo se havia difundido por todo o Ocidente. Meister Eckhart conheceu estas obras: a referência direta ao De Causis é muito frequente, sobretudo no que alude ao Uno e à sua super-essencialidade. Também menciona várias vezes o Liber XXIV philosophorum, de evidente inspiração neoplatônico-pitagórica, para confirmar uma vez mais a teologia do Infinito e alguns motivos da dialética do Uno. E, entre os platônicos e os platonizantes, aparecem novamente o Pseudo Dionísio, Agostinho, Boécio, Orígenes, João Damasceno, Hugo de São Victor, São Boaventura, Avicena, Avicebron, o judeu Moisés ben Maimón (Maimônides). Aparecem ecos e reflexos, mais ou menos individuais de João Escoto Erígena, de Nemésio, de Macróbio, de Gundisalvo, de Alanus ab Insulis e deste anônimo tratado De intelligentiis — falsamente atribuído a Witelo e que se remonta ao primeiro terço do século XIII — que renova em profunda união com as investigações científicas originais, não poucos motivos da metafísica neoplatônica e revela claramente a influência do De Causis e de Avicena.
Mas tampouco lhe é desconhecido o pensamento de Aristóteles, ao qual recorre com frequência, assim como também recorre aos comentaristas Averroes e Alexandre de Afrodisia; mas sobretudo conhece o aristotelismo cristão de Tomás de Aquino, cujas doutrinas cita continuamente por escrito ou tacitamente aceita. Ambos os dominicanos estão de acordo com determinadas doutrinas ou detalhes de doutrinas gnosiológicas, ontológicas ou metafísicas, devido aos elementos platônicos que perduram nas redes da sistematização tomista. Mas não se deve partir do pressuposto de que Meister Eckhart é um tomista malogrado e considerar, portanto, as divergências de sua doutrina com respeito à de Tomás como caprichosos desvios injustificáveis; isto significaria antes de tudo que não se compreendeu o núcleo essencial do pensamento eckhartiano e revelaria ao mesmo tempo um estólido dogmatismo com respeito ao sistema tomista. É fácil também — como pôde fazer Karrer — extrair das obras de Eckhart passagens de evidente tom tomista, para chegar a negar a originalidade do seu misticismo metafísico ou limitá-la a fórmulas audazes ou a intemperanças especulativas que, se assim fossem, deveriam-se atribuir ao escasso equilíbrio intelectual ou ao excessivo desejo de originalidade. Com efeito, também o pensamento de Tomás de Aquino, como o dos neoplatônicos, serve a Meister Eckhart como “meio” para a formulação do seu pensamento, que, se está longe do tomismo, está em muitos detalhes que temos considerado, igualmente longe do neoplatonismo. O que separa Eckhart de Tomás de Aquino, é especialmente o método, descendente, intuitivo e dedutivo no primeiro, ascendente e indutivo no segundo. Indubitavelmente, se filosofar quer dizer avançar cautelosamente na formação dos próprios conceitos e justificar racionalmente todo o pensamento, Eckhart não é tão filósofo como Tomás de Aquino, que é um sistematizador — dos maiores que a história tem lembrança — não um criador e um intuitivo como Eckhart. Por conseguinte é natural que a coerência sistemática pertença ao Aquinate e que, em troca, as incongruências e também as contradições sulquem às vezes os conceitos, que em Eckhart não são o que mais valem senão que servem para “significar” uma intuição original mais profunda que nenhum sistema pode jamais racionalizar adequadamente. Tomás é um filósofo que crê porque aderiu com a vontade a uma fé e a um mistério que não admite compromissos com as exigências da razão demonstrativa; é um crente por reflexão, não por instinto; Eckhart, por sua vez, é um crente que quer raciocinar para expressar-se a si mesmo e para expressar aos demais o milagre do Inexpressável, é um privilegiado do espírito que teve a sorte de possuir, como os gênios criadores da poesia e da arte, a intuição profunda de uma só ideia e procura irradiar sua luz interior em milhares de reflexos exteriores para revelá-la cada vez mais adequadamente, assim como o pintor insaciável procura expressar, em imagens sempre novas, o tesouro inviolável de sua alma.
O que Tomás de Aquino se esforça por possuir através de investigações, demonstrações e analogias, valendo-se da realidade inferior para pensar e demonstrar a superior, Eckhart o possui por intuição e íntima experiência originária: não se chega a Deus mediante complicadas provas, forjando-se a ilusão de poder estender uma ponte que, através das coisas, una a alma a Deus. Tais demonstrações deixam sempre Deus além da alma e aquele que crê encontrá-lo por este caminho, nem sequer o buscaria se não o houvesse encontrado já em si mesmo.
Repito, portanto, que Eckhart não é um escolástico no sentido tradicional da palavra e não é antes de tudo um filósofo. Mas suas obras foram realmente pensadas e escritas e, pelo menos aparentemente, estruturadas com intenções lógicas e devem por conseguinte ser consideradas como tal. Como qualquer outro sistema de pensamento, também elas devem ser submetidas ao exame do pensamento racionalizante que desdenha as contradições, as obscuridades e as incoerências lógicas. Sua estrutura teológico-metafísica, como tal, pertence à história do pensamento e à análise da crítica intransigente; e por isso nós também temos tentado construí-la superficialmente recorrendo às suas fontes cristãs e metafísicas. Mas no seu profundo significado pertence à história do Espírito que não tem desenvolvimento nem mudanças fenomênicas, mas que se eleva para uma transcendente atmosfera ideal na qual se encontram e se reconhecem os homens escolhidos de todas as idades e de todas as nações, que o tempo fez com que nascessem afastados entre si, em diferentes civilizações e sob diferentes bandeiras religiosas e filosóficas, mas que cada época distinta os reconhece como intérpretes da humanidade imortal. As classificações pertencem ao raciocínio humano que necessita distinguir e discriminar e no entanto divide e dissolve a vida do espírito que é unidade com o Absoluto. Assim,, temos chamado de cristã a fundamental inspiração de Eckhart e neoplatônicos nos pareceram os meios extrínsecos de sua reconstrução especulativa. Indubitavelmente em sua mística certeza, Meister Eckhart podia declarar solenemente a sinceridade de sua fé e recorrer aos dogmas da Trindade e da Encarnação como a expressões indissolúveis de sua experiência religiosa; mas o historiador pode buscar, mais além das incrustações históricas e dogmáticas, mais além das fórmulas caducas e das teologias inconsistentes, a manifestação de uma das formas fundamentais da atividade espiritual humana e rastrear, mesmo sob as mais firmes profissões de fé, a divulgação de uma verdade universal, que os próprios místicos — e como veremos, também Eckhart — parecem pressentir.
Eckhart é um metafísico porque é um místico; sua personalidade moral-religiosa é maior que seu “pensamento”, portanto, ao analisar o que se chamou “seu sistema” é necessário reconduzir cada palavra expressada à originária intuição do Divino que constitui o fundo de sua alma, pois na base da consciência e da razão ferve o Irracional aspirando à luz que racionalmente o ilumine.