Agostinho: eu

Concede, Senhor, que EU bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará antes de te conhecer? Confissões I, I

Que EU, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois me pregaram teu nome. invoca-te, Senhor, a que tu me deste, a que me inspiraste pela humanidade de teu Filho e o ministério de teu pregador. Confissões I, I

EU nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez seria melhor dizer que EU não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a que parte do céu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: EU encho o céu e a terra? Confissões I, II

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que o embriagasses, para que EU me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo, meu único bem! Que és para mim? Tem piedade de mim, para que EU possa falar. E que sou EU para ti, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contra mim, ameaçando-me com terríveis castigos? Acaso é pequeno o castigo de não te amar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericórdias, meu Senhor e meu Deus, que és para mim? Dize a minha alma: EU sou a tua salvação. Que EU ouça e siga essa voz e te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra EU para que possa vê-lo para não morrer eternamente. Confissões I, V

Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada. Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois EU o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitos contra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Não quero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me a mim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniquidade. Não quero contender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniquidades, Senhor, quem, Senhor, subsistirá? Confissões I, V

Permita, porém, que EU fale em presença de tua misericórdia, a mim, terra e cinza; deixa que EU fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que de mim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás compaixão. Confissões I, VI

E que pretendo dizer-te, Senhor, senão que ignoro de onde vim para aqui, para esta não sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? Não o sei. Mas receberam-me os consolos de tuas misericórdias, conforme o que ouvi de meus pais carnais, de quem e em quem me formaste no tempo, pois EU de mim nada recordo. Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha mãe, nem minhas amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas aquele alimento da infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesouros dispostos por ti até no mais íntimo das coisas. Confissões I, VI

Também por tua causa é que EU não queria mais do que me davas; por tua causa é que minhas amas queriam dar-me o que tu lhes davas, pois elas, movidas de sadio afeto, queriam darme aquilo que abundavam graças a ti, já que era um bem para elas ou delas receber aquele bem, embora realmente não fosse delas, meros instrumentos, porque de ti procedem, com certeza, todos os bens, ó Deus, e de ti, Deus meu, depende toda minha salvação. Confissões I, VI

Depois também comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado. Isto disseram de mim, e o creio, porque o mesmo acontece com outros meninos, pois EU não tenho a menor lembrança dessas coisas. Confissões I, VI

Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecer meus desejos a quem os podia satisfazer, embora realmente não o pudessem, porque meus desejos estavam dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiam entrar em minha alma. assim, agitava os braços e dava gritos e sinais semelhantes a meus desejos, os poucos que podia e como podia, embora não fossem de fato sua expressão. Mas, se não era atendido, ou porque não me entendessem, ou porque o que desejava me fosse prejudicial, EU me indignava com os adultos, porque não me obedeciam, e sendo livres, por não quererem me servir; e deles me vingava chorando. Assim são as crianças que pude observar; e que EU também fosse assim, mais me ensinaram elas, sem o saber, do que os que me criaram, sabendo-o. Confissões I, VI

Minha infância morreu há muito tempo, mas EU continuo vivo. Mas, dize-me, Senhor, tu que sempre vives, e em quem nada falece — porque existias antes do começo dos séculos, e antes de tudo o que há de anterior, e és Deus e Senhor de todas as coisas; e esse encontram em ti as causas de tudo o que é instável, e em ti permanecem os princípios imutáveis de tudo o que se transforma, e vivem as razões eternas de tudo o que é transitório — dize-me a mim, EU to suplico, ó meu Deus, diz-me, misericordioso, a mim que sou miserável, dize-me: porventura a minha infância sucedeu a outra idade minha, já morta? Será esta aquela que vivi no ventre de minha mãe? Porque também desta me revelaram algumas coisas, e EU mesmo já vi mulheres grávidas. Confissões I, VI

E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era EU? Fui alguém, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. Acaso te ris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te confesse pelo que conheci de ti? Confissões I, VI

EU te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça, o homem pode conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. Confissões I, VI

Então EU já existia, já vivia de verdade; e, já no fim da infância procurava sinais com que pudesse exprimir aos outros as coisas que sentia. Com efeito, de onde poderia vir semelhante criatura, senão de ti, Senhor? Acaso alguém pode ser artífice de si mesmo? Porventura existirá algum outro manancial por onde corra até nos o ser e a vida, diferente da que nos dais, Senhor, tu em quem ser e vida não são coisas distintas, porque és o Sumo Ser e a Suprema Vida? Com efeito, és sumo, e não te mudas, nem caminha para ti o dia de hoje, apesar de caminhar por ti, apesar de estarem em ti com certeza todas estas coisas, que não teriam caminho por onde passar se não as contivesses. E porque teus anos não fenecem, teus anos são um perpétuo hoje. Oh! Quantos dias nossos e de nossos pais já passaram por este teu hoje, e dele receberam sua duração, e de alguma maneira existiram, e quantos passarão ainda, e receberão seu modo, e seu ser? Mas tu és sempre o mesmo, e todas as coisas de amanhã e do futuro, e todas as coisas de ontem e do passado, nesse hoje as fazes, nesse hoje as fizeste. Confissões I, VI

Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não recordo de mim? E em que EU poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora EU suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam que EU fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom. Confissões I, VII

Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que não se me podia dar sem dano, indignar-me asperamente com as pessoas livres que não se submetiam, assim como as pessoas respeitáveis, e até com meus próprios pais, e com muitos outros que, mais sensatos, não davam atenção aos sinais de meus caprichos, enquanto EU me esforçava por agredi-los com meus golpes, quanto podia, por não obedecerem às minhas ordens, que me teriam sido danosas? Confissões I, VII

Assim, se fui concebido em iniquidade, e se em pecado me alimentou minha mãe, onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, EU, teu servo, onde e quando fui inocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele já não conservo nenhuma lembrança? Confissões I, VII

Contudo deixou de existir, porque EU já não era um bebezinho que não falava, mas um menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, só mais tarde é que vim a perceber. Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários movimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e também ao ver que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia. Confissões I, VIII

Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, EU a retinha na memória e, ao se pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto, EU entendia e notava que aquele objeto era o denominado com a palavra que pronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar. Confissões I, VIII

Que esta fosse sua intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são como uma linguagem universal, feita com a expressão rosto, a atitude dos membros e o tom da voz, que indicam os afetos da alma para pedir, reter, rejeitar ou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em várias frases e ouvidas repetidas vezes, ia EU aos poucos notando o significado e, domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades por meio delas. Confissões I, VIII

Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então, quando se me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais EU, miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse gênero de vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão. Confissões I, IX

Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, senão porque EU gostava de brincar, embora os que nos castigavam não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que EU, menino, recebia porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente? Confissões I, IX

Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era vencido por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja do que EU, quando uma partida de bola era vencido por meu companheiro? Confissões I, IX

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do pecado somente ordenador, EU pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres, uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam me ensinar, qualquer que fosse sua intenção. Confissões I, X

Tu viste, Senhor, que numa ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente um dor de estômago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste também, meu Deus, pois já me tinhas sob tua guarda, com que fervor de espírito e com que pedi à piedade de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, o batismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, pois que me criava com mais amor em seu casto coração em tua para a vida eterna e, solícita, já havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos da salvação, confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados, quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se minha purificação, considerando que seria impossível, se EU vivesse, que não me tornasse a manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do batismo é muito maior e mais perigosa. Confissões I, XI

Nesta época EU já tinha verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da casa, à exceção de meu pai, que, porém, não pôde vencer em mim a ascendência da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não acreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para mim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti e a tuas ordens. Confissões I, XI

Nesta minha infância, na qual EU tinha menos que temer por mim do que em minha adolescência, EU não gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem não procedia bem era EU, que não estudava a não ser constrangido, pois ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz. Confissões I, XII

Tampouco os que obrigavam a estudar agiam corretamente; antes, todo o bem que EU recebia vinha de ti, meu Deus, porque eles não tinham outro fim ao me obrigarem a estudar senão saciar o apetite de abundante miséria e de gloria ignominiosa. Mas tu, Senhor, que tens contados os cabelos de nossa cabeça, usavas do erro de todos os que me coagiam a estudar para minha utilidade; e usavas da minha falta de vontade de estudar para meu castigo, de que certamente EU já era digno, sendo ainda tão pequeno, e tão grande pecador. Confissões I, XII

Porque odiava EU as letras gregas, que me ensinavam quando EU era criança? Não o sei, e nem agora o posso explicar. Em compensação, as letras latinas me apaixonavam, não as ensinadas pelos professores primários, mas a que é explicada pelos chamados gramáticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende a ler, a escrever e a contar, não me foram menos pesadas e insuportáveis que as gregas. Mas donde podia proceder essa aversão, senão do pecado e da vaidade da vida, porque EU era carne e vento que caminha e não volta? Confissões I, XIII

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, EU, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. EU não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, EU procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que EU era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII

Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua verdade, e diga: Não é assim, não é assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois EU preferiria esquecer todas as aventuras de Eneias, e outras histórias semelhantes, do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas às portas; porém, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro. Confissões I, XIII

Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se EU os interrogar sobre se é verdade que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto. Confissões I, XIII

Por que então aborrecia EU a literatura grega na qual se cantam tais coisas? Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na sua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mim com relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma língua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas gregas. Confissões I, XIV

EU ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, EU, ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. EU o aprendi, sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar à luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia EU depositando quanto sentia. Confissões I, XIV

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso ouvir com paciência a um homem nascido do mesmo que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; porém, EU preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos. Confissões I, XVI

– Nada menos que aquele que faz retumbar a abóbada do céu com enorme EU, homenzinho, não haveria de fazer o mesmo? Confissões I, XVI

Mas qual o proveito disso — ó vida verdadeira, meu Deus — de que me servia ser aplaudido por minha declamação mais que todos os meus coetâneos e condiscípulos? Não era tudo aquilo fumo e vento? Acaso não havia outra coisa em que exercitar meu talento e minha língua? Teus louvores, Senhor, teus louvores, consignados nas Escrituras, poderiam soerguer a frágil planta de meu coração, e EU não teria sido arrebatado pela vaidade de vãs quimeras, presa imunda das aves. Com efeito, há diversas maneiras de oferecer sacrifício aos anjos rebeldes. Confissões I, XVII

Mas, por que admirar-se que EU me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastar de ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns homens que se, ao contar alguma boa ação, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismo cobriam-me de críticas e, pelo contrário, que eram elogiados por narrar suas torpezas com palavras castiças e apropriadas, de modo eloquente e elegante, e que os inchavam de vaidade? Confissões I, XVIII

À beira de tal lodaçal jazia EU, pobre criança, sendo esta a arena em que me exercitava, temendo mais cometer um barbarismo de linguagem do que cuidando de não invejar, se o cometia, aqueles que o tinham evitado. Confissões I, XIX

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que EU? E EU até desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. Confissões I, XIX

Também cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que os deleitavam tanto quanto a mim, e que eles me faziam pagar. No jogo, frequentemente, conseguia vitórias fraudulentas, vencido pelo desejo de me sobressair. Contudo, nada havia que EU quisesse mais evitar e que EU repreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo EU fazia aos demais. Confissões I, XIX

Se acaso EU era o prejudicado, e o acusado ficava furioso, EU não cedia. Será esta a inocência infantil? Não, Senhor, não o é, EU to confesso, meu Deus. Porque essas mesmas coisas que se fazem com os criados e mestres por causa de nozes, bolas e passarinhos, se avultam na maioridade com os magistrados e reis por causa de dinheiro, palácios e servos, do mesmo modo que à palmatória sucedem-se maiores castigos. Confissões I, XIX

Contudo, Senhor, graças te sejam dadas, excelso e ótimo criador e ordenador do universo, nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque então, EU já existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tua profunda unidade, fonte de minha existência. Confissões I, XX

Não queria ser enganado, tinha boa memória, e me ia instruindo com a conversação. Alegrava-me com a amizade, fugia à dor, ao desprezo, à ignorância. E não seria isto, em tal criatura, digno de admiração e de louvor? Pois todas essas coisas são dons do meu Deus, que EU não dei a mim mesmo. E todos são bons, e tudo isso constitui o meu EU. Confissões I, XX

O que me criou, portanto, é bom, e ele próprio é o meu bem; a ele louvo por todos estes bens que integravam meu ser de criança. EU pecava em buscar em mim próprio e nas demais criaturas, e não nele, os deleites, grandezas e verdades; por isso caia logo em dores, confusões e erros. Confissões I, XX

Graças a ti, minha doçura, minha esperança e meu Deus, graças a ti por teus dons; que eles fiquem em ti conservados. Assim me guardarás também a mim, e aumentarão e aperfeiçoarão os dons que me deste, e EU estarei contigo, porque também me deste a existência. Confissões I, XX

E que me deleitava, senão amar e ser amada? Mas EU não era moderado, indo de alma para alma de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosa concupiscência de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como que uma névoa que obscurecia e ofuscava meu coração, a ponto de não discernir a serena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam; arrastavam minha fraca idade pelo declive íngreme de meus apetites, afogando-me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre mim, e EU não o sabia. Ensurdeci com o ruído da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais me afastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava e fervia em minha devassidão, e tu te calavas — ó alegria que tão tarde encontrei! — tu te calavas então, e EU ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrás de estéreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansaço. Confissões II, II

Pelo menos EU deveria atender com mais diligencia à voz de tuas nuvens: Também eles sofrerão as tribulações da carne; mas EU quisera poupar-vos; e bom é ao homem não tocar em mulher; o que está sem mulher pensa nas coisas de Deus, de como o há de agradar; mas o que está ligado pelo matrimonio pensa nas coisas do mundo, e em como há de agradar à mulher. Confissões II, II

Estas são as palavras que EU deveria ter ouvido mais atentamente; e, eunuco pelo amor ao reino de Deus, teria suspirado mais feliz por teus abraços. Confissões II, II

Mas EU, miserável, tornei-me em torrente, seguindo o ímpeto de minha paixão, te abandonei e transgredi a todos os teus preceitos, sem porém, escapar de teus castigos. E quem o poderia dentre os mortais? Sempre estavas ao meu lado, irritando-se misericordiosamente comigo, e aspergindo com amaríssimos desgostos todos os meus gozos ilícitos, para que EU buscasse a alegria sem te ofender e, quando a achasse, de modo algum fosse fora de ti, Senhor. Confissões II, II

Mas onde estava EU? Oh! Quão longe, exilado das delicias de tua casa naqueles meus dezesseis anos de idade carnal, quando esta empunhou seu cetro sobre mim, e EU me rendi totalmente a ela, à fúria da concupiscência que a degradação humana legítima, porém, ilícita, de acordo com as tuas leis. Confissões II, II

Nem mesmo os meus cogitaram em me sustentar na queda, pelo casamento, ao ver-me cair; cuidavam apenas que EU aprendesse a compor discursos magníficos e a persuadir com a palavra. Confissões II, II

Mas, a quem conto EU estes fatos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tua presença conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que estas páginas chegassem às mãos de poucos. E para que então? Para que EU, e quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti? E que há de mais próximo a teus ouvidos que o coração contrito e a vida que procede da ? Confissões II, III

Contudo, este mesmo pai não se importava de saber se EU crescia para ti, ou que fosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes EU era deserto, por carecer de teu cultivo, ó Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração. Confissões II, III

Mas, nessa época, já tinhas começado a levantar, no coração de minha mãe, teu templo e os alicerces de tua santa morada; meu pai não era mais que catecúmeno, recente ainda. Por isso minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora EU ainda não fosse batizado, temia que EU seguisse as sendas tortuosas por onde andam os que te voltam as costas, e não o rosto. Confissões II, III

Porém, esses conselhos pareciam-me próprios de mulheres, e EU me envergonharia de segui-los. Confissões II, III

Mas, na realidade, eram teus, embora EU não o soubesse, e por isso julgava que te calavas, e que era ela quem me falava; e EU te desprezava em tua serva, EU, seu filho, filho de tua serva e servo teu, a ti que não cessavas de me falar pela sua boca. Confissões II, III

Mas EU não o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouvia jactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim EU gostava de fazer o mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que há de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido pecado que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto. Confissões II, III

Eis com que companheiros andava EU pelas graças de Babilônia, revolvendo-me na lama, como em cinamomo e unguentos preciosos. E, para que todo esse lodo me pegasse bem firme, subjugava-me o inimigo invisível, e me seduzia, por ser EU presa fácil da sedução. Confissões II, III

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilônia, mas que em outras coisas caminhava mais devagar, cuidou — como fizera ao aconselhar-me a castidade — de conter com os laços do matrimonio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. Já percebera ela que me era pestilento, e que mais adiante me seria perigoso — já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz. Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse a esperança que sobre mim acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já tinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe, desejavam ardentemente; meu pai, porque não pensava quase nada de ti, mas apenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que tais tradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo EU, agora, enquanto me é possível pela lembrança, o caráter de meus pais. Confissões II, III

É certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homens que nem a própria iniquidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela indigência. Também EU quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas por penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo de seu resultado, mas atraía-me o furto em si, o pecado. Confissões II, IV

Nas imediações de nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem pelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite — pois até então ficaríamos jogando nas eiras, de acordo com nosso mau costume — dirigimo-nos ao local, EU e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E levamos grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aos porcos, embora comêssemos alguns; nosso deleite era fazer o que nos agradava justamente pelo fato de ser coisa proibida. Confissões II, IV

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e EU a amei; amei minha morte, amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV

Que amei, então, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Não eras belo, já que eras furto. Mas, por acaso és algo para que EU fale contigo? Belas eram as pêras que roubamos, por serem criaturas tuas, ó formosíssimo Criador de todas as coisas, bom Deus, Deus sumo, meu bem e meu verdadeiro bem; belas eram aquelas pêras! Porém, não eram elas que apeteciam minha alma depravada. EU as tinha em abundância, e melhores. Colhi-as da árvore só para roubar; tanto que, tão logo colhidas, joguei-as fora, saboreando nelas apenas a iniquidade, com que me regozijava. Se alguma delas entrou em minha boca, somente o crime é que lhe deu sabor. Confissões II, VI

Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha alma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teu nome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça e misericórdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o mal que não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, EU que amei gratuitamente o erro? Confissões II, VII

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas que lê de mim, e que EU recordo e confesso, não se ria de mim por haver sido curado pelo mesmo médico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecesse tanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que EU, porque o mesmo que me curou de tantas e tão graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair no pecado. Confissões II, VII

E que fruto colhi EU, miserável, daquelas ações que agora recordo com rubor? Sobretudo daquele furto, em que amei o próprio furto, e nada mais? Nenhum, pois o furto, em si nada valia, ficando EU mais miserável com ele. Todavia, é certo que EU sozinho não o teria praticado — a julgar pela disposição de meu ânimo na ocasião; – não, de modo algum; EU sozinho não o faria. Confissões II, VIII

Mas, que é esta, na verdade? E quem mo poderá ensinar, senão o que ilumina meu coração e rasga minhas sombras? De onde vem à minha alma a ideia destas indagações, desta discussão e considerações? Se EU então amasse as pêras que roubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia tê-las roubado sozinho, se isso bastasse. Poderia fazer a iniquidade pela qual chegaria meu deleite sem necessidade de excitar o prurido da minha cobiça com a conivência de almas cúmplices. Confissões II, VIII

E que sentimento era aquele de minha alma? certamente, assaz torpe e EU um desgraçado por alimentá-lo. Mas, que era na realidade? E quem há que conheça os pecados? Era como um riso, como que a fazer-nos cócegas no coração, provocado por ver que enganávamos aos que não suspeitavam de nós tais coisas, e porque sabíamos que haviam de detestá-las. Confissões II, IX

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se ri facilmente quando está só? Ninguém o faz, é verdade; porém, também é verdade que às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja, quando se oferece aos sentidos ou à alma algo extraordinariamente ridículo. Porque a verdade é que EU sozinho nunca teria feito aquilo; não, EU sozinho jamais faria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrança daquele estado de alma, e repito que EU sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não me deleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado de modo algum, nem EU o teria feito. Confissões II, IX

Quem desatará este nó, tão enredado e emaranhado? Como é asqueroso! Não quero voltar para ele os olhos, não quero vê-lo. Só a ti quero, justiça e inocência, tão bela e graciosa aos olhos puros, e com insaciável saciedade. Só em ti se acha o descanso supremo e a vida imperturbável. Quem entra em ti, entra no gozo do seu Senhor, e não temerá, e estará perfeitamente bem no sumo bem. EU me afastei de ti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescência, e cheguei a ser para mim mesmo uma região de esterilidade. Confissões II, X

Cheguei a Cartago, e por toda parte fervilhava a sertã de amores impuros. Ainda não amava, mas já gostava de amar; secretamente sedento, aborrecia a mim próprio por não me sentir mais indigente de amor. Gostando do amor buscava o que amar, e odiava a segurança e os meus caminhos sem perigos, porque tinha dentro de mim fonte de alimento interior, de ti mesmo, ó meu Deus. EU não sentia essa fonte como tal; antes, estava sem apetite algum dos manjares incorruptíveis, não porque estivesse saciado deles, mas porque, quanto mais vazio, tanto mais enfastiado me sentia. Confissões III, I

Deve-se, pois, repelir a compaixão? De modo algum. Convém, pois, que alguma vez se amem as dores. Mas evita nisso a impureza, ó minha alma, sob proteção de Deus, do Deus de nossos pais, louvado e exaltado por todos os séculos; cuidado com a impureza. Porque nem agora me fecho a tal compaixão. Mas naquele tempo comprazia-me no teatro com os amantes, quando eles se gozavam em suas torpezas — embora estas não passassem de encenações. E quando um deles se perdia, EU quase piedosamente me contristava, e sentia prazer numa e noutra coisa. Confissões III, II

Mas EU, desventurado, amava então a dor, e buscava motivos para senti-la. Naquelas desgraças alheias, falsas e mímicas, agradava-me tanto mais a ação do ator, e me mantinha tanto mais atento quanto mais copiosas lágrimas me fazia derramar. Confissões III, II

Mas, que admira que EU, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por não aceitar tua proteção, estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, sem dúvida, os desejos daquelas emoções de dor que, todavia, não queria que fossem muito profundas em mim, porque não desejava padecer coisas como as que via representadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou fingidas, me tocassem só superficialmente. Mas, como acontece aos que coçam a ferida com as unhas, terminava por provocar em mim mesmo um tumor abrasador, podridão e pus repelente. Confissões III, II

Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas iniquidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com duro açoite por ti! Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó Deus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva! Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens, que até de sua própria cegueira se gloriam! EU já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que EU era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às turbulências dos eversores — ou demolidores — nome sinistro e diabólico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente pudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que me deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais. Confissões III, III

Entre essa gente estudava EU, em tão tenra idade, os livros da eloquência, na qual desejava sobressair com o fim condenável e vão de satisfazer à vaidade humana. Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livro contém uma exortação à filosofia, e se chama Hortênsio. Esse livro mudou meus sentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas súplicas, e fez com que mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda vã esperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal, e comecei a me reerguer para voltar a ti. Não era para limar a linguagem — aperfeiçoamento que, parece, EU compraria com o dinheiro de minha mãe, naquela idade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu pai — não era, repito, para limar o estilo que EU me dedicava à leitura daquele livro, nem era seu estilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia. Confissões III, IV

Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que EU soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está a sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Confissões III, IV

Mas então — tu bem o sabes, luz de meu coraçãoEU ainda não conhecia o pensamento de teu Apóstolo. Só me deleitava naquelas palavras de exortação, o fato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, a reter e a abraçar não a esta ou àquela seita, senão à própria Sabedoria, onde quer que estivesse. Só uma coisa me arrefecia tão grande ardor: não ver ali o nome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho, por tua misericórdia EU o bebera piedosamente com o leite materno, e o conservava, no mais profundo do meu coração, em alto apreço; e assim, tudo quanto fosse escrito sem este nome, por mais verídico, elegante e erudito que fosse, não me arrebatava totalmente. Confissões III, IV

Em vista disso, decidi dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer. Vi ali algo encoberto para os soberbos e obscuro para as crianças, mas humilde a princípio e sublime à medida que se avança o velado de mistérios; e EU não estava disposto a poder entrar nela, dobrando a cerviz à sua passagem. Contudo, ao fixar nela a atenção, não pensei o que agora estou dizendo, mas simplesmente me pareceu indigna de ser comparada com a majestade dos escritos de Cícero. Meu orgulho recusava sua simplicidade, e minha mente não lhe penetrava o íntimo. Contudo, a agudeza desta visão haveria de crescer com os pequenos; mas EU de nenhum modo queria ser criança e, enfatuado de soberba, considerava-me grande. Confissões III, V

Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando EU faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas EU tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Vemos estas coisas, e são mais reais do que as conjecturas sobre outros corpos grandiosos, que, por sua vez, que, por sua vez, quando as imaginamos, são mais reais do que quando por meio delas conjeturamos outras maiores e infinitas, que de modo algum existem. Com tais quimeras me alimentava EU, então, e por isso não me saciava. Confissões III, VI

Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava EU, longe de ti, privado até as bolotas com que EU alimentava os porcos! Quão melhores eram as fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de trevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e poesia EU os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao voo de Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas — ai de mim! — EU acreditei naqueles erros dos maniqueístas. Confissões III, VI

Ai de mim, por que degraus fui descendo até a profundidade do abismo, exaurido e devorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus — a quem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda não te conhecia — tudo por buscar-te, não com a inteligência — com a qual quiseste que EU fosse superior aos animais — mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim, mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo, e mais elevado do que o que em mim existe de mais alto. Confissões III, VI

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência — enigma de Salomão — que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei à vontade dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual me seduziu por andar EU vagando fora de mim, sob o império da vista carnal, ruminando em meu íntimo o que meus olhos haviam devorado. Confissões III, VI

Não conhecia EU outra realidade — a verdadeira — e me sentia como que movido por um aguilhão a aceitar a opinião daqueles insensatos impostores quando me perguntavam de onde procedia o mal, se Deus estava limitado por forma corpórea, se tinha cabelos e unhas, e se deviam ser considerados justos os que tinham várias mulheres simultaneamente, e os que causavam a morte de outros ou sacrificavam animais. Confissões III, VII

EU, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter EU tal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a alma não ia além de fantasmas? Confissões III, VII

Ignorava EU então estas coisas e não as refletia e, embora de todos os lados me ferissem os olhos, EU não as via. Quando declamava algum poema, não me era lícito por um pé em qualquer outra parte do verso, senão em uma espécie de metro uns e em outra outros, e em um mesmo verso não podia meter em todas as partes o mesmo pé; e a própria arte da prosódia, apesar de mandar coisas tão distintas, não era diversa em cada parte, senão uma só e coerente. Confissões III, VII

Desconhecendo EU essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia EU quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que se um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas pelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”! Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericórdia com os frutos da terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte. Confissões III, X

Nesse sonho viu-se de pé sobre uma régua de madeira; e um jovem resplandecente, alegre e risonho que vinha ao seu encontro, triste e amarga. Este lhe perguntou a causa de sua tristeza e lágrimas diárias, não por curiosidade, como sói acontecer, mas para instruí-la; e respondendo-lhe ela que chorava a minha perdição, mandou-lhe, para sua tranquilidade, que prestasse atenção e visse por onde ela estava também estaria EU. Apenas olhou, viu-me junto de si, de pé sobre a mesma régua. Confissões III, XI

De onde veio este sonho, senão dos ouvidos que tinhas atentos a seu coração, ó Deus bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se não tivesses outro para cuidar, zelando de todos como de cada um! E como explicar o que se segue? Contou-me minha mãe esta visão, e querendo-a EU persuadir de que significava o contrário, e que não devia desesperar de ser algum dia o que EU era, isto é, maniqueísta, ela, sem nenhuma hesitação, me respondeu: “Não; não me foi dito: onde ele está ali estarás tu, mas onde tu estás ali estará ele também”. Confissões III, XI

Confesso, Senhor, e muitas vezes disse que, pelo que me recordo, me abalou mais esta tua resposta pela solicitude de minha mãe, imperturbável diante de explicação falsa e ardilosa, e por ter visto o que se devia ver — e que EU certamente não veria sem que ela o dissesse — que o mesmo sonho com o qual anunciaste a esta piedosa mulher com tanta antecedência, a fim de consolá-la em sua aflição presente, uma alegria que só havia de se realizar muito tempo depois. Confissões III, XI

Nessa mesma ocasião deste à minha mãe outra resposta, de que ainda me lembro — pois passo em silencio muitas circunstâncias, pela pressa que tenho de chegar àquelas que te devo confessar com mais urgência, ou porque não as recordo — deste-lhe outra resposta por meio de um teu bispo, educado em tua Igreja e exercitado em tuas Escrituras. Como ela pedisse que se dignasse falar comigo, para refutar meus erros e desenganar-me de minhas más doutrinas e ensinar-me as boas — pois assim fazia com quantos julgava idôneos — ele negou-se com muita prudência, como pude verificar depois; respondeu-lhe que EU estava incapacitado para receber qualquer ensinamento, por estar enfatuado com a novidade da heresia maniqueísta, e por haver criado embaraço a muitos ignorantes com algumas questões fáceis, como ela mesma lhe relatara. Confissões III, XII

Durante esse período de nove anos — dos dezenove até os vinte e oito anos — fui seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões; publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com o falso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em toda parte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos do teatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas de espetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessas imundícies, levando alimento aos chamados “eleitos” e “santos”, para que na oficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisas seguia EU e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por mim. Confissões IV, I

Riam-se de mim os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados e salutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas EU, pelo contrário, hei de confessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, e concede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que EU te sacrifique uma vítima de louvor. Confissões IV, I

De fato, sem ti, que sou EU para mim mesmo senão um guia que conduz ao abismo? Ou que sou EU, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele quem for, se é homem? Confissões IV, I

Naqueles anos EU ensinava retórica e, movido pela cobiça, vendia a arte de vencer pela loquacidade. Contudo, bem sabes, Senhor, que preferia ter bons discípulos, dos que se chamam “bons”, aos quais ensinava sem rodeios a arte de enganar, não para que usassem dela contra a vida de um inocente, mas para algum dia defender algum culpado. Mas, ó Deus, tu me viste de longe vacilar sobre um caminho escorregadio, viste brilhar, entre espesso fumo, os fulgores da boa que EU demonstrava ao ensinar àqueles amantes da vaidade, àqueles pesquisadores de mentiras, EU, seu irmão e semelhante. Confissões IV, II

Por essa mesma época tive em minha companhia uma mulher, não reconhecida pelo chamado matrimônio legítimo, mas procurada pelo inquieto ardor de minha paixão imprudente; mas era só uma, e EU lhe era fiel. E assim experimentei pessoalmente a distância que há entre o amor conjugal contraído com o fim de ter filhos, e o amor lascivo, no qual a prole também nasce, mas contra o desejo dos pais, embora, uma vez nascida, os obrigue a amá-la. Confissões IV, II

Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, um arúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para EU sair vencedor. Mas EU, que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria que se matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroa de ouro incorruptível; sabia EU que ele teria de matar animais em seus sacrifícios, julgando com tais honras assegurar para mim os votos do demônio. Confissões IV, II

Mas, confesso, Deus de meu coração, que se repudiei tal crime, não o fiz por amor da tua pureza. Pois ainda não sabia te amar, EU, que sabia conceder apenas esplendores corpóreos. Confissões IV, II

Não é pois verdade que a alma que suspira por semelhantes fábulas não se aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, EU mesmo me sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos erros, objeto de seu riso e escárnio? Confissões IV, II

Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e frequente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que EU me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele — que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”. Confissões IV, III

E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e delineaste em minha memória o que EU mesmo mais tarde devia procurar. Mas então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la, porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha EU encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse sem ambiguidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou casualidade, e não da arte de observar os astros. Confissões IV, III

Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti por estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando EU apenas havia gozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras da minha vida. Confissões IV, IV

Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo de teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de que seu espírito reteria melhor aquilo que EU lhe havia inculcado do que o sinal que recebera sobre o corpo inconsciente. Confissões IV, IV

A realidade, contudo, foi muito outra. Melhorando, e estando fora de perigo, logo que lhe pude falar — e o fiz logo que ele o pôde, e como dependíamos mutuamente um do outro EU não me afastava do seu lado — tentei rir-me em sua presença do batismo, julgando que também ele zombaria comigo de um batismo recebido sem conhecimento nem sentidos, mas ele já sabia que o havia recebido. Olhando-me então com horror, como a um inimigo, admoestou-me com admirável e repentina franqueza, dizendo-me que se queria continuar a ser seu amigo deixasse de tais palavras. Admirado e perturbado, reprimi toda minha emoção, esperando que convalescesse primeiro, para, recobradas as forças, estar disposto a discutir comigo o que quisesse. Mas tu, Senhor, livraste-o de minha louca amizade, guardando-o em ti para o meu consolo, pois, poucos dias depois, na minha ausência, voltaram-lhe as febres e morreu. Confissões IV, IV

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-me mesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se EU lhe dizia: “Espera em Deus” — minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração. Confissões IV, IV

EU não esperava ressuscitar meu amigo com minhas lágrimas, mas limitava-me a me condoer e a chorar minha miséria, pois EU havia perdido minha alegria. Confissões IV, V

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? EU era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como EU era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, EU amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades — se não é ficção — que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro. Confissões IV, VI

Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam. Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, EU continuasse a viver, porque EU era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou ao amigo “metade da sua alma”. E EU senti que minha alma e a sua não eram mais que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não morresse de todo aquele a quem EU tanto amara. Confissões IV, VI

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era EU então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e EU não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII

A ti, Senhor, deveria ser elevada, para ter cura. EU o sabia, mas não o queria nem podia. Confissões IV, VII

Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava como quem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. EU era para mim mesmo uma infeliz morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração, fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo? Confissões IV, VII

Então EU ignorava tais coisas — e por isso amava belezas terrenas. Caminhava para o abismo, dizendo a meus amigos: “Será que amamos algo que não é belo? E que é o belo? E que é a beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas que amamos? Pois, com certeza, se nelas não houvesse certa graça e formosura, não nos atrairiam. Confissões IV, XIII

E EU observava e via que num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso e belo, e outra o que lhe era conveniente, sal aptidão de se ajustar de maneira perfeita a alguma coisa como, por exemplo, a parte do corpo em relação ao conjunto, o calçado em relação ao pé, e outras similares. Esta consideração brotou em minha alma do íntimo de meu coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e o conveniente, creio que dois ou três — tu o sabes, Senhor — pois já me esqueci, e não os tenho mais porque se me extraviaram não sei como. Confissões IV, XIII

Assim pois amava EU então aos homens, pelo juízo dos homens, e não pelo teu, meu Deus, em quem ninguém se engana. Contudo, por que não o louvava como se louva a uma auriga famoso ou a um caçador afamado pelas aclamações do povo, mas de modo mais distinto e mais ponderado, tal como EU gostaria de ser louvado? Confissões IV, XIV

Certamente, EU não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora EU também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora também EU seja homem? Confissões IV, XIV

Mas aquele orador era do número dos que EU amava a ponto de desejar ser como ele; mas EU andava errante por meu orgulho e era arrastado por toda espécie de vento, embora em segredo fosse governado por ti. E como sei, e como te confesso com tanta certeza que o amava mais por amor dos que o louvavam do que pelos méritos que lhe valiam esses louvores? Confissões IV, XIV

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos olhos, mas logo EU afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver minha alma. Confissões IV, XV

Mas, como EU amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via EU não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável. Confissões IV, XV

EU me esforçava para me aproximar de ti, mas tu me repelias para que experimentasse a morte, pois resistes aos soberbos. E que maior soberba haveria que afirmar, com inaudita loucura, que EU era da mesma natureza que tu? Porque, sendo EU mutável, e reconhecendo-me tal — pois, se queria ser sábio, era para fazer-me de menos para mais perfeito — preferia, contudo, julgar mutável a ti do que não ser o que tu és. Eis aqui por que era repelido, e por que resistias à minha soberba cheia de vento. Confissões IV, XV

EU não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais EU, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes EU, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro. Confissões IV, XV

Teria EU vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Buscava EU aplicá-los — ó doce verdade — à tua melodia interior, quando meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba, caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados. Confissões IV, XV

E que lucro me trazia, tendo EU vinte anos de idade, mais ou menos, e chegando-me às mãos a obra de Aristóteles, intitulada As Dez Categorias — que meu mestre, o retórico de Cartago, e outros, considerados doutos, citavam com grande ênfase e ponderação, fazendo-me suspirar por ela como por algo grandioso e divino — de que me servia ler essa obra e compreendê-la sozinho? Falando com outros, que afirmavam ter conseguido entendê-la só por meio de mestres eruditíssimos, que lha haviam explicado não apenas com palavras, mas também com figuras pintadas na areia, nada me souberam dizer que EU já não tivesse entendido em minha leitura particular. Confissões IV, XVI

Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que EU só conseguisse meu pão à custa de trabalho. Confissões IV, XVI

De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos os livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se EU era então escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; EU estava de costas para a luz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam iluminados, não recebiam luz. Confissões IV, XVI

Mas qual o fruto disso, se EU te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um corpo luminoso e infinito, e EU como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! Assim era EU; não me envergonho agora, meu Deus, de confessar tuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei então de proferir ante os homens tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que me aproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para explicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse explicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da ? Confissões IV, XVI

E onde estava EU quando te buscava? Certamente, estavas diante de mim, mas EU me havia afastado de mim mesmo, e não me encontrava, e muito menos de ti! Confissões V, II

Falarei, na presença de meu deus, do ano vigésimo nono de minha vida. Já havia chegado a Cartago um dos bispos maniqueus, chamado Fausto, grande laço do demônio, no qual caíam muitos pelo encanto sedutor de sua eloquência. Apesar de ser exaltada por mim, EU a sabia contudo discernir das verdades que desejava conhecer. Não era o prato do estilo que EU considerava, mas o alimento doutrinal que nele me era servido por aquele famoso Fausto, tao reputado entre os seus. Confissões V, III

Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como EU tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III

EU porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cuja explicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visível dos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobre essas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicação para os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas, enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana. Confissões V, III

Contudo, EU ainda não estava certo se o que havia lido em outros livros, sobre as mudanças dos dias e das noites, uns mais longos, outros mais curtos, e sobre o suceder-se dos dias e das noites, e dos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos semelhantes, poderiam ser explicados conforme sua doutrina. Caso isso fosse possível, EU ainda ficaria em dúvida quanto ao modo por que se realizariam esses fenômenos; EU anteporia a autoridade de Manés à minha , pois o tinha então em conta de santo. Confissões V, V

Durante os quase nove anos em que meu espírito errante deu ouvidos aos maniqueus, esperei ansiosamente a vinda de Fausto. Os demais adeptos, com os quais me encontrava casualmente, embaraçados com as objeções que EU lhes fazia, remetiam-me a ele que, à sua chegada, com uma simples entrevista resolveria facilmente todas aquelas dificuldades, e ainda outras maiores que me ocorressem, de maneira claríssima. Confissões V, VI

Logo que chegou, pude notar que se tratava de um homem simpático, de fala cativante, e que expunha os temas comuns dos maniqueus, mas com muito mais agrado que eles. Mas, que interessava à minha sede este elegante copeiro de copos preciosos? EU já tinha os ouvidos fartos daquelas teorias, e nem me pareciam melhores por serem expostas em melhor estilo, nem mais verdadeiras pela elegância de suas formas; nem EU considerava Fausto mais sábio por ter o rosto de mais graça e sua linguagem mais finura. Aqueles que mo haviam recomendado não eram bons juizes: tinham Fausto como homem sábio e prudente somente porque lhes agradava sua facúndia. Confissões V, VI

Mas EU, meu Deus, nessa época já tinha aprendido de ti, por caminhos ocultos e admiráveis — e creio que eras tu que me ensinavas, porque era verdade, e ninguém pode ser mestre da verdade senão tu, seja qual for a instância e modo dela brilhar — já havia aprendido de ti que não se deve ter por verdadeiro um pensamento porque expresso eloquentemente nem falso porque é dito com rudeza; e que, pelo contrário, um pensamento não é verdadeiro por ser enunciado com simplicidade, nem falso porque sua expressão é elegante; a sabedoria e a ignorância são como alimentos, proveitosos ou nocivos, e as palavras, elegantes ou rudes, como pratos preciosos ou toscos, nos quais se podem servir a ambos. Confissões V, VI

A ânsia com a qual por tanto tempo esperara por Fausto, deleitava-se enfim com o ardor e a vivacidade de suas disputas, com os termos apropriados e a facilidade com que lhe vinham à boca para adornar seu pensamento. Deleitava-me, certamente, e EU o louvava e exaltava com os outros, e muito mais ainda do que eles. Confissões V, VI

Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgava grande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolver as dificuldades que me preocupavam. É bem verdade que ele podia ignorar tais coisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seus livros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do céu e dos astros, do sol e da lua, que EU já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como EU o desejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que EU lera em outras partes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelo menos, estes apresentavam demonstrações de igual valor. Confissões V, VII

Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, com grande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamente sabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertencia à classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, que pretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos, tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Não ignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-se temerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada. Por isso mesmo cresceu aos meus olhos, por ser a modéstia de uma alma que se conhece muito mais bela que o saber que EU desejava; e em todas as questões mais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo. Confissões V, VII

Esfriado pois meu entusiasmo pelos livros de Manés, e muito mais desconfiado dos outros doutores maniqueus, depois que este, tão renomado, se me havia mostrado tão ignorante em muitas das questões que me inquietavam, continuei a tratar com ele, mas por causa de sua paixão pelas letras, que EU ensinava então aos jovens de Cartago. Lia com ele os livros que desejava conhecer por ter ouvido falar deles, ou os que EU considerava apropriados à sua inteligência. Confissões V, VII

Quanto ao mais, todo o empenho que EU havia posto em progredir na seita desapareceu por completo tão logo conheci este homem, mas não a ponto de me separar definitivamente dela. Confissões V, VII

Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que EU mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a terra; e EU, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade. Confissões V, VIII

Mas o verdadeiro motivo de EU sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que EU não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa. Confissões V, VIII

Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a rezar por mim e voltou para sua vida habitual, enquanto EU me dirigia a Roma. Confissões V, VIII

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde EU não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto se não persuadia. Confissões V, IX

Entretanto, agravando-se as febres, EU estava a ponto de partir e de perecer. Para onde iria EU, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida? Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todas as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigo onde EU estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu batismo. Quando menino EU era melhor, porque então o solicitei à piedade de minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, EU havia crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me deixou morrer duplamente em tal estado. Confissões V, IX

Restabeleceste-me, pois, daquela doença, e então salvaste o filho de tua serva quanto ao corpo a fim de poder, salvá-lo melhor e mais firmemente. Em Roma juntei-me ainda com os que se diziam “santos”, falsos e enganadores. E não só convivia com os ouvintes, entre os quais se contava o dono da casa em que EU adoecera e convalescera — mas também com os que se chamam “eleitos”. Confissões V, X

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era EU. Na verdade, EU era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual EU ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X

Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade — em Roma havia muitos deles ocultos — tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava EU principalmente de poder achar a verdade em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea — pois não me parecia que pudesse existir algo diferente — esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável. Confissões V, X

Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa — a que chamavam terra — ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, EU imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilento originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à católica, era rechaçado porque minha ideia de católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano. Confissões V, X

Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal — o qual aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância corpórea, por EU não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundido pelos espaços — do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava, procedesse de ti. Confissões V, X

Sem dúvida agora teus fiéis irão sorrir, branda e amorosamente, se lerem estas minhas confissões; mas EU, realmente, era assim. Confissões V, X

Além de tudo, EU já não estava convencido que se pudessem defender os pontos que os maniqueus criticavam em tuas Escrituras. Todavia, desejava por vezes discutir com sinceridade cada um desses pontos com algum varão, grande conhecedor de seus livros, para lhe indagar a opinião. Quando ainda em Cartago, já me despertara o interesse o discurso de um tal Elpídio, que falava e discutia publicamente contra os maniqueus, alegando citações da Sagrada Escritura que não me era fácil refutar. Confissões V, XI

Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavam outras artimanhas, que EU não havia experimentado na África. Se bem era verdade, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmas violências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui os estudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passando para outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aos compromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro. Confissões V, XII

Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo para lá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, EU mesmo solicitei esse emprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dos maniqueus, dos quais ia-me separar. Confissões V, XIII

Tanto eles como EU, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade, propôs-me o tema de um discurso, e sendo EU aprovado, mandou-me para Milão. Confissões V, XIII

Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na terra por suas qualidades, piedoso servo teu, cuja eloquência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era EU conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente. Confissões V, XIII

Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade, que EU desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito adequado, mas como se quisesse sondar sua eloquência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que EU até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como EU era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela. Confissões V, XIII

Não cuidava EU de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia — era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloquência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade. Confissões V, XIV

Parece-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que as afirmações de católica — que EU julgava impotente contra os ataques dos maniqueus — não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de me serem explicados uma, duas ou mais vezes, as passagens obscuras do Velho Testamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim, interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei a repreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas. Confissões V, XIV

Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo, com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que se EU então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma. Mas não podia. Confissões V, XIV

Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado acerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em uma seita à qual EU já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo, terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo. Confissões V, XIV

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais, fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas EU caminhava por trevas e resvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meu coração; caí nas profundezas do mar. EU perdera a confiança e desesperava de encontrar a verdade. Confissões VI, I

Encontrou-me em grave perigo, já sem esperança de buscar a verdade. Contudo, quando lhe disse que já não era maniqueísta, sem ser ainda católico, não pulou de alegria, como quem ouve algo inesperado, pois já estava segura sobre aquele ponto de minha miséria, que a fazia chorar por mim como por um morto que haveria de ressuscitar. Oferecia-me continuamente a ti em pensamento, como sobre um esquife, para que dissesses ao filho da viúva: Jovem, EU te digo: levanta-te, e seu filho revivesse, e voltasse a falar, e o entregasses à sua mãe. Confissões VI, I

Foi o que me disse. Mas diante de ti, ó fonte das misericórdias, redobrava as súplicas e lágrimas, para que apressasses teu auxílio e aclarasses minhas trevas. Ia com maior solicitude à igreja para ficar suspensa dos lábios de Ambrosio, como da fonte de água viva que jorra para a vida eterna. Minha mãe amava este varão como a um anjo de Deus, pois sabia que fora ele quem me fizera mergulhar naquela dúvida, pela qual antevia, segura, que EU haveria de passar da enfermidade pela saúde, depois de um perigo mais grave, que os médicos chamam de crítico. Confissões VI, I

Assim, um dia, como costumava na África, levou papas, pão e vinho puro à sepultura dos mártires, mas o porteiro não quis permitir suas ofertas. Quando soube que essa proibição vinha do bispo, resignou-se tão piedosamente e obedientemente, que EU mesmo me admirei de quão facilmente passasse a condenar o hábito, e não a criticar a proibição de Ambrósio. Confissões VI, II

Na oração, EU ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas EU não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III

Muitas vezes, estando EU presente — pois ninguém estava proibido de entrar, nem era costume anunciar quem se apresentava — vi-o ler em silêncio, e nunca de outra maneira. E ali ficava EU por muito tempo calado — pois, quem se atreveria molestar um homem tão atento? — e por fim me afastava. Conjeturava EU que nos curtos momentos que encontrava para repousar o espírito, livre do tumulto dos negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa. Lia em silêncio (era comum naqueles tempos ler em voz alta, tanto pela dificuldade dos textos como pela escassez dos livros, muitas vezes lidos em comum), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia. Confissões VI, III

Logo verifiquei que vossos filhos espirituais, a quem regeneraste no sei da santo mãe, a Igreja, não interpretavam aquelas palavras: “Fizeste o homem à sua imagem” — de modo a acreditar que estavas encerrado na forma do corpo humano. E embora EU então não soubesse, nem sequer suspeitasse de longe o que fosse substância espiritual — alegrei-me com isso, envergonhando-me por ter ladrado durante tantos anos, não contra a católica, mas contra invenções de minha inteligência carnal. Tinha sido ímpio e temerário por criticar uma doutrina que EU deveria ter antes procurado conhecer. Mas tu — que estás ao mesmo tempo tão alto e tão perto de nós, tão escondido e tão presente, tu que não tens membros maiores nem menores, que estás inteiro em toda parte sem estar todo em nenhum lugar, certamente não tens nossa forma corpórea. Contudo, fizeste o homem à tua imagem, e eis que ele, da cabeça aos pés, é limitado pelo espaço. Confissões VI, III

Não compreendendo como poderia se espelhar esta tua imagem ao homem, EU deveria bater à porta, perguntando-te de que modo deveria entender essa crença, em lugar de me opor insolentemente, como se ela fosse o que EU imaginava. E assim, tanto mais fortemente me roia o coração o desejo de ter alguma certeza, quanto mais me envergonhava de ter sido o joguete dos que me haviam prometido a certeza, e por ter defendido com pueril empenho e animosidade tantas coisas duvidosas como sendo verdadeiras. Confissões VI, IV

Depois vi a razão por que eram falsas. Mas já estava então certo de que elas eram duvidosas, embora as tivesse julgado irrefutáveis por algum tempo, quando, com minhas cegas discussões, combatia tua Igreja Católica. Embora então não a reconhecesse como mestra da verdade, pelo menos sabia que não ensinava aquilo de que EU a acusava. Confissões VI, IV

Também me alegrava de que as Antigas Escrituras da lei e os profetas já não me fossem propostas na interpretação anterior, em que me pareciam absurdas, quando EU acusava teus santos de pensamentos que nunca haviam tido. Alegrava-me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendando com muito zelo a verdade: a letra mata e o espírito vivifica. E, levantando o véu místico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra, pareciam ensinar um erro. Nada dizia que me chocasse, embora EU ainda ignorasse se ele dizia a verdade. Confissões VI, IV

Abstinha-se meu coração de aderir a qualquer doutrina, temendo cair em um precipício; mas esta suspensão matava-me muito mais, porque queria estar tão certo das coisas que não via como o estava de que sete e três são dez. EU não estava tão louco para pensar que a inteligência alcançaria tal evidência. Mas, assim como entendia isso, queria entender igualmente as outras verdades, quer fossem materiais, que não tinha presentes a meus sentidos, quer espirituais, nas quais não sabia pensar senão de modo material. Confissões VI, IV

Depois, com suavidade e misericórdia, começaste, Senhor, a cuidar e à preparar aos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que EU acreditava sem o ter visto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos, tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitava acreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não as acreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que inabalável EU tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber sem prestar no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura não são os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quase todos os povos, mas o que não creem neles. E EU não devia dar ouvidos ao que talvez me dissessem: “Como sabes que esses livros foram dados aos homens pelo Espírito de Deus, único e verdadeiro?” Ora, era precisamente isto o que EU devia crer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que EU havia lido nos escritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza de tua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo das coisas humanas está em tuas mãos. Confissões VI, V

EU acreditava nisso, ora mais fortemente, ora mais frouxamente; mas em tua existência e que cuidava do gênero humano, sempre acreditei, embora ignorasse a natureza, ou qual o caminho que nos conduz ou reconduz a ti. Por isso, persuadido de nossa impotência para achar a verdade só por meio da razão, e que para isso nos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nunca terias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o mundo, se não quiséssemos que crêssemos e te buscássemos por elas. Confissões VI, V

Sobre os mistérios em que costumava tropeçar, e que ouvira explicar muitas vezes de modo aceitável, EU os atribuía à sua profundidade, parecendo-me a autoridade das Escrituras tanto mais venerável e digna da sacrossanta, quando de leitura fácil para todos. E ela reserva porém, a uma percepção mais aguda a majestade de seu mistério. Pela clareza da linguagem e sua simplicidade do estilo, ela se abre a todos e, no entanto, estimula a reflexão dos que não são levianos de coração. Recebe a todos em seu vasto seio, mas não deixa ir a ti, por caminhos estreitos, senão um pequeno número; muito mais, porém, do que seriam se ela não tivesse essa elevada autoridade, e não atraísse as turbas do regaço de sua santa humildade. Confissões VI, V

Pensava EU nessas coisas, e me assistias; suspirava, e me ouvias, vacilava, e me governavas; seguia pela via larga do mundo, e não me abandonavas. Confissões VI, V

EU aspirava às honras, às riquezas e ao matrimonio, e tu te rias de mim. E nesses desejos sofria grandes amarguras; e tu me eras tanto mais propício quanto menos consentias que me fosse doçura o que não eras tu. Vê, Senhor, meu coração, tu que quiseste que recordasse estes fatos e os confessasse. Esta alma, a quem livraste do visco tenaz da morte, une-se agora a ti. Confissões VI, VI

Que miserável era EU então! E como agiste para que EU sentisse minha desgraça? Era o dia em que me preparava para declamar os louvores do imperador; neles ia mentir muito e, mentindo granjearia a aprovação dos que sabiam das mentiras. Preocupado, meu coração se consumia com a febre de pensamentos impuros quando, ao passar por uma rua de Milão, vi um mendigo já bêbado, creio EU, mas bem humorado e divertido. Suspirei então, e falei aos amigos que me acompanhavam sobre as muitas dores que nos provocavam nossas loucuras. Com todos os esforços, quais eram os que então me afligiam, apenas arrastava a carga de minha infelicidade cada vez mais pesada, aguilhoado por meus apetites, para conseguir somente uma alegria tranquila, na qual já nos havia precedido aquele mendigo; alegria que nunca talvez alcançássemos. O que ele havia conseguido com umas poucas moedas de esmola, era exatamente o que EU aspirava com tão árduos caminhos e rodeios: a alegria de uma felicidade temporal. Confissões VI, VI

A alegria do mendigo não era certamente verdadeira, mas a que EU buscava com minhas ambições era ainda mais falsa. Ele, pelo menos, estava alegre, e EU, angustiado; ele seguro, e EU inquieto. Se alguém me perguntasse se preferia estar alegre ou triste EU responderia: alegre; mas se me perguntassem novamente se queria ser como aquele mendigo ou ser como EU era, sem dúvida escolheria a mim mesmo, embora cheio de cuidados e de temores. Mas isto EU faria por maldade ou com razão? EU não devia preferir-me ao mendigo por ser mais culto, pois a ciência para mim não era fonte de felicidade, mas apenas um meio de agradar aos homens, e não instruí-los. Confissões VI, VI

Longe de minha alma os que dizem: “Importa levar em conta a causa da alegria; o mendigo se alegrava com a embriaguez, e tu com a glória”. Que glória, Senhor? Com a que não está em ti. Porque como aquela não era verdadeira alegria, assim aquela glória não era a verdadeira, antes perturbava mais ainda meu coração. O ébrio, naquela mesma noite, curaria sua embriaguez, enquanto EU já dormia com a minha, e me levantara com ela, e tornaria a dormir e a levantar com ela, e tu sabes quantos dias! Importa, é certo, conhecer os motivos da alegria de cada um, EU o sei, e a alegria da esperança fiel dista infinitamente daquela vaidade. Mas então, havia entre nós outra diferença, pois certamente ele era o mais feliz, não só porque transbordava de alegria, enquanto EU me consumia de cuidados, mas também porque ele comprara o vinho desejando a felicidade dos benfeitores, enquanto EU procurava com mentiras uma vã ostentação. Confissões VI, VI

Muitas coisas disse então sobre isso a meus amigos, e muitas vezes EU costumava examinar minha vida, e achava-me infeliz. Isso me afligia e redobrava minha dor; se me sorria alguma ventura, não acudia para apanhá-la, porque escapava-me das mãos antes mesmo que a pudesse alcançar. Confissões VI, VI

Os que convivíamos em boa amizade lamentávamos estas coisas, mas de modo especial e muito intimamente EU falava com Alípio e Nebrídio. Alípio, como EU, era do município de Tagaste, nascido de uma das melhores famílias da cidade. Era mais jovem do que EU, pois havia sido meu discípulo quando comecei a ensinar em nossa cidade, de depois em Cartago. Ele me queria muito, por EU lhe parecer bom e douto, e EU o apreciava por sua grande inclinação à virtude, que já se manifestava em tenra idade. Confissões VI, VII

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse abismo na época em que EU ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu pai. EU sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava. Confissões VI, VII

EU já me esquecera de alertá-lo para não desperdiçar seu talento tão precioso com aquele cego e apaixonado gosto por jogos fúteis. Mas tu, Senhor, que governas o que criaste, não te esqueceste de que Alípio deveria ser ministro de teus sacramentos entre teus filhos; e para que fosse atribuída claramente a ti a sua emenda, a realizaste por meu intermédio, mas sem que EU o soubesse. Confissões VI, VII

Um dia, estando sentado ao lugar de costume, diante de meus discípulos, veio Alípio, saudou-me, sentou-se, atento ao assunto de que EU tratava. Por acaso trazia EU nas mãos uma lição; para melhor expô-la, e tornar mais clara e agradável sua explicação, pareceu-me oportuno fazer uma comparação com os jogos circenses, com mordaz sarcasmo aos escravos dessa loucura. Mas tu sabes, Senhor, que então não pensei em curar Alípio dessa peste. Todavia tomou para si minhas palavras, acreditando que EU só dissera por sua causa. Qualquer outro tomaria isso com desgosto; mas ele, jovem virtuoso, tomou-o como causa para censurar a si próprio, e para me estimar ainda mais. Confissões VI, VII

Já havias dito outrora, e escrito em teus livros: “Corrige o sábio, e ele te amará”. EU não o repreenderia, mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quer não, de acordo com a justa ordem que conheces, fizeste de meu coração e de minha língua carvões abrasadores, para cauterizar e curar aquela alma tão promissora, mas pervertida. Confissões VI, VII

Senhor, cale teus louvores quem não percebe tuas misericórdias, que EU te confesso do mais íntimo de meu ser. Depois de ouvidas minhas palavras, Alípio saiu daquele fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com o torpe prazer, e sacudiu sua alma com corajosa temperança, afastando de si todas as imundícies dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou. Confissões VI, VII

Assim como EU, ele suspirava, partilhando minha perplexidade, mostrando-se investigador ardoroso da vida feliz e indagador acérrimo das questões mais difíceis. Confissões VI, X

“Repartamos o tempo, reservemos algumas horas para a salvação da alma nasceu uma grande esperança: a católica não ensina o que EU pensava, e EU a criticava levianamente. Seus doutores têm como crime limitar Deus à figura humana; e EU ainda hesito em bater para que nos sejam reveladas as outras verdades! As horas da manhã EU dedico aos alunos; mas que faço das outras? Por que não as consagro a essa busca?” Confissões VI, XI

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um lado para outro, o tempo passava, e EU retardava minha conversão ao Senhor. Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim mesmo. Amando a vida feliz, temia buscá-la em sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda no remédio de tua misericórdia, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência fosse obra de nossa própria força, que EU pensava não ter. EU era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força. Essa força certamente ma darias se EU ferisse teus ouvidos com os gemidos de minha alma, e com firme lançasse em ti meus cuidados. Confissões VI, XI

EU argumentava com os exemplos dos que, embora casados, haviam-se dedicado ao estudo da sabedoria, servindo a Deus, e guardando fidelidade e amor aos amigos. Contudo, EU estava longe dessa grandeza de alma. Prisioneiro da morbidade da carne, arrastava com prazer mortal minha cadeia, temendo que ela se rompesse e, rejeitando as palavras que bem me aconselhavam, como o ferido repele a mão que lhe desfaz as ataduras. Confissões VI, XII

Ele admirava-se de que EU, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao visco do prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me era impossível levar vida casta. Para esgrimir contra sua admiração, dizia-lhe que havia grande diferença entre sua rápida e furtiva experiência do prazer, de que mal se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de uma ligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimonio, já não causaria admiração se EU não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípio também começou a desejar o matrimonio, não certamente vencido pelo apetite do prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem sem o qual minha vida — que ele tanto apreciava — não me parecia vida, mas tormento. De fato, livre dessa prisão, sua alma pasmava de tal servidão, e do espanto passava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesma servidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama o perigo, nele cairá. Confissões VI, XII

Certamente que nem ele, nem EU tínhamos grande interesse no que há de bonito e honesto no matrimonio, como a direção da família e a educação dos filhos. Mas o que me mantinha preso e com fortes tormentos era o hábito de saciar minha insaciável concupiscência; e a ele, era a admiração que o arrastava para o mesmo cativeiro. Assim éramos, Senhor, até que tu, ó Altíssimo, que não desamparas nosso lodo, compassivo, por caminhos maravilhosos e ocultos, viestes em socorro destes infelizes. Confissões VI, XII

Instavam solicitamente comigo para que me casasse. Já havia feito o pedido, já havia recebido uma promessa, ajudado sobretudo por minha mãe, que nutria a esperança que EU, uma vez casado, seria regenerado nas águas salutares do batismo. Minha mãe alegrava-se por me ver cada dia mais apto para recebê-lo, vendo que na minha se realizavam seus votos e tuas promessas. Confissões VI, XIII

Mas EU, desgraçado, fui incapaz de imitar aquela mulher. Estava impaciente pelo prazo de dois anos que deveria transcorrer até receber por esposa aquela que pedira em casamento — e porque EU não era amante do matrimonio, mas escravo da sensualidade — procurei pois outra mulher, não como esposa, mas para alimentar e manter íntegra ou agravada a doença da minha alma, sob a tutela do meu hábito, até que contraísse matrimonio. Mas nem por isso sarava a chaga causada pela separação da primeira mulher; mas, depois de ardor e sofrimento agudíssimos, começava a se corromper doendo tanto mais desesperadamente quanto mais fria se tornava. Confissões VI, XV

Louvor e glória a ti, ó fonte das misericórdias! EU me tornava cada vez mais miserável, e tu te aproximavas cada vez mais de mim. já estava junto de mim tua destra, para me arrancar do lodo dos meus vícios, e em purificar, e EU não o sabia. Mas nada havia que me fizesse sair do profundo abismo dos prazeres carnais, a não ser o medo da morte e de teu juízo futuro, que jamais saiu do meu peito, através das várias doutrinas que segui. Confissões VI, XVI

Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmente meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se EU não acreditasse na imortalidade da alma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E EU perguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem temor algum de perdê-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?” Ignorava EU que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no vício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aos olhos da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, não indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos, por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a ideia que EU tinha então? EU amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia que eles me amavam com o mesmo desinteresse. Confissões VI, XVI

Ó caminhos tortuosos! Ai da alma temerária que, afastando-se de ti, esperava achar algo melhor! Dá voltas e mais voltas, para todos os lados, mas tudo lhe é duro, porque só tu és seu descanso. Mas eis que estás presente, e nos livras de nossos miseráveis erros, e nos pões em teu caminho, e nos consolas dizendo: “Correi, que EU vos levarei e conduzirei ao termo, e aí serei vosso sustento!” Confissões VI, XVI

E sendo EU homem — e que homem — esforçava-me para imaginar a ti, o sumo, o único e verdadeiro Deus. Com toda minha alma EU te julgava incorruptível, inviolável e imutável. Mesmo não sabendo de onde nem como me vinha esta certeza, EU via com clareza e tinha como certo que o incorruptível é melhor do que o corruptível. Sem hesitar, colocava o que não pode ser vencido acima do que o pode ser, e o que não sofre mudança parecia-me melhor do que é suscetível a mudanças. Confissões VII, I

Mas, apenas disperso, em um piscar de olhos, tornava a se formar os atropelos sobre minha vista, obscurecendo-a. Apesar de não te atribuir uma figura humana, contudo, necessitava te conceber como algo corporal, situado no espaço, quer imanente ao mundo, quer difundido por fora do mundo, através do infinito; tal era o ser incorruptível, inviolável e imutável que EU colocava acima do que é corruptível, sujeito à deterioração e ás mudanças. O que não ocupava espaço me parecia um nada absoluto, perfeito, e não um simples vazio, como quando se tira um corpo de um lugar, permanecendo o lugar vazio de todo o corpo, terrestre, úmido, aéreo ou celeste, mas, enfim, um lugar vazio, como que um nada espaçoso. Confissões VII, I

E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo, alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o céu e todas as coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em parte alguma. E assim como a massa do ar — deste ar que está sobre a terra — não impede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim EU pensava que não somente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da terra se deixava atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e exteriormente tudo o que criaste. Confissões VII, I

Assim conjeturava EU, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minha conjectura era falsa. Porque, se assim fosse, uma porção maior da terra conteria parte maior de ti; e uma porção menor da terra conteria parte menor. E de tal modo estariam as coisas impregnadas de ti, que o corpo de um elefante conteria tanto mais de teu ser que o corpo do passarinho, pois aquele é maior do que este, e ocupa mais espaço. Assim, fragmentado entre as partes do universo, estarias presente nas grandes partes do universo por grandes partes de ti, e nas pequenas por pequenas, o que não acontece. Mas ainda não tinhas iluminado minhas trevas. Confissões VII, I

Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles que EU queria expulsar de vez de meu peito angustiado. De fato, sentindo e dizendo tais coisas de ti, não tinham outra saída senão um horrível sacrilégio de coração e de língua. Confissões VII, II

Mas EU, mesmo quando afirmava e cria firmemente que és incorruptível, inalterável, absolutamente imutável, Senhor meu, Deus verdadeiro que não só criaste nossas almas e nossos corpos, e não somente nossas almas e corpos, mas todas as criaturas e todas as coisas. Todavia, faltava-me ainda uma explicação, a solução do problema da causa do mal. Qualquer que ela fosse, estava certo de que deveria buscá-la onde não me visse obrigado, por sua causa, a julgar mutável a um Deus imutável, porque isso seria transformar-me no mal que procurava. Confissões VII, III

O fato de EU ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de minha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa, estava certíssimo de que era EU, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado. Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do mal do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça. Confissões VII, III

Seria talvez para que EU sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, e semeou minha alma esta semente de amargura, sendo EU totalmente obra de meu dulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este, de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua vontade perversa, de onde lhe veio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo por um Criador boníssimo?” Confissões VII, III

Empenhava-me então por descobrir as outras verdades, como havia descoberto que o incorruptível é melhor que o corruptível, e por isso confessava que tu, qualquer que fosse tua natureza, devias ser incorruptível. Porque ninguém pôde nem poderá jamais conceber algo melhor do que tu, que és o sumo bem por excelência. Por isso, sendo certíssimo e inegável que o incorruptível é superior ao corruptível, o que EU já fazia, meu pensamento já poderia conceber algo melhor do que o meu Deus, se não fosses incorruptível. Confissões VII, IV

EU buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação, tanto o que podemos ver — como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que EU imaginava como corpos. Confissões VII, V

E EU a imaginava não tão imensa quanto ela era realmente — o que seria impossível — mas quanto me agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti, Senhor, como a um ser que a rodeava e penetrava por todas as partes, infinito em todas as direções, como se fosses um mar incomensurável, que tivesse dentro de si uma esponja tão grande quanto possível, limitada, e toda embebida, em todas as suas partes, desse imenso mar. Confissões VII, V

Assim é que EU concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente? Confissões VII, V

Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloquência, veiome consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas constelações, como eles dizem. EU, que já começara a me inclinar à opinião de Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo era ridícula quimera. Confissões VII, VI

Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem EU então desejava refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contado mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da vida de ambos foram muito diversos. Confissões VII, VI

Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo EU buscava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas de meu pensamento me apartassem da . na tua existência, na tua substância imutável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo à vida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica. Confissões VII, VII

Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava EU ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e EU não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha alma. Confissões VII, VII

Tu só sabes o que EU padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e EU olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e EU só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que EU fosse para onde me sentisse satisfeito. EU era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se EU te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

Neles EU li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX

Também EU vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua vontade, teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. E disseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos movemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham os livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais sacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador. Confissões VII, IX

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; EU lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que EU ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e EU estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X

E conheci então que “castigaste o homem por causa de sua iniquidade”, e “que secaste minha alma como uma teia de aranha”, e EU disse: Porventura não existe a verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na verdade, EU sou o que sou. Confissões VII, X

E EU ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente duvidaria de minha vida que da existência da verdade, que se manifesta à inteligência pelas coisas da criação. Confissões VII, X

Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem EU procurava, não é uma substância, porque se o fosse seria um bem. De fato, ou ele seria substância incorruptível, e portanto um grande bem; ou seria uma substância corruptível, que se não se poderia corromper se não fosse boa. Confissões VII, XII

Longe de mim dizer: Oxalá não existissem estas coisas! — Embora, considerando-as separadamente, EU as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveria bastar para EU te louvar porque o proclamam os dragões da terra e todos os abismos; o fogo, o granizo, a neve, o vento da tempestade, que executam tuas ordens; os montes e todas as colinas; as árvores frutíferas e todos os cedros; as feras e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da terra e todos os povos; os príncipes e todos os juízes da terra, os jovens e as virgens, os anciões e as crianças; todos louvam teu nome. Confissões VII, XIII

Mas como também do alto dos céus é louvado, que seja louvado o nosso Deus, lá no alto por todos os teus anjos, todas as potestades, o sol e a lua, todas as estrelas e a luz, os céus dos céus, e a águas que estão sobre os céus glorificam teu nome, EU já não desejava nada melhor, porque, considerando o todo, os elementos superiores me pareciam sem dúvida melhores que os inferiores; mas um julgamento mais sadio me fazia considerar o todo melhor que os elementos superiores tomados à parte. Confissões VII, XIII

Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que EU o percebesse, e fechaste meus olhos para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de mim mesmo, e minha loucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que eras infinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne. Confissões VII, XIV

Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem EU devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo, por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII

Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência por meio de tuas obras. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza se recobrou, e voltei a meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrança amorosa e, por assim dizer, o desejo do perfume do alimento saboroso que EU ainda não podia comer. Confissões VII, XVII

Buscava um meio que me der força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: EU sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que EU não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância. Confissões VII, XVIII

Não tendo humildade, EU não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava o que nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu Verbo, verdade eterna, dominando as criaturas mais sublimes da tua criação, levanta a si as que se lhe sujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humilde morada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que deseja sujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que, confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem, vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnica de carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte. Confissões VII, XVIII

Mas EU então julgava de outro modo. Considerava meu Senhor Jesus Cristo apenas um homem de extraordinária sabedoria, a quem ninguém poderia igualar. Sobretudo seu miraculoso nascimento de uma virgem, que nos ensina a desprezar os bens temporais para adquirir a imortalidade. Parecia-me ter merecido, por decreto da Providência divina, uma soberana autoridade para ensinar os homens. Confissões VII, XIX

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu Verbo, que EU já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, EU reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o corpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real, que EU julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

Alípio porém pensava que os católicos, crendo em um Deus revestido de carne, entendiam quem EU em Cristo, além de Deus e da carne, não havia alma humana; e não julgava que lhe atribuíssem inteligência humana. E como estava bem persuadido de que os atos atribuídos tradicionalmente a Cristo não podiam ser senão obras de um criatura cheia de vida e de inteligência, Alípio se aproximava com certa relutância da cristã. Mas depois, ao saber que este erro era próprios dos hereges apolinaristas, aderiu alegremente à católica. Confissões VII, XIX

Porém, se me tivesse instruído em tuas sagradas letras, e em sua intimidade tivesse experimentado na doçura, para depois conhecer os livros dos platônicos, talvez eles me arrancassem dos sólidos fundamentos da piedade; ou, se EU tivesse persistido nos sentimentos salutares nelas hauridos, talvez julgasse que só por esses livros se poderia chegar ao mesmo proveito espiritual. Confissões VII, XX

Esses pensamentos penetravam-me as entranhas de modo maravilhoso, quando EU lia o menor de teus apóstolos. Considerava tuas obras e enchia-me de assombro. Confissões VII, XXI

Faze, meu Deus, que EU recorde de ti em ação de graças, e proclame tuas misericórdias para comigo. Que meus ossos se penetrem do teu amor, e digam: Senhor quem semelhante a ti? Confissões VIII, I

Quanto à minha vida temporal, estava EU ainda vacilante, e era necessário que meu coração se purificasse do velho fermento. O caminho certo, que é o próprio Salvador, me encantava, mas titubeava ainda em caminhar por seus estreitos desfiladeiros. Confissões VIII, I

Então me inspiraste a ideia — que me pareceu excelente — de me dirigir a Simpliciano, que EU tinha como um de teus bons servidores, em quem brilhava tua graça. Sobre ele ouvira também que desde sua juventude te consagrava devotamente sua vida, e como já encanecia, achei que em tão longa vida, dedicada ao estudo de teus caminhos, teria acumulado grande experiência e instrução; e de fato assim era. Por isso queria confiar-lhe minhas inquietações, para que me apontasse o modo de vida mais idôneo de alguém, com minhas disposições interiores, seguir teu caminho. Confissões VIII, I

Mas EU, ainda muito fraco, escolhia a condição mais fácil; por isso, vivia hesitando em tudo o mais, e me desgastava com preocupações enervantes, pois a vida conjugal, a que me julgava destinado e obrigado, ter-me-ia obrigado a novas incumbências, que EU não queria suportar. Confissões VIII, I

Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si próprios por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o puder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside a ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas EU já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua criação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo um só Deus, por quem criaste todas as coisas. Confissões VIII, I

Há ainda outra espécie de ímpios; os que, conhecendo a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe renderam graças. EU também tinha caído nesse pecado; mas tua destra me amparou e libertou, colocando-me em lugar onde me pudesse curar; e disseste ao homem: Eis que a piedade é a sabedoria. E ainda: Não queiras parecer sábio, porque os que se dizem sábios tornaram-se insensatos. Confissões VIII, I

Mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depois acrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos ensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de palradores a abandonar teu Verbo, que torna eloquentes as línguas dos meninos. Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se consagrar por ti. Por isso EU suspirava, acorrentado não com os ferros de uma vontade estranha, mas por minha férrea vontade. Confissões VIII, V

Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito contra a carne. EU vivia ao mesmo tempo a ambos, embora mais o que aprovava em mim do que o que em mim desaprovava. Com efeito, nesta última parte de mim EU era passivo e constrangido, mais do que ativo e livre. Confissões VIII, V

E,contudo, o hábito que se impunha contra mim vinha de mim mesmo, pois fora voluntariamente que EU chegara onde não queria. E quem poderia protestar legitimamente, se um castigo justo segue o pecador? Confissões VIII, V

EU já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não desprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade, uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia temer estar por eles atado. Confissões VIII, V

Assim, sentia-me docemente oprimido pelo peso do mundo, como em um sonho, e os pensamentos com que meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos que desejam despertar, mas, vencidos pela sonolência, voltam dormir. Não há ninguém que queira dormir sempre, e segundo dita o bom senso, é melhor estar desperto que dormir. Contudo, às vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna os membros pesados, e, mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois de chegada a hora de despertar. Assim EU estava certo que era melhor entregar-me a teu amor que ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; o segundo me encantava, me prendia. Confissões VIII, V

Já não tinha o que responder quando me dizias: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te há de iluminar”. E quando por todos os meios me mostrava a verdade do que dizias, e de que EU estava convencido, não tinha absolutamente nada para responder, senão umas palavras preguiçosas e sonolentas: Um momento… Depois… Um pouquinho mais… Confissões VIII, V

Comigo estava Alípio, desonerado do cargo de jurisconsulto, depois de ter sido assessor pela terceira vez. Ele aguardava a quem vender de novo seus conselhos, como EU vendia arte da eloquência, se é que pelo ensino a podemos transmitir. Confissões VIII, VI

Certo dia em que Nebrídio estava ausente, não sei por que motivo, Alípio e EU recebemos a visita de um tal Ponticiano, nosso compatriota da África, que servia em alto cargo do palácio. Confissões VIII, VI

Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente, tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o companheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se EU quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da nova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o que só tu sabias, e seu espírito se despia do mundo, como logo se evidenciou. Confissões VIII, VI

EU me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de mim mesmo. Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração, e de novo me punhas diante de mim, e me empurravas diante de meus olhos, para que EU descobrisse minha iniquidade e a odiasse. EU bem a conhecia, mas a dissimulava, fingia não ver, esquecia. Confissões VIII, VII

Mas EU, jovem miserável, sim, miserável desde o despertar da juventude, já te havia pedido a castidade, dizendo: “Dá-me castidade e continência, mas não agora” — pois temia que me atendesse muito depressa, e que me curasses logo da doença de minha concupiscência, que EU mais queria saciar do que extinguir. E caminhei pelas sendas ruins de uma superstição sacrílega, não porque estivesse certo dela, mas porque a preferia às demais doutrinas, que EU não estudava piedosamente, mas que hostilmente combatia. Confissões VIII, VII

Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquanto Ponticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a que viera, Ponticiano voltou para sua casa, e EU para dentro de mim. Que coisas não disse contra mim? Com que açoite de palavras não flagelei minha alma, para obrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se, sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nada lhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhida à corrente do vício, onde se corrompia mortalmente. Confissões VIII, VII

Então, em meio àquela luta interior que EU travava violentamente contra mim mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me para Alípio exclamando: “Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?” Confissões VIII, VIII

Foi mais ou menos o que EU lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio me olhava atônito em silêncio. EU não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de espírito. Confissões VIII, VIII

Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da casa, que nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meu coração, onde ninguém pudesse interferir no ardente combate que EU travava comigo mesmo, até que se resolvesse o assunto conforme tu sabias e EU ignorava. Mas EU delirava para reencontrar a razão, e morria para reviver; conhecia meu mal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir. Confissões VIII, VIII

Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar de sua presença, EU não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele estado? Sentamo-nos o mais longe possível da casa. EU tremia pela violenta indignação, me enraivecia por não poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus, aliança pela qual clamavam todos os meus ossos, que te elevavam louvores até o céu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros, nem mesmo de dar aqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos. Confissões VIII, VIII

Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os homens que querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atados em cadeias, debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Se puxei os cabelos, se feri a fronte, se apertei os joelhos entre os dedos entrelaçados, EU o fiz porque quis. Poderia porém querer fazê-lo e não o fazer, se a flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto, fiz muitas coisas, nas quais o querer não era o mesmo que o poder. Confissões VIII, VIII

Contudo, EU não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que EU poderia fazer desde que o quisesse, porque se o tivesse efetivamente querido, bastava que o quisesse sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seria agir. Confissões VIII, VIII

Quando EU deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me tinha proposto, EU era o que EU queria, e lera o que EU não queria. Mas, nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma alma estranha, mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era EU quem mo infligia, mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente, por ser EU filho de Adão. Confissões VIII, X

De minha parte EU digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a que arrasta ao teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles. Confissões VIII, X

O mesmo acontece com as vontades boas. Se EU lhes pergunto se é bom deleitar-se com a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o comentar do Evangelho, eles responderão a cada questão: “É bom” — Ora, se as três atividades têm a mesma atração simultaneamente, não teríamos vontades opostas a dividir o coração do homem, enquanto escolhe qual delas abraçar de preferência? Confissões VIII, X

Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que EU não afrouxasse de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me prender mais firmemente. Confissões VIII, XI

E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. EU já não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a alcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e a segurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que o bem, cujo hábito EU não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me transformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudo me fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso. Confissões VIII, XI

E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo! Por tua misericórdia, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies me sugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes que EU lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado por cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás. Confissões VIII, XI

Contudo, faziam com que EU, vacilante, tardasse em me separar delas para correr para onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: “Julgas que poderás viver sem elas?” Confissões VIII, XI

Alípio, atônito, continuou no lugar em que estávamos sentados; mas EU, não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira, e dei vazão às lágrimas; e dois rios brotaram de meus olhos, sacrifício agradável a teu coração. E embora não com estes termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te de minhas iniquidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: “Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?” Confissões VIII, XII

Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde EU deixara o livro do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne”. Confissões VIII, XII

Então, marcando com o dedo, ou não sei com que, fechei o livro, e com o rosto já tranquilo, revelei a Alípio o que se passara. Ele, por sua vez, me revelou o que acontecera com ele, e que EU ignorava. Pediu para ver o que EU tinha lido; mostrei-lhe, ele prosseguiu a leitura. EU ignorava o texto seguinte, que era este: Recebei ao fraco na , palavras que aplicou a si mesmo, e mo revelou. Fortificado por essa advertência, firmou-se nessa resolução e santo propósito, bem de acordo com seus costumes, nos quais já há muito tempo tomara grande vantagem sobre mim. Confissões VIII, XII

Ó Senhor, sou teu servo e filho de tua serva. Rompeste minhas cadeias: EU te sacrificarei uma vítima de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e que todos os meus ossos te digam: Senhor, quem semelhante a ti? Que eles te digam essas palavras e que me respondas e digas à minha alma: EU sou tua salvação. Confissões IX, I

Quem sou EU, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que EU queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I

Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo e misterioso abismo foi ele chamado num instante, para que EU inclinasse a cerviz a teu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção? Confissões IX, I

Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão e propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções, provocando comentários. Diriam que EU me adiantara às férias iminentes por querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem? Confissões IX, II

Por fim, chegou o dia da libertação da profissão de retórico, da qual já me libertara em pensamento. Assim aconteceu. Livraste minha língua da tarefa de que há havias livrado meu coração. EU te bendizia contente, e parti com todos os meus, para a quinta de Verecundo. O que lá realizei nas letras, já a teu serviço, mas ainda com a respiração ofegante, como durante uma pausa da luta, e ainda respirando da soberba da erudição, é atestado pelos livros nos quais anotava meus debates com meus amigos ou comigo mesmo em tua presença (refere-se aos seguintes livros: Contra Acadêmicos, De beata vita, De ordine e dos Solilóquios). Do que tratei com Nebrídio, então ausente, claramente o indicam minhas cartas. Confissões IX, IV

Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de , hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? EU era ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com Alípio, catecúmeno como EU. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela aliava varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro, para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo se cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor. Confissões IX, IV

Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios, investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que estivessem perto de mim, sem que EU o soubesse, e que vissem meu rosto e ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei, tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação. Confissões IX, IV

Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem — sem EU o saber, para que não pensassem que eram por causa deles as palavras que EU entremeava às do salmo, porque realmente nem EU diria tais coisas, nem as diria daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as mesmas, ele não as entenderiam como EU as dizia a mim mesmo, diante de ti, na íntima efusão dos afetos de minha alma. Confissões IX, IV

Também EU tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paracleto, o Espírito da Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e subindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado. Confissões IX, IV

Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Até quando? Clama: Sabei! — E EU sem o saber durante tanto tempo, amando a vaidade e buscando a mentira! Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quem tais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que EU havia tomado pela verdade nada mais eram do que vaidade e mentira. Confissões IX, IV

EU lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu Deus! Já havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimes passados, para não pecar mais; e de uma cólera justa, porque não era uma natureza estranha, da raça das trevas, a que em mim pecava, como dizem os que não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da ira e da revelação de teu justo juízo? Confissões IX, IV

Meus bens já não eram exteriores, e EU já não os buscava à luz deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! — Porque não somos nós a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos trevas. Confissões IX, IV

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que EU havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, EU havia sacrificado e imolado em mim o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que EU sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite. Confissões IX, IV

EU lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem EU fora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seu mel celestial e iluminada por tua luz. E me consumia de dor por causa dos inimigos de tuas Escrituras. Confissões IX, IV

Apenas dobramos os joelhos com suplicante afeto, logo a dor desapareceu. E que dor! E como desapareceu! Enchi-me de espanto, EU o confesso, meu Deus e Senhor. Nunca, desde minha infância, havia experimentado coisa semelhante. Confissões IX, IV

Naqueles dias EU não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava. Confissões IX, VI

Graças te dou, meu Deus! De onde e para onde guiaste minha memória, para que também te confessasse estes acontecimentos que, embora grandes, EU já havia esquecido e omitido? Confissões IX, VII

Todavia, quando assim exalava o odor de teus perfumes, EU ainda não corria atrás de ti. Confissões IX, VII

Eis que redobrava minhas lágrimas ao ouvir teus cânticos. Outrora EU suspirava por ti, e enfim respirava o pouco ar de uma choça de feno (alusão ao profeta Isaias,40,6) Confissões IX, VII

Estando já próximo o dia em que teria de partir desta vida — que tu, Senhor, conhecias, e nós ignorávamos — sucedeu, creio, por disposição de teus ocultos desígnios — que nos encontrássemos sós, EU e ela, apoiados em uma janela que dava para o jardim interior da casa em que morávamos. Era em Óstia, sobre a foz do Tibre, onde, longe da multidão, depois do cansaço de uma longa viagem, recobrávamos forças para a travessia do mar. Confissões IX, X

Não me lembro bem o que respondi a tais palavras. Mas cerca de cinco dias mais tarde, ou pouco mais, caiu de cama, com febre. Durante a doença, teve um dia um desmaio, ficando por pouco tempo sem sentidos e sem reconhecer os presentes. Acudimos de imediato, e logo voltou a si. Vendo-nos a seu lado, a mim e a meu irmão (chamava-se Navígio, e era o mais velho dos irmãos), perguntou-nos, como quem procura algo: “Onde estava EU?” — Depois, vendo-nos atônitos de tristeza, nos disse: “Sepultareis aqui a vossa mãe” — EU me calava, retendo as lágrimas, mas meu irmão disse umas palavras em que desejava vê-la morrer na pátria e não em terras distantes. Ao ouvi-lo, minha mãe repreendeu-o com o olhar, e aflita por ter pensado em tais coisas; depois, olhando para mim, disse: “Vê o que ele diz” — E depois para ambos: “Sepultem este corpo em qualquer lugar, e não se preocupem mais com ele. Peço apenas que se lembrem de mim diante do altar do Senhor, onde quer que estejam”. E tendo-nos exposto seu pensamento com as palavras que pôde, calou-se; sua moléstia agravou-se e suas dores aumentaram. Confissões IX, XI

Mas EU, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teus fiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças. Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de sua sepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele na maior concórdia, assim também queria — visão própria da alma humana incapaz das coisas divinas — ter a felicidade de que os homens recordassem que, depois de sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir o de ambos os cônjuges. Confissões IX, XI

Quando esta vaidade havia deixado de existir em seu coração, pela plenitude de tua bondade, EU não o sabia, mas alegrava-me com admiração ao ouvi-la falar assim. No entanto, naquela conversa à janela quando me disse: “Que faço EU aqui?” — já estava patente que não mais desejava morrer na pátria. Confissões IX, XI

Soube também depois que em Óstia, estando EU ausente, falou certo dia com alguns amigos meus, com maternal confiança, sobre o desprezo desta vida e o benefício da morte. Eles, maravilhados da coragem dessa mulher — dádiva tua — perguntaram-lhe se não temia deixar o corpo tão longe da pátria. “Nada está longe para Deus — disse ela — nem preciso temer que ele ignore, no fim dos tempos, o lugar onde me ressuscitará”. Confissões IX, XI

Era para mim grande consolação o testemunho que dera de mim, quando nesta última enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca uma só palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meu Criador, a solicitude que EU lhe tributava, em comparação com o devotamento servil que por mim suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia a alma ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada. Confissões IX, XII

Mas EU, pertinho de teus ouvidos, onde ninguém me podia escutar, censurava a minha sensibilidade e fraqueza e reprimia a onda de tristeza que me invadia; esta cedia por uns instantes, e novamente me arrastava com seu ímpeto, embora não chegasse a derramar lágrimas ou alterar a face. Somente EU sabia quão oprimido estava meu coração! E como me desgostava profundamente que as vicissitudes humanas tivessem tanto poder sobre mim, que são inelutáveis pela ordem natural e a sorte de nossa condição; minha própria dor causava-me outra dor, e me afligia com dupla tristeza. Confissões IX, XII

Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho (bálneo, em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque o banho aliviava as tristezas da alma. Mas EU o confesso à tua misericórdia — ó Pai dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não expulsou o amargor de sua tristeza. Confissões IX, XII

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que me havia chorado tantos anos para que EU vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, é grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãos de teu Cristo! Confissões IX, XII

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos perigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. EU sei que ela sempre agiu com misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII

Ó Deus, faz que EU te conheça, meu conhecedor, que EU te conheça como de ti sou conhecido. Virtude de minha alma, penetra-a, assemelha-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nem ruga. Confissões X, I

Mas tu amaste a verdade, porque quem a pratica alcança a luz. EU desejo praticá-la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitas testemunhas por meus escritos. Confissões X, I

Poderia apenas esconder-te de mim, e nunca me esconder de ti. Agora que meus gemidos dão testemunho do desagrado que sinto por mim, tu me iluminas e me agradas, e és amado e desejado a ponto de EU me envergonhar de mim renuncio a mim para te escolher, e não quero agradar a ti ou a mim senão por teu amor. Confissões X, II

Que tenho EU que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III

A caridade crê em tudo — pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus laços — por isso também EU, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os homens. A eles não posso provar que falo a verdade; mas creem-me aqueles cujos ouvidos a caridade abre para mim. Confissões X, III

Há muitos porém, quer me conheçam, quer não, que desejam saber quem sou agora, neste momento em que escrevo as Confissões. Já ouviram de mim ou de outros alguma coisa a meu respeito, mas seu ouvido não ouve meu coração, onde EU sou o que sou. Querem, certamente, saber por confissão minha o que sou no íntimo, lá onde não podem penetrar com a vista, com o ouvido, ou com a mente. Estão dispostos a acreditar em mim. Mas poderão igualmente estar certos de me conhecer? A caridade, que os torna bons, lhes diz que EU não minto quando confesso tais coisas de mim. É ela que os faz acreditarem em mim. Confissões X, III

Este poderá ser fruto de minhas confissões, não do que fui, mas do que sou. Farei minha confissão não apenas a ti, com íntima alegria mesclada de temor, e com secreta tristeza mesclada de esperança, mas também para os homens, que compartilham minha alegria e de minha mortalidade, meus concidadãos e peregrinos como EU, quer os que me precederam, como os que me seguem ou me acompanham no caminho da vida. Estes são teus servos, meus irmãos, que tu quiseste fossem filhos teus e meus senhores, e a quem me mandaste servir se quisesse viver contigo e de ti. Confissões X, IV

Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu Verbo o tivesse proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis que EU o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo seria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não te fosse conhecida. Confissões X, IV

Sou como uma criança, mas meu Pai vive sempre, e é meu tutor idôneo; ele é a um tempo o que me gerou e o que me protege. Tu és todo o meu bem, tu, onipotente, que estás comigo mesmo antes de EU estar contigo. Confissões X, IV

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem, a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até o espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E EU, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza, sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para suportar, para que possamos resistir. Confissões X, V

Mas, que amo EU, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “EU não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado EU não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI

Interroguei a imensidão do universo acerca de meu Deus, e ele me respondeu: “Não sou EU, mas foi ele quem me criou”. Confissões X, VI

Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” EU as afasto com a mão do espírito da frente da memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista. Confissões X, VIII

Há imagens que acodem à mente facilmente e em sequência ordenada à medida que são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecem, para se apresentarem novamente quando EU o quiser. É o que sucede quando conto alguma coisa de memória. Confissões X, VIII

Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali EU tenho às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Confissões X, VIII

Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! É um santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É um poder próprio de meu espírito, que pertence à minha natureza; mas EU não sou capaz de compreender inteiramente o que sou. Será o espírito demasiado estreito para se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si? Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém? Confissões X, VIII

Esta ideia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que EU fale dessas coisas sem vê-las com os olhos; contudo, EU não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que EU vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, EU não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de mim. mas quando EU os vi com meus olhos, EU não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. Confissões X, VIII

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, EU jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, EU não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as como verdadeiras; confias a meu espírito como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que EU as aprendesse, mas não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, EU as reconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” — senão porque já estavam em minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez EU nem pudesse concebê-las. Confissões X, X

Ria-se de mim quem não compreender o que disse; EU terei compaixão de seu riso. Confissões X, XII

Tudo isso EU guardo em minha memória, assim como o modo pelo qual o aprendi. Confissões X, XIII

É ainda da memória que tiro a distinção entre as quatro emoções da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que EU teça, dividindo cada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na memória que encontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordar essas emoções, não me perturbo com nenhuma delas. Confissões X, XIV

E antes mesmo que EU as recordasse para discuti-las, elas ali estavam, e por isso puderam ser tiradas da memória mediante a lembrança. Talvez a lembrança tire da memória essas emoções como o ato de ruminar tira do estômago os alimentos. Mas então, por que aquele que rumina sobre tais paixões não sente na boca do pensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? Estará justamente nisto a diferença entre tais fatos? De fato, quem gostaria de falar dessas emoções se, todas as vezes que falássemos do medo ou da tristeza, nos víssemos tristes ou temerosos? Confissões X, XIV

E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia EU reconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade que ela exprime. Se EU a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela mesmo que se apresenta a mim; mas quando me lembro do esquecimento, este e a memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o esquecimento, de que me recordo. Confissões X, XVI

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou EU que me lembro, EU, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou EU. Todavia, que há mais perto de mim do que EU mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual EU nem poderia pronunciar meu próprio nome. Confissões X, XVI

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei EU afirmar que minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que EU as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando EU as evocasse na sua ausência. Confissões X, XVI

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou EU mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII

Lembro-me de ter procurado e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque, estando EU à procura, me diziam: “Por acaso é esta?” “Por acaso é aquela?” — e EU sempre respondia que não, até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado a lembrança do objeto, fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não o encontraria, pois não o poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamos alguma coisa acontece o mesmo. Confissões X, XVIII

Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quando estou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me da felicidade. Ora, esta alegria, EU jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, ou toquei; apenas a experimentei em minha alma quando me alegrei. E esta ideia se fixou em minha memória para que EU pudesse recordá-la, às vezes com desgosto, outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram. Confissões X, XXI

Mas onde e quando, então, experimentei a felicidade para lembrar-me dela, para amá-la e deseja-la? Não sou EU apenas, ou alguns que a desejam; mas todos, sem exceção queremos ser felizes. Sem uma noção precisa da felicidade, nossa vontade não teria essa firmeza. Confissões X, XXI

Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha memória antes de EU te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer, senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade, por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos. Confissões X, XXVI

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e EU lá fora, a te procurar! EU, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e EU não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. EU te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama. Confissões X, XXVII

Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam com minhas santas alegrias, e EU não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor, tem piedade de mim! Eis minhas feridas: EU não as escondo. Tu és o médico, EU o enfermo; és misericordioso, e EU, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação? Confissões X, XXVIII

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que EU não sou EU nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo? Confissões X, XXX

Não é muito para ti, ó Todo-Poderoso, que podes fazer mais do que pedimos e compreendemos, fazer com que, quer minha idade presente, quer na minha vida futura, EU me deleite nessas tentações — mesmo que sejam tão pequenas, que o primeiro esforço as venceria, quando adormeço com pensamentos castos. Confissões X, XXX

Por si mesmo, formado do mesmo que nós, nada podia aquele cujas palavras inspiradas tanto amei: “Tudo posso naquele que me fortalece” — Concede-me forças, para que EU possa. Dá-me o que mandas, e manda o que quiseres. Paulo confessa que tudo recebeu de ti, e, quando se gloria, é no Senhor que ele se gloria. Confissões X, XXXI

Sei que Noé teve permissão de comer toda espécie de carne que pudesse servir de alimento, e que Elias comeu carne para reparar as forças; sei que João Batista, asceta admirável, não se manchou com os animais — os gafanhotos — de que se alimentava. Todavia EU sei que Esaú deixou-se enganar pelo desejo de um prato de lentilhas; que Davi se repreendeu a si mesmo por ter desejado água; que nosso Rei foi submetido à tentação, não de carne, mas de pão. Por isso o povo foi justamente repreendido no deserto, não por ter desejado comer carne, mas porque o desejo o fez murmurar contra o Senhor. Confissões X, XXXI

Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer e do beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com o propósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meu paladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome. EU porém não sou desse número, porque sou pecador. Contudo, também, EU engrandeço teu nome, e Aquele que venceu o mundo intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre os membros enfermos de seu corpo, porque teus olhos viram minhas imperfeições e porque todos serão inscritos em teu livro. Confissões X, XXXI

Agradam-me ainda, EU o confesso, os cânticos que tuas palavras vivificam, quando executados por voz suave e artística; todavia eles não me prendem, e dele posso me desvencilhar quando quero. Para assentarem no meu íntimo, em companhia com os pensamentos que lhe dão vida, buscam em meu coração um lugar de dignidade, mas EU me esforço ou me ofereço para ceder-lhes só o lugar conveniente. Confissões X, XXXIII

Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que EU esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. Confissões X, XXXIV

Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. é assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e EU me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel. Confissões X, XXXIV

Mesmo EU, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia está diante de meus olhos. Miseravelmente EU caio, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem que EU o perceba, quando minha queda foi suave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão. Confissões X, XXXIV

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! EU te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua vontade. Confissões X, XXXV

Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser tua conhecida misericórdia, que começou a me transformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhas fraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade e misericórdia, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelo temor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora EU trago o teu jugo, e o sinto suave, como prometeste e cumpriste. Na verdade, teu jugo já era suave, mas EU não o sabia quando receava tomá-lo sobre mim. Confissões X, XXXVI

Mas é em ti, ó Verdade, que percebo que devo me alegrar com os louvores que me dirigem, não em meu interesse, mas no interesse do próximo. Não sei se é este o meu caso, pois neste assunto me conheces melhor do que EU mesmo. Suplico-te, meu Deus, que me dês a conhecer a mim mesmo, para que EU possa confessar a meus irmãos, dispostos a orar por mim, as chagas que achar em mim. Faze que me examine com mais diligencia. Se for de fato o bem do próximo que me alegra quando me louvam, porque sou menos sensível ao vitupério injustamente feito a outro, do que se fosse a mim? Porque o aguilhão da injúria me faz sofrer mais do que injúria igualmente injusta feita a uma outra pessoa diante de mim? Acaso também ignoro isto? Confissões X, XXXVII

Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e com desagrado de mim mesmo, busco tua misericórdia, até que minha indigência seja reparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras de nossa boca, ou nossos atos conhecidos dos homens, encerram uma tentação muito perigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência, recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a critico em mim, e é por isso mesmo que EU a desaprovo. Muitas vezes, por excesso de vaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato não é mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a despreza quando se gloria de a desprezar. Confissões X, XXXVIII

Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que EU devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era EU o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz permanente que EU consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e EU ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL

Examinei minhas fraquezas de pecador nas três formas de concupiscência, e invoquei tua destra para me salvar. Apesar de ter coração ferido, vi teu esplendor, e forçado a recuar, disse: “Quem pode chegar lá? Fui lançado para longe de teus olhos”. — Tu és a verdade que preside a todas as coisas. E EU, minha avareza, não queria perder-te, mas queria possuir ao mesmo tempo a ti e à mentira, como os que não querem mentir a ponto de perderem a noção de verdade. Assim te perdi, porque não admites, nem nenhum coração, conviver com a mentira. Confissões X, XLI

Poderia EU encontrar alguém que me reconciliasse contigo? Deveria EU recorrer aos anjos? E com que orações, com que ritos? Ouvi dizer que muitos dos que se esforçam para voltar a ti, e que não conseguiam por si mesmos, tentaram este caminho e caíram na curiosidade de visões estranhas, recebendo por isso o justo castigo das ilusões. Confissões X, XLII

Eis, Senhor, que lanço em ti os cuidados da minha vida, e contemplarei as maravilhas da tua lei. Conheces minha ignorância e minha fraqueza: ensina-me, cura-me. Teu Filho único, em que estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, me remiu com sangue. Não me caluniem os soberbos, porque EU conheço bem o preço de minha redenção. Como o corpo e bebo o sangue da vítima redentora, distribuo-a aos outros; pobre, desejo saciar-me dela em companhia daqueles que a comem e são saciados. E louvarão ao Senhor os que o buscam! Confissões X, XLIII

Quando poderei EU descrever, com o poder de minha pena, todas as exortações, todos os terrores, as consolações, as inspirações de que lançaste mão para me levar a pregar tua palavra e dispensar ao povo teu sacramento? Confissões XI, II

Mesmo que EU fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os começos de tuas luzes na minha alma e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe dever. Confissões XI, II

Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhe batem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas de obscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali se abrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minha alegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porque ando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons, nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir em teus livros; que EU ouça a voz de teus louvores. Faz que EU me inebrie de ti, e que EU contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste o céu, a terra, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa. Confissões XI, II

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que EU encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso EU te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

EU te conjuro por aquele que está sentado à tua direita, e que intercede por nós, no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento que procuro em teus livros. Confissões XI, II

Concede-me, Senhor, que EU ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e a terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhe falaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com atenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em vão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma ideia chegaria à minha mente; mas se me falasse em latim, EU compreenderia suas palavras. Confissões XI, III

Mas, como saberia EU se ele dizia a verdade? E, posto que o soubesse, sabê-lo-ia por seu intermédio? Não, mas seria dentro de mim, no íntimo recesso do pensamento que a Verdade, que nem é hebraica, nem grega, nem latina, nem bárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de sílabas, me diria: “Ele fala a verdade”. — e EU, imediatamente, com a certeza da , diria àquele teu servo: “Tu dizes a verdade!”. Confissões XI, III

Concedeste que um tem servo dissesse essas coisas: faze agora com que EU as compreenda. Confissões XI, III

Isto EU o sei, meu Deus, e por isso te dou graças. EU o sei, e EU to confesso, Senhor; e também o sabe todo aquele que não é ingrato à infalível verdade. Sabemos, Senhor, sabemos que não ser mais depois de ter existido, ou passar a ser quando ainda não se existia é o morrer e o nascer. Mas em teu Verbo, por ser verdadeiramente imortal e eterno, nada desaparece nem tem sucessão. Com o teu Verbo que é co-eterno, enuncias eternamente e a um só tempo tudo o que dizes. E o que se realiza é o que dizes que se faça. Não é de outro modo, senão pelo Verbo, que crias. Todavia os seres criados por tua palavra não chegam à existência simultaneamente, desde toda a eternidade. Confissões XI, VII

Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo EU o compreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que tem começo e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nem fim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu Verbo, que é o princípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana, e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos homens, para que cressem nele, e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna Verdade, onde um bom e único mestre instrui todos os seus discípulos. Confissões XI, VIII

Ouça, pois, Tua voz em seu interior, quem puder, e EU quero clamar, cheio de em teu oráculo: “Como são magníficas as tuas obras, Senhor, que tudo criaste em tua Sabedoria! Ela é o princípio e nesse princípio criaste o céu e a terra”. Confissões XI, IX

Mas EU digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e terra se entende toda criatura, não temo afirmar: “Antes que Deus criasse o céu e a terra, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá EU soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi criada antes da criação. Confissões XI, XII

Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, EU sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei. Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que se nada existisse agora, não haveria tempo presente. Como então podem existir esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e se o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir. Confissões XI, XIV

Permite-me, Senhor, que EU leve adiante minhas investigações, tu que és minha esperança; faze que minha tentativa não seja perturbada. Se o futuro e o passado existem, quero saber onde estão. Se ainda não posso compreender, sei todavia que, onde quer que estejam, não existem nem como futuro, nem como passado, mas apenas como presente. Se também ali estiver enquanto futuro, então ainda não existirá; se o passado aí estiver como passado, já não estará lá. Confissões XI, XVIII

Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes. Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossa memória não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras que exprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram em nosso espírito suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais, pertence a um passado que também desapareceu; mas quando EU a evoco e passo a relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minha memória. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Os fatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nosso espírito como imagens já existentes? EU o ignoro. O que sei é que habitualmente premeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence ao presente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, mas presente. Confissões XI, XVIII

Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo a aurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu. Contudo, se EU não tivesse uma imagem mental desse surgimento, como agora quando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a imagem que trago em meu espírito. As duas coisas estão presentes, EU as vejo, e assim posso predizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda não existe, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, mas pode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos. Confissões XI, XVIII

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por mim mesmo EU não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce Luz dos olhos de minha alma! Confissões XI, XIX

Disse há pouco que medimos o tempo que passa; de modo que podemos afirmar que um lapso de tempo é o dobro de outro, ou igual, e apontar entre os intervalos de tempo outras relações, mediante esse processo comparativo. Portanto, como EU dizia, medimos o tempo no momento em que passa. E se me perguntarem: Como o sabes? — EU responderia: Sei porque o medimos, e porque é impossível medir o que não existe; ora, o passado e o futuro não existem. Confissões XI, XXI

Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom Pai, EU to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que EU os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A quem poderia EU consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. EU to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Confissões XI, XXII

E tu, Deus, concede aos homens que percebam, que reconheçam neste modesto exemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros e luminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e os anos. Isso é verdade; todavia, como EU jamais diria que a volta realizada por aquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevo poderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo. Confissões XI, XXIII

O meu desejo é conhecer a natureza e a essência do tempo, com que medimos os movimentos dos corpos, e nos autoriza a dizer, por exemplo, que um movimento dura duas vezes mais que outro. O que chamamos de dia não é apenas o tempo todo o percurso de oriente a oriente, e que nos faz dizer: “Passaram-se tantos dias” — entendendo por isso também as noites, que não são enumeradas separadamente. Portanto, já que o dia se completa pelo movimento do sol e o círculo que ele cumpre a partir do oriente, pergunto EU se o dia é o próprio movimento ou se é o tempo que dura esses movimentos, ou ambas as coisas. Confissões XI, XXIII

Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas EU o vejo, ou apenas tenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó Luz, ó Verdade! Confissões XI, XXIII

Queres que EU aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não, não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas. Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, e nem tu o dizes. Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir a duração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seu movimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpo mover-se até o momento em que já não o vejo. Se o vejo por muito tempo, apenas posso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizer quanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a. Dizemos, por exemplo: “isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela”, semelhantes. Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto de chegada, ou suas partes, se ele se movesse em círculo, poderíamos dizer quanto tempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes. Confissões XI, XXIV

Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor, EU o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando do tempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo. Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez EU ignore a arte de exprimir o que sei. Ai de mim, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderás minha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas trevas. Confissões XI, XXV

Acaso minha alma não foi sincera confessando-te que posso medir o tempo? De fato, meu Deus, EU o meço, e não sei o que meço. Meço o movimento dos corpos com o auxílio do tempo, e não poderei medir o tempo do mesmo modo? E poderia EU medir o movimento de um corpo, sua duração, o tempo que gasta para ir de um lugar a outro, sem medir o tempo em que se move? Confissões XI, XXVI

— Meço o tempo, EU o sei; mas não o futuro, que ainda não existe, nem o presente, porque não tem duração, nem o passado, porque não existe mais. Que meço EU então? Acaso o tempo que passa, e não o tempo passado, como disse acima? Confissões XI, XXVI

Deus creator omnium (Deus, criador de tudo quanto existe): este verso é formado de oito sílabas, alternativamente breves e longas. As quatro breves, a primeira, a terceira, a quinta e a sétima — são simples em relação às quatro longas: a segunda, a quarta, a sexta e a oitava. Cada sílaba longa tem uma duração duas vezes maior que a breve. EU pronuncio e percebo que é assim pelo testemunho claro de meus sentidos. E por esta testemunho que é fidedigno, meço uma longa por uma breve, e noto que ela a contém duas vezes. Confissões XI, XXVII

Mas como uma sílaba só se faz ouvir depois da outra, se a breve vem primeiro, e a longa a seguir, como poderei reter a breve, como aplicá-la à longa, para compará-las e ver que esta contém aquela duas vezes, uma vez que a longa só começa a soar quando a breve deixou de se ouvir? E a própria sílaba longa, não me é possível medi-la enquanto está soando, porque EU só poderia medi-la quando se calasse. Mas ela, ao terminar, passou. Que é pois que EU meço? Onde está a breve, que seria minha medida? Onde está a longa, que meço? Apenas vibraram, foram-se, passaram, e não existem mais. Não obstante, EU as meço e respondo com a segurança que me pode dar um sentido bem educado, que evidentemente uma é de duração simples e a outra dupla. Mas só poderei fazê-lo depois que ambas passaram e terminaram. Confissões XI, XXVII

Logo, EU não meço as sílabas, que não existem mais, mas algo que permanece gravado em minha memória. Confissões XI, XXVII

É em ti, meu espírito, que meço o tempo. Não me objetes nada, pois é assim. Não te perturbes com as ondas desordenadas de tuas emoções. É em ti, digo, que meço o tempo. A impressão que em ti gravam as coisas em sua passagem, perduram ainda depois que os fatos passam. O que EU meço é esta impressão presente, e não as vibrações que a produziram e se foram. É ela que meço quando meço o tempo. Portanto, ou essa impressão é o tempo, ou EU não meço o tempo. Confissões XI, XXVII

Digamos que EU queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minha expectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o que vira passado é armazenada na memória. A atividade de meu espírito se divide em memória, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que vou dizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se torna passado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna a expectativa e tanto maior a memória, até que aquela se esgota e a ação cumprida passa inteiramente para a memória. Confissões XI, XXVIII

Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor, meu Pai, tu és eterno. Mas EU me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro; tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minha alma, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti. Confissões XI, XXIX

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as consequências de meus pecados! Cura meus olhos, para que EU me alegre com tua luz! Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de mim a ideia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Confissões XI, XXXI

Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa matéria, EU direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas mais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feias e horríveis, mas enfim sempre formas. Confissões XII, VI

Por isso, o que EU concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, mas por comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se EU quisesse conceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma, mas EU não conseguia; parecia-me bem mais fácil negar a existência do que estava privado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e o nada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada. Confissões XII, VI

Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é algo, ou o que é e não é, EU a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas. Confissões XII, VI

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, EU te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja EU minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti EU revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas EU me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas EU me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo co-eterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas EU me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Mas há outros que não censuram mas, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis, e que dizem: “Não é isto que quis dizer por essas palavras o Espírito de Deus, que as inspirou a teu servo Moisés. Não, o que ele quis dizer não é o que dizes, mas o que nós dizemos” — Eis, ó Deus de todos nós, o que EU lhes respondo: sê nosso árbitro. Confissões XII, XIV

Ó morada luminosa e pura! Amei tua beleza e o lugar onde mora a glória de meu Senhor, teu criador e possuidor. Por ti EU suspiro durante meu exílio! Peço àquele que te criou que me possua também em ti, pois também me criou. Errei como ovelha desgarrada, mas espero ser reconduzido a ti nos ombros de meu pastor, teu arquiteto. Confissões XII, XV

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E EU os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de uma não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu toda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus, luz de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me interessa, digo EU, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o que sabemos ou o que consideramos falso. Confissões XII, XVIII

Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seus erros! Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse. Possa EU unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam de tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de teu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena as revelaste. Confissões XII, XXIII

Eis que EU, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhas confissões; peço à tua misericórdia que me permita a realização desse desejo, e declaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis, pelo teu verbo imutável. Confissões XII, XXIV

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, EU não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV

Que ninguém me moleste portanto, dizendo: “O pensamento de Moisés não é o que tu dizes, mas o que EU digo”. — Se apenas me dissessem: “Como sabes que Moisés de fato entendia essas palavras no sentido que lhe atribuis?” — EU não me agastaria, e responderia talvez o que respondi acima, ou até mais explicitamente, se meu contraditor fosse insistente. Confissões XII, XXV

Quando porém, me dizem: “O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que EU afirmo” — sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então, ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz o meu coração, para que EU tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois não emitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento de teu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas só apreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim não fosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como EU aprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque é verdade, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence em comum a todos os amantes da verdade. Confissões XII, XXV

Quanto à pretensão de que o pensamento de Moisés não está no que digo, mas no que eles dizem, isso EU não aceito. Ainda que assim fosse, sua temeridade não é da ciência, mas a da audácia; seria produzida não por uma intuição correta, mas pelo orgulho. Confissões XII, XXV

É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: “Quando ambos vemos que tuas palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde o vemos? Certamente não é em ti que EU a vejo, nem tampouco é em mim que tu a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossas inteligências”. Confissões XII, XXV

Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que EU ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que EU teria desejado e apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto tempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo mundo afora, triunfar com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e orgulhosas. Confissões XII, XXVI

Por isso, se me perguntarem qual dessas opiniões foi a de teu servo Moisés, EU não seria coerente com minhas confissões se não te confessasse que o ignoro. Confissões XII, XXX

Sei, contudo, que essas opiniões são verdadeiras, a não mera interpretações materialistas, sobre as quais já disse tudo o que pensava. São como meninos esperançosos aqueles que não temem as palavras do teu Livro, tão profundas em sua humildade, tão eloquentes em sua concisão. Mas nós todos que, EU o declaro, distinguimos e dizemos a verdade sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros; e amemos igualmente a ti, nosso Deus, fonte da Verdade, pois temos sede, não de fantasias, mas da própria Verdade. Honremos a teu servo, que nos legou tua Escritura, cheio de teu espírito, e estejamos certos que, ao escrever as palavras que lhe revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da verdade e seus frutos proveitosos. Confissões XII, XXX

Assim, quando alguém me diz: “O pensamento de Moisés é o meu” — e outro diz: “Não, ele pensou como EU” — parece-me mais consoante ao espírito religioso dizer: “Por que não admitir ambos os pontos de vista, se ambos são verdadeiros?” — E se alguém descobrir um terceiro, um quarto sentido, e outros mais, desde que sejam verdadeiros, por que não acreditar que Moisés viu todos eles, ele por cujo intermédio o Deus único adaptou as Escrituras à inteligência da multidão, que deveria descobrir-lhe significados diversos e verdadeiros? Confissões XII, XXXI

Eis, Senhor meu Deus! Quantas páginas escrevi sobre tão poucas palavras! Deste modo, minhas forças e o meu tempo serão suficientes para examinar todos os teus livros? Permite-me, pois, abreviar minhas confissões e adotar uma única interpretação, que me farás escolher como verdadeira, certa e boa, entre as muitas outras que me poderão ocorrer. Que minha confissão seja fiel o bastante para que EU tenha exatidão ao exprimir o pensamento de teu servo, pois para tal me esforçarei; e, se não o conseguir, que EU pelo menos diga o que tua Verdade me quis dizer por suas palavras, como ela disse a Moisés o que lhe aprouve. Confissões XII, XXXII

EU te invoco, ó meu Deus, minha misericórdia, que me criaste, e que não olvidaste aquele que te esqueceu. Chamo-te à minha alma, que preparas para te receber fazendo-te desejar por ela. Confissões XIII, I

Não abandones ao que te invoca. Antes mesmo que EU te invocasse, já o tinhas prevenido. Confissões XIII, I

Senhor, apagaste todos os meus delitos para não ter de punir o que fizeram minhas iníquas mãos, e te antecipaste a meus atos meritórios para me recompensar do que fizeram tuas mãos, que me criaram; de fato, existias antes de mim, e EU não era digno de receber de ti o ser. Confissões XIII, I

Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do que me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, EU não sou um bem que te possa ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu culto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. EU devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade. Confissões XIII, I

Sobre as palavras que proferiste no começo da criação: “Faça-se a luz, e a luz foi feita” — EU entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que já era uma espécie de via apta a receber tua luz. Mas assim como ela não tinha merecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a luz, do mesmo modo, uma vez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porque sua informidade não te agradaria se não tivesse tornado luz, e isso não se contentando com existir, mas contemplando a luz que a iluminava, unindo-se intimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça; voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nem para pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples, pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própria felicidade. Confissões XIII, III

Pelo vocábulo “DeusEU já entendia o Pai, que criou essas coisas; na palavra “princípio” Confissões XIII, V

EU entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como EU acreditava na Trindade de meu Deus, EU a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuas Escrituras que teu Espírito pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, Criador de toda criatura! Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, EU to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

Dá-te a mim, meu Deus, entrega-te a mim. EU te amo. Se meu amor é pouco, faze que EU te ame com mais força. Não posso medir, não posso saber o que falta a meu amor para que seja suficiente para que minha vida corra para teus braços, e dali não saia antes de se esconder no segredo do teu rosto. Confissões XIII, VIII

Meu peso é meu amor; para onde quer que EU vá, é ele quem me leva. Teu dom nos inflama e nos eleva; ardemos e partimos. Subimos os degraus do coração e cantamos o cântico gradual. É o teu fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome e nos eleva, enquanto subimos para a paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me ao ouvir essas palavras: “Vamos para a casa do Senhor!” — Ali nos há de instalar tua boa vontade, e não desejaremos nada mais do que permanecer ali eternamente. Confissões XIII, IX

Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos. Elas diferem muito da Trindade, e EU só as proponho para que as usem como exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço, quero e vejo. EU sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência; veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos. O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda. Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da alma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente. Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem, temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo? Confissões XIII, XI

Também EU pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” — Respiro um pouco de ti quando minha alma se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltação e de louvor, verdadeiro canto de festa. — Mas ela ainda está triste, porque torna a cair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo. Confissões XIII, XIV

Senhor, faze que contemplemos os céus, obra de tuas mãos! Dissipa de nossos olhares as nuvens com que os tens velado. Neles está teu testemunho, dando sabedoria aos humildes. Meu Deus completa teu louvor pela boca dos meninos que ainda mamam! Não conhecemos outros livros que assim destruam a soberba, e que abatam tão bem o inimigo que resiste a toda reconciliação contigo, e defende seus pecados. Não, Senhor, não conheci outras palavras tão puras, que tantos me persuadissem à confissão, e sujeitassem minha mente a teu jugo, convidando-me a te servir tão desinteressadamente. Oxalá EU as compreenda, bondoso Pai! Concede esta graça à minha submissão, pois as firmaste para os corações submissos. Confissões XIII, XV

Há outras águas, creio EU, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas da corrupção terrena. Que elas louvem teu nome! Que os povos celestes de teus anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem de ler para aprenderem a conhecer tua palavra! Eles sempre veem tua face, e ali leem, sem as sílabas transitórias, o objeto da tua vontade eterna. Confissões XIII, XV

Estaria EU mentindo? Ou confundindo a questão, não distinguindo as claras noções das coisas do firmamento das obras corpóreas que se realizam no mar agitado e sob o firmamento? Confissões XIII, XX

Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como EU” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI

Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem o mar? EU diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra. Confissões XIII, XXIV

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que EU, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV

Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguem da tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a verdade; pois não vem de ti, por acaso, a inspiração do que queres que EU diga? Não creio que EU possa dizer a verdade se tu não me inspirares, pois tu és a própria verdade, e todo homem é mentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a verdade, só falarei o que me inspiras. Confissões XIII, XXV

Porque ele diz em seguida: “EU não procuro a dádiva, mas o fruto”. — Aprendi de ti, meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aquele que acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, um abrigo, e auxílio. O fruto é a vontade boa e reta do doador. O bom Mestre não se limita a dizer: “Aquele que receber um profeta” — mas acrescenta: “Aquele que receber um justo…” — mas acrescenta: “na qualidade de justo”. — E assim, aquele receberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas: “Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos” — mas acrescenta: “na qualidade de discípulo”. — E prossegue: “Na verdade vos digo: este não ficará sem recompensa”. Confissões XIII, XXVI

Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemos tua criação, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste: “Faça-se” e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito — EU as contei — que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplaste toda a criação, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muito boa. Tomadas separadamente, tuas obras eram boas; consideradas em seu conjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer da beleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito mais bonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma o conjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria. Confissões XIII, XXVIII

A isto me respondes, porque és meu Deus, falando com voz forte no ouvido interior de teu servo, rompendo minha surdez, me exclamas: “Ó homem, o que minha Escritura diz, isto digo EU. Confissões XIII, XXIX

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece em mim, eterno como EU. Assim, o que vês por meu Espírito, sou EU quem o vê; o que dizes por meu Espírito, sou EU quem o diz. Mas o que vês no tempo, EU não vejo no tempo; e o que dizes no tempo, EU não digo no tempo.” Confissões XIII, XXIX