Giuseppe Faggin — Meister Eckhart e a mística medieval alemã
Homem Interior e Exterior
O homem não é Deus e, mesmo sendo uno e indivisível, está formado por assim dizer, por três homens: o primeiro é o homem exterior, animal sensível; o segundo é o homem equilibrado; o terceiro é o Gemüte, a parte superior do homem. Tudo isto reunido não forma mais que um homem ainda que possa haver nestes três homens várias vontades, cada uma das quais quer a sua maneira. Na realidade, se prestarmos atenção às ideias expostas em outros sermões, o Gemüte por si só, não constitui todo o homem interior, pois que é necessário distinguir dele o “fundo da alma”. Sobre este “fundo” que provocou tantos enganos e suspeitas na doutrina eckhartiana, Tauler não é nunca suficientemente claro e explícito: para Hugueny “está constituído por uma divina passividade, fechada a qualquer ação das criaturas, aberta à ação imediata de Deus. Esta passividade, propriedade puramente espiritual e essencial da alma, não deve identificar-se, contudo, com a essência; é, em sentido amplo, uma faculdade intelectual superior de contemplação”. Tauler não afirma nunca expressamente que este fundo seja aliquid increatum nem que se possa identificar com a inteligência. No entanto, às vezes o chama “uma pura e simples substância da alma” e vê nele a fonte original na qual se reúnem todas as faculdades superiores e inferiores. E impossível dar-lhe um nome, como é impossível dar nome a Deus; e aquele que pudesse ver como Deus vive no fundo, se sentiria feliz com esta visão. Esta “chispa” foge até o cume onde é seu verdadeiro lugar, além do mundo, onde a inteligência não pode segui-la, já que não descansa até que chegue ao Fundo de onde saiu e onde estava em seu estado de coisa incriada. O sermão LXI,que exalta com entusiasmo o fundo “simples e imutável” que não tem tempo nem espaço e o denomina “morada de Deus”, que as criaturas e nenhuma luz criada podem preencher ou explorar, não oferece nenhuma determinação de caráter ontológico que possa esclarecer a teoria tauleriana. Mas Tauler usa como sendo sua, uma citação do Pseudo Dionísio, onde se diz que o fundo da alma se torna uma só coisa com o Verbo e ainda que por sua essência conserve sua diversidade, está, no entanto, unido a ela. Por outro lado é inútil esperar do caudaloso e prático místico uma teoria que ele não pode ter. A própria experiência mística não admite uma determinada explicação metafísica. Qualquer interpretação seria inadequada, como seria imprópria a palavra diante do prodígio da vida. Mais do que explicar o mistério da união mística revelaria um interesse essencialmente intelectualista e uma particular atitude filosófica alheia aos fins da salvação. Tauler não tem o temperamento metafísico de Eckhart: seu misticismo é mais consequente: vive o milagre da união e a única coisa que declara saber, é que esta união é simplesmente inexplicável. Todo o ato de reflexão e de introspecção lógica sobre ela não é nada mais que uma vazia abstração. Gefühl ist alies.
Mas se o fundo da alma é passividade aberta à ação de Deus, é evidente que a alma ou está submetida à ação divina como a uma força inexorável, ou colabora na conquista da unidade. Para Tauler a primeira destas duas alternativas (que será a luterana) deve-se puramente desprezar: a união não é um fato natural. Portanto, é necessário individualizar na alma um poder específico que seja de certo modo intermediário entre as verdadeiras e próprias faculdades e o grunt der sele. De fato, as faculdades se dirigem ao exterior e ao múltiplo e aqui deduzem seu diferente conteúdo e já que os objetos exteriores mudam, elas também são inconstantes e não podem permanecer continuamente ativas e unidas ao mesmo objeto: até o livre arbítrio participa desta oscilação própria das criaturas. Mais elevado e interior que as faculdades, o Gemüte é a vontade original e essencial do homem enquanto filho de Deus, é orientação e aspiração absoluta ao Bem absoluto. Seu propósito, eterno e imutável, não é exterior e contingente, mas Deus mesmo: é como a agulha magnética que se orienta infalivelmente para o norte e que a mão pode desviar mas sem nunca mudar a primitiva orientação. O Gemüte outorga às diferentes faculdades sua potência de ação. As faculdades existem e procedem do Gemüte, que permanece absolutamente simples, essencial e formal, acima de todas elas. Por isto a vontade criada não se dispersa entre os infinitos bens aparentes senão que pode eleger o melhor. O intelecto não se confunde entre as diversas opiniões discordantes senão que tende ao Uno. A fantasia pode reconhecer a beleza como harmonia do múltiplo, é um habitus mentis que dá sentido à vida da alma e direção aos pensamentos e aos afetos; portanto, não é uma faculdade no sentido comum da palavra, mas condição transcendental de nossas faculdades, que não construímos senão que constatamos em nós e podemos também corromper mas não destruir. O Germüte não se apaga nem sequer nos réprobos e sua insatisfação constitui sua eterna angústia, enquanto que o homem santo chega ao fim de seu impulso e deixa de existir “reconhecendo-se Deus em Deus mesmo sendo criado”. O Gemüte torna, portanto, possível a boa ação, mas não é o bem; e visto que é um impulso originário, do qual não nos corresponde a iniciativa, surge agora em toda a sua gravidade o problema do mal: se Deus é nosso verdadeiro bem e tendemos para ele com um desejo essencial, como é possível querer o mal e perverter a própria vontade originária? Não basta afirmar o livre arbítrio pois que ele é indiferente diante dos valores morais. Quem pratica o mal, ou não possui o impulso originário do Gemüte, ou possui também uma tendência ao mal que se opõe àquele e é capaz de contaminá-lo. A maior ou menor indocilidade ao Gemüte não se pode explicar exaustivamente pelo pecado original, assim como a boa ação não se pode explicar integralmente pela Vontade essencial: as tendências não são o ato, ainda que sejam seu necessário pressuposto, é necessário fixar no centro o eu construtor e criador, se não o quisermos conceber como um lugar sobre o qual se desenvolve a luta entre Deus e Satanás e como um instrumento passivo de metas sobre-humanas.
A teoria do Gemüte tem todos os seus antecedentes históricos no pensamento de Agostinho e constitui o correspondente volitivo do intelectualismo eckhartiano. Agostiniano-eckhartiana é também a teoria da alma como imagem da Trindade. Memória, inteligência, vontade, formam em nós a imagem das três pessoas divinas, de forma inimaginável; mas enquanto em Tomás de Aquino esta imagem completa sua realização mediante a atividade das faculdades, de modo que o intelecto em ato se eleva do sensível ao inteligível incluindo a necessidade lógica e ontológica do Absoluto e a vontade em ato se remonta desde os bens relativos até o Bem supremo, e a memória se despoja, do contingente e do acidental para conservar unicamente o essencial, em Tauler a imagem perfeita não se deve procurar na atuação, sempre incompleta, de faculdades dirigidas ao exterior, senão no fundo da alma, onde as potências psíquicas se unificam e se tranquilizam. Em Tomás de Aquino as atribulações da alma não se aplacam senão em uma vida ultra-terrena, onde a união é o prêmio sobrenatural; em Tauler a união é a flor da própria vida terrena, cuja possibilidade é a condição primeira da função das faculdades e cuja atuação representa a realização perfeita da Vida divina e humana. Quando o Verbo eterno é pronunciado e o fundo da alma conta com a preparação e receptividade necessárias para recebê-lo plenamente, o fundo se identifica com o Verbo e com o próprio ser do Verbo, ainda que conservando sua essência criada. Nesta imagem Deus se ama, se conhece e goza a si mesmo… e Deus e a alma se identificam nesta união, em uma unidade de graça, não de natureza. Tauler insiste sobre esta íntima unidade não menos que sobre a distinção entre Deus e a alma, mas já que as duas afirmações se opõem sem nenhuma mediação, Tauler recorre a imagens sugestivas — mesmo reconhecendo, como mencionamos antes, a incompreensibilidade do milagre — para envolver em uma atmosfera de prodígio as próprias coisas terrenas: uma gota de água que se perde no vinho, a luz que atravessa o cristal, a alma que se une intimamente a seu corpo. “Portanto, deixa as discussões e os debates sobre este argumento. É o mistério oculto no espírito, transfigurado neste fundo, em Deus”. Contudo, para que a afirmada união não leve à heresia dos dementes que a entendem no sentido carnal e dizem que se transformaram na natureza divina, Tauler acentua a ação de Deus sobre a alma, reduzindo assim o homem a uma desnudez passiva que acolhe em si a obra divina. “Neste ponto o homem está tão divinizado que tudo que é e faz, Deus é e faz nele. Este homem está tão acima de seu modo de ser natural que se transforma por graça no que Deus é essencialmente por natureza. Então o homem sabe e sente que está como que perdido: nem sabe, nem experimenta, nem sente mais nada de si. Só tem consciência de um ser muito singelo”. Com o conceito de “graça” Tauler encontra de novo o caminho da ortodoxia e salva a distinção: “é necessário que o espírito receba da luz da graça uma forma superior”. Mas a graça não é para Tauler, apesar do valor que reconhece nos sacramentos, um dom mágico necessariamente vinculado à obra carismática e mediadora da Igreja visível. É obra divina, ou melhor, é o Divino em nós que, de dentro, atua diretamente em toda a alma boa apenas mediante nosso desapego. Eis porque também os pagãos — como dissemos anteriormente — conheceram a união divina e, acolhendo o chamado do Gemüte, souberam voltar aos mananciais de seu ser. Para os cristãos Cristo é o caminho, o modelo de vida, o símbolo vivo do nascimento divino. Mas, com um maior sentido realista e com maior cautela que Eckhart, Tauler afirma repetidas vezes que a união que se realiza aqui embaixo, ainda que completa, não é mais que uma preparação e um saborear antecipado daquela visão beatífica que se goza na vida ultraterrena. Assim se invoca o além para integrar uma humanidade ainda não totalmente saturada do divino e para voltar a confirmar a loucura de nossa natureza. Em um misticismo como o eckhartiano, completamente orientado a exaltar a auto-suficiência da vida divinizada, esta invocação teria o aspecto de uma simples obediência exterior a um dogma; isto não acontece com Tauler ou com a Teologia alemã, onde o teocentrismo fundamental de Eckhart paulatinamente perde algo de seu luminoso otimismo e acolhe em si, com uma compreensão humana cada vez maior, as instâncias do mal, da dor, do erro, chegando a proclamar a necessidade e a divindade das angústias interiores do justo.
Mesmo que Deus permaneça oculto no fundo de toda a alma e espere, ainda que o Gemüte mexa no íntimo e infunda um sentido de inquietude diante de todos os bens aparentes, a vida do espírito não começa por um ato de vontade arbitrária; é necessário que, bem do começo, Deus atue em nós e que o homem aceite seu chamado. A vocação é o primeiro prodígio divino e a primeira revelação do Inefável, fora de nossas intenções e de nossos pensamentos. Na alma assim preferida por Deus, “desperta um amável desejo: ela busca e se informa cuidadosamente e quer saber algo de seu Deus que está tão velado e oculto… Este desejo se torna tão intenso que entra na carne e no sangue até a medula dos ossos”. Pode o homem conhecer o verdadeiro significado deste anseio interior? Reconhecendo-o, poderia opor ainda a estes anseios, seus desejos inferiores e suas paixões desenfreadas? Como se vê, reaparece o eterno problema da liberdade e da graça. Tauler está muito longe de afirmar a absoluta passividade diante da ação de Deus: a desnudez que ele exalta deve ser conquistada pelo homem com um heroico desapego de tudo o que é pessoal e finito; o Gemüte deve transformar-se de impulso indeterminado em consciência perfeita do Fim. Mas a elevação é difícil e deve liberar a alma de cinco espécies de escravidão; a primeira prisão é o amor das criaturas e,em particular, o amor humano pelo qual se podem também realizar obras boas para obter a aprovação do mundo; a segunda é o amor a si mesmo que faz buscar o próprio prazer e o próprio consolo em todas as coisas, mesmo em Deus; a terceira é a razão que aspira à glória e, descuidando da prática moral se enfeita com a vaidade filosófica e teológica e cria conflitos, ódios, polêmicas infinitas, considerando que as Sagradas Escrituras devem aprofundar-se abstratamente e não atualizar-se na vida; a quarta é a doçura do Espírito, pela qual a alma se compraz em suas satisfações espirituais e se detém nestas porque encontra ali uma fácil felicidade; a quinta é a própria vontade, com a qual o homem tende a impor sua vontade ao próprio Deus.