11) Quando, pois, vos conduzirem para vos entregar, não vos preocupeis com o que haveis de dizer; mas, o que vos for dado naquela hora, isso falai; porque não sois vós que falais, mas sim o Espírito Santo.
12) Um irmão entregará à morte a seu irmão, e um pai a seu filho; e filhos se levantarão contra os pais e os matarão.13) E sereis odiados de todos por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até o fim, esse será salvo. (Mc 13:9-13)
Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 113
“Estar atento”, “velar”, não é para Jesus abster-se do sono, ao qual estamos submetidos por nossa condição terrestre, senão manter-se em um estado interior ininterrupto de “dar-se conta”, “ver”, que torna possível o crescimento incessante da presença do Senhor na alma (v. Semente que germina).
Este é o sentido profundo da parábola do semeador, parábola da máxima importância pois nela se descreve em poucas palavras a grandiosidade inteira da doutrina de Jesus.
O centro puro, íntimo, do homem, aquele centro que não tem lugar onde reclinar-se, mas que cada um nomeia e pressente quando diz “Eu sou” (v. Eu Sou), é o Lugar Santo, desconhecido, onde reside a semente de Deus. Desde antes de nascer vestido de carne e de pele na terra, já foi semeado Deus neste lugar misterioso. E como poder logo crescer Deus e dar fruto se não estivesse semeado ali de antemão?
Desde o primeiro dia de seu ministério, quando proclama Jesus a Boa Nova de Deus, diz que “o Reino de Deus está próximo”. “Muito próximo”, devo dizer, posto que foi semeado no interior do homem. Nesta ocasião explicou o mestre os termos de um breve e conciso procedimento técnico com o qual todo homem pode apoiar-se para fazer mais vivo o crescimento e a fecundidade do fruto.
Esta doutrina supõe em si mesma uma ciência à serviço do homem em ordem para consumar o evangelho; uma ciência que deve ser praticada com assiduidade e afinco. Dela já falamos em outras ocasiões e voltaremos a mencioná-la por conta do imperativo “Vigiai”, “Atentai”, “Olhai por vós mesmos”. Mas neste uso em Marcos, este reserva para mais adiante, em seu capítulo, a explicação mais completa desta atitude e da necessidade de sua prática.
Em seu sentido mais real, o fundamento desta ciência, que se assenta na “conversão”, este “voltar-se para si mesmo” proporciona um “saber” que à princípio é tênue e logo, pouco a pouco cresce em intensidade, acerca do Deus invisível que habita no Lugar Santo, no Eu puro. Este é um saber paralelo ao fruto que recebe o lavrador da parábola de Marcos que lançou o grão na terra (Semente que germina).
Com a conversão, com o olhar absorto no Lugar interior, a semente semeada entra em via natural de crescimento e purificação, duas coisas até certo ponto idênticas. As impurezas alojadas na alma começam então a emergir e se descobrem por si só.
Parece como se a alma estivesse impregnada pelos acontecimentos de sua própria história, e cada impregnação que se levanta é uma cinza que morre e libera a alma de seu peso inútil. É sal que foge e já não transformará a ninguém em estátua.
Às vezes, a prática desta técnica descobridora aconselhada por Jesus, é necessário prolongá-la durante muito tempo. Inclusive é possível que a quarentena do deserto seja uma medida secreta do tempo da purificação do homem que pratica a metanoia segundo a propôs Jesus, como técnica para o descobrimento e o desenvolvimento da semente posta por Deus.
Agora entendemos que “velar” é uma maneira de dizer que há que se manter no estado de conversão. É uma forma de “velar” na qual o sujeito que está em vigília se vela a si mesmo, porquanto o si-mesmo é o objeto-sujeito no qual habita a semente de Deus.
Quando a atenção, o “dar-se conta” da Presença daquela semente é incessante, ininterrupta, a semente, tal como diz a parábola, cresce por si só até que se converte em fruto maduro.
Em verdade, a não descontinuidade da Vigília acresce de forma decisiva e imprevisível essa Presença de Deus cuja consumação é o que na fé que Jesus pede se chama a Vinda do Filho do Homem.
A regra de ouro para não se perder pelas tortuosas sendas da interpretação do relato parabólico da Vinda do Filho do Homem, é ter presente em toda ocasião que o que aqui se diz é uma transcrição do discurso não verbal que Jesus o Vivente fez inteligível a seus discípulos no transcurso daquela ascensão ao monte das Oliveiras.
O que explica Jesus não uma Paixão total como a sua, que inclui o sofrimento físico, corporal, pois “consentir” neste padecer completo foi só um privilégio seu e dos o que le fortalece. A Paixão que há de sobrevir aos seguidores do evangelho se constrói com uma cruz de natureza psíquica na qual a alma há e negar-se a si mesma por inteiro, até o ponto de deixar de ser, quer dizer, até o ponto de aniquilação, de esvaziamento, de todos e cada um dos elementos psíquicos que confluem nela, e que forma esse composto que chamamos alma.
A vida que foi tomada por empréstimo por “Adão alma vivente” no momento de nascer, há de ser devolvida para que “Adão espírito que dá vida” recupere o que é seu, sua vida, que entregou como arras de si mesmo. Isto é o que foi dito por Jesus como advertência: “Quem perder sua alma (psyche) por mim e pelo Evangelho, a salvará” (Mc 8,36).
Roberto Pla desenvolve sobre os versículos 9-10, de Marcos XIII, uma exegese sobre a questão do “martírio” ou do “testemunho”, em seu sentido profundo e maior, vide martyreo.
11) Quando, pois, vos conduzirem para vos entregar, não vos preocupeis com o que haveis de dizer; mas, o que vos for dado naquela hora, isso falai; porque não sois vós que falais, mas sim o Espírito Santo.
O que disse Jesus aos Doze, segundo Mateus (10,19; vide Evangelho de Tomé – Logion 73), o repete agora Jesus o Vivente; desde sua vigília psíquica, sentado no monte das Oliveiras, quer dizer, no monte da consagração em óleo santo, o dos ungidos, e o diz esta vez com validade para todos os seguidores do evangelho.
O fato prodigioso da tomada de posse da consciência pelo Espírito, quer dizer, o nascimento “em espírito” (Nascer do Alto), coisa que só pode ocorrer quando a alma se entregou, quando reconheceu sua “nadidade”, a absoluta pobreza de si mesma, “até o ponto de morrer”, é seguramente o vazio mais angustiante e universal segundo o evangelho de Cristo.
A alma, submissa, se “volta” à ação de Cristo, ao qual recebe em primícia de esponsais sagrados. A alma “reveste” então ao Espírito santificador, como se ela fosse o corpo “celeste”, isto é, um vestido de inteligência e razão. A alma toma como hóspede de névoas ao sopro do Primeiro mistério, esse espírito que há que decifrar, e uma vez conseguida para ele a liberdade, entregá-lo clarificado em palavras às muitas almas que esperam esse pão de conhecimento.
As “palavras”que a alma escuta, e chegam como o vento pois são palavras de silêncio, mas constituem um milagre que a alma santificada recebe quando por haver entregue tudo que ela acreditava ser, descobre o que era verdadeiramente ela. Então, pode dizer em espírito e em verdade: “Ele é Eu”.
12) Um irmão entregará à morte a seu irmão, e um pai a seu filho; e filhos se levantarão contra os pais e os matarão.
Uma vez mais se refere o evangelho à família antropológica que já conhecemos e estudamos (vide Evangelho de Tomé – Logion 16 e Discordia). Agora só se menciona a quatro de seus cinco personagens, porque Jesus o Vivente — o Jesus psíquico — exclui aqui à mãe, o corpo hílico dado pela natureza.
O irmão que entrega à morte a outro irmão é uma das duas Nações em que se divide a alma e das quais já se anunciou anteriormente que se levantariam para guerrear entre si. O que se levanta vitorioso contra seu irmão é o que o AT invoca sob a figura de Jacó, o qual, após lograr a primogenitura, e depois de sua luta com Deus, deu a luz para si um novo nome de origem divino, Israel.
Por ter nascido de acima, do espírito, não de mulher, foi Israel o antecessor testamentário de Jesus, o Cristo oculto e manifesto ao mesmo tempo. O outro irmão, gêmeo, o primogênito, nascido com o sopro (nefes) de YHWH no Paraíso, é o homem “do campo” (do mundo), que, segundo o evangelho “será deixado” para morrer com o corpo passível de Jesus.
Também fala Marcos de um pai que entregará a morte ao filho, mas isto é uma menção encoberta da significação prototípica de Judas, o último dos Doze, de quem o Filho do Homem haveria de dizer logo, em Getsêmani: “Olha, o que vai me entregar está próximo” (Mc 14,42).
Se Judas é chamado “o pai” é porque segundo conta o quarto evangelho, quando Judas tomou o bocado que Jesus o deu, para incitar-lhe a que fizesse logo o que tinha que fazer, “entrou nele Satanás”. Mas o Satã é chamado com razão “o Adversário” porque no coração do homem exerce em muitas ocasiões as atribuições do Pai embora na direção separativa, egoísta, que ele pode exercer (vide Satanás).
13) E sereis odiados de todos por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até o fim, esse será salvo.
O ódio que aqui se fala é o ódio das trevas à luz que elas não conhecem. Isto é um cumprimento da Lei, pois como diz o salmista: “Me odiaram sem motivo” (Sl 35,19).
Quando Jesus o Vivente diz a seus discípulos que “serão odiados de todos”, não fala de perseguições que lhes cheguem de fora de si mesmos; o que explica é que todo o terreno e apegado ao mundo que há no homem experimenta um rechaço natural à revelação do Filho do Homem, ao qual, como não é do mundo, o odeia, o nega, porque não o conhece.
Daí a dificuldade de alcançar no final o Reino da Luz; é esse um projeto que tem que se erguer desde o sei de todos os apegos que envolvem ao Eu Sou. A inércia destes apegos é andar às escuras, sem se levantar jamais da terra. Por isso se disse que aqueles sobre os quais brilhou a luz “viviam na terra das sombras” (Is 9,1).
Por outra parte, não é que o Reino de Deus não esteja no mundo, senão que o mundo não vê, e como é invisível para o mundo, se diz dele que não é do mundo ainda que esteja no mundo.
O fim (telos) é a consumação da obra de cada um. Este é um fim individual que nada tem que ver com a destruição escatológica do mundo. Só explica que o cumprimento do que alcançou a Vida é a consumação de um não ser do mundo, sem sair do por mundo por isto.
Isto o dizia Jesus a seus discípulos, quando todos, eles e ele, estavam ainda no mundo:
Vós não sois do mundo
porque ao elegê-los (elakistos) os saquei do mundo. (Jo 15,19).