Politeísmo

RELIGIÃO — POLITEÍSMO

VIDE: MONOTEÍSMO; ORIGEM DOS DEUSES
Mitologia Grega
Eudoro de Sousa: SEMPRE O MESMO ACERCA DO MESMO

Não é de espantar o incontável número de deuses. Efetivamente, aqui, apresenta-se-nos um «dado» a que terão de atender as mais incisivas exigências de uma explicação, sobretudo, a que não consinta confundir-se com a descrição cingente ao escrito, ao feito, ao figurado só pela mais premente necessidade de comunicação: no Mediterrâneo Oriental, considerado numa amplitude tal que nele se permitam cruzar os caminhos que vão de Gibraltar ao Indo e do Danúbio ao Nilo, convergem de tempos a tempos culturas carreadas por etnias das mais diversas proveniências, atraídas por surtos periódicos de um urbanismo precoce, com a promessa de um bem-estar que anda associado a todos os prenúncios de civilização e mesmo a civilizações já pronunciadamente instauradas. Este movimento não pode confundir-se com a chamada «invasão dos bárbaros», ou se quisermos subordiná-lo a semelhante título, temos de admitir que a «invasão» não é só aquela que pôs termo à unidade política do Ocidente clássico, mas a que se constitui por «infiltrações» que se sucedem através de todas as dezenas de séculos que decorrem desde o neolítico. Não podemos, por conseguinte, afastar, por importuna, a ideia de que a transcendência teística influísse nas origens do politeísmo e, portanto, que, reunido o fim ao princípio, a uma Dea Natura se deem o nome de todas as deusas-mães, apelando-se (Apuleio) para o polimorfismo e a polinímia de uma só divindade: Ísis, identificada a Cibele, Réia, Deméter e tantas outras. E justamente o sentido do segundo movimento, que transpõe o politeísmo para um (relativo) monoteísmo, o que se mostra como sinal da anterioridade fenomenológica do primeiro, em que esse monoteísmo (relativo) se teria repartido pelas diversas hipóstases de um Maternalismo transcendente (as Mães não morrem nem ressuscitam). É claro que não estamos desprecavidos contra as muitas objecções que tal modo de conceber a religiosidade mediterrânea em geral, e da grega, em particular, tão facilmente acudirão a uma inteligência bem desperta, pois há, pelo menos, duas que nos impeçam por este caminho. Uma, é por demais evidente: a Dea Natura não anda longe daquele Deus sive Natura do panteísmo espinosista, o que, não sendo, para nós, mui considerável empecilho, dá, todavia, lugar à legítima hesitação, quanto à possibilidade de olhá-la como expressão de um «monoteísmo» e, muito mais, se o afetarmos de alguma «nota» de transcendência. E a outra, tão evidente, quanto esta, é que não ficou clara nem obscuramente expresso o facto de que o politeísmo abrange deuses a que, de modo nenhum, se poderão atribuir características cosmobiológicas — deuses, portanto, que não pertencem ao domínio do «misterioso»; que não morrem e não ressuscitam, como exemplaridade de um acontecimento original e primordial, a repetir-se, ou renovar-se em quase todos, se não em todos os «ritos de passagem». No entanto, apenas sobre estes deixamos incidir o influxo do teísmo, para «explicar» a gênese do politeísmo.

Mas, sem recorrer a paralógicos subterfúgios, que deem ares de argumentação ao inargumentado, pode-se lembrar que, pelo menos alguns neoplatônicos (Proclo, por exemplo) nunca pensaram que à Dea Natura não se sobrepusesse o «Uno», que Plotino havia posto em situação de absoluta transcendência, relativamente a todas as divindades do paganismo e que nem por subalternos se poderiam considerar. Portanto, o aludido panteísmo converte-se em subproduto do que talvez nem possa chamar-se de monoteísmo, dada a absoluta inefabilidade do «um». Plotino levou até às últimas consequências aquele dito do Platão «místico»: a Ideia do Bem reside , «para além de tudo o que é», e, por conseguinte, de tudo quanto possa dizer-se (observe-se de passagem que só nesta perspectiva entendemos aqueles versos de Fernando Pessoa: «Deus é o Homem de outro Deus maior: / Adão Supremo, também teve Queda»), nada havendo, nada existindo, nada sendo, que predicativamente não possa ser dito. Aqui, nem o progressivo, que nos leva do Nada ao Ser, nem o regressivo, que nos conduz do Ser ao Nada, admite expressão que não seja ostensivamente metafórica. E nesta, diga-se que algures, na linha em que, tanto o princípio (o Ser), quanto o fim (o Nada) ficam além do seu início e aquém do seu término, moram os deuses, cada um deles informando (compondo no Caos Excessivo uma contenção cosmogônica) um mundo ou algum de seus aspectos mais fascinantes. Mas agora, todos os deuses, e não só os que entram em determinada categoria do divino, e numa relação para com o mundo, em que se esvai a oposição da imanência e da transcendência, ou melhor, em que, tanto uma quanto outra só resultam de atitudes mentais opostas, algo que começa a depender só do humano arbítrio. É bem de ver que esta é outra Fulguração: a que desoculta o horizonte da filosofia tradicional. Que os olhos do filósofo, ofuscados pela mesma fulguração, deixem de se aperceber do que ficou nos interstícios de todos os componentes da linguagem mítica; que seus ouvidos, a todo o custo, queiram escutar a significação desse silêncio intersticial; que este mesmo silêncio provoque um falar que não tem mais fim, por incomensuráveis que são as linguagens da mitologia e da filosofia e, por isso, também, que não haja no mito silêncio que qualquer proposição filosófica preencha em sua exata extensão (e intenção) — tal o elevadíssimo preço a pagar por uma consciência que converteu em «mito», tudo quanto realmente o foi, é e será: um falar que não se detém à superfície do intelecto e da vontade diabólicas, mas penetra, talvez, até a nossa irredutível subjetividade, perpassando por toda a gama de sentimentos e emoções que, necessariamente, tanto e tão bem comprometem a nossa alma com o nosso corpo, que, aí, no diálogo mais direto entre o absoluto que nós somos e o absoluto que a Realidade é, já não se pode distinguir o que em nós é corpo do que em nós é alma ou espírito. Corpo animado ou alma corporificada é o único sujeito que tem por objecto as mensagens cifradas do Secretum, que qualificamos de «religiosas».



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