Gregório do Sinai — Seleção de Jean Gouillard
Deveríamos falar como o grande Doutor e não ter necessidade do auxílio da Escritura nem dos Padres, mas deveríamos ser "ensinados por Deus" ( Jo 6,45 ), a ponto de aprender e conhecer Nele e por Ele tudo o que convém. Não apenas nós, mas qualquer um dos fiéis. Não fomos chamados a levar, gravadas em nossos corações, as tábuas da lei do Espírito? E a conversar com Jesus pela oração (euche) pura, sem intermediário, à maneira admirável dos kerubims?
Mas não passamos de crianças, quando de nossa segunda criação, incapazes de compreender a graça (kharis), de entender a renovação; ou antes, ignoramos a imensa grandeza da glória da qual participamos. Não sabemos que precisamos, pela observância dos mandamentos, crescer em alma (psyche) e espírito, e ver no espírito o que recebemos. Eis aí como a maior parte de nós cai, por negligência e hábito vicioso, na insensibilidade e na cegueira; e nem mais sabemos se há um Deus, o que somos, o que nos tornamos passando a ser filhos de Deus, filhos da luz, filhes e membros de Cristo.
Fomos batizados já adultos? Percebemos só a água e não o Espírito. Mesmo que sejamos renovados no Espírito, cremos apenas com fé morta e inativa... de fato somos carne e nos conduzimos segundo a carne.
Fazemos penitência? Conhecemos e observamos os mandamentos apenas no corpo (soma) e não no espírito. Se a graça (kharis), sensível a nosso esforço, gratifica alguns de nós com sua manifestação, achamos que é ilusão. Se nos contam isso de outros, a inveja nos faz ver aí uma miragem. E permanecemos mortos até o nosso último momento, sem viver em Cristo, nem sermos movidos por ele. E "o que temos", na hora da passagem e do juízo, "nos será tirado" por causa de nossa incredulidade e de nossa falta de esperança, por não termos compreendido que os filhos devem ser semelhantes ao Pai, deuses como Deus, espíritos saídos do Espírito...
A parte dos principiantes é a ação (praxis), a dos médios, a iluminação, e a dos perfeitos (teleios), a purificação (katharsis) e a ressurreição da alma (psyche).
O primeiro caminho é o mais longo, o segundo o mais curto, sob a condição de se ter aprendido a escavar a terra com coragem e perseverança, para descobrir ouro.
Portanto, se quisermos descobrir e conhecer a verdade, sem risco de erro, procuremos ter apenas a operação do coração (kardia), absolutamente sem forma, nem figura; procuremos não refletir, em nossa imaginação, nem forma, nem impressão de pretensas coisas santas; não contemplar nenhuma luz ( o erro, sobretudo no início, tem o hábito de iludir o espírito dos menos experimentados, por meio desses fantasmas enganadores ). Esforcemo-nos por ter, ativa em nosso corpo (soma), apenas a operação da oração (euche), que aquece e rejubila o espírito, e abrasa a alma (psyche) com um amor inexprimível por Deus e pelos homens. Se é verdade que a oração (euche) é, nos principiantes, a operação espiritual incansável do Espírito que, no início, brota do coração (kardia) como fogo alegre e, no fim, opera como uma luz de bom odor, poder-se-á ver nascer da oração (euche) uma grande humildade (tapeinophrosyne) e contrição.
A alma (psyche) se rejubila com a visita e a misericórdia de Deus, mas teme e estremece ao pensar na presença dele, e por causa de seus numerosos pecados. Em outros, ainda, produz-se uma contrição e uma dor indescritíveis da alma (psyche), semelhantes à da mulher em trabalho de parto, de que fala a Escritura. Porque "a palavra de Deus viva e eficaz", isto é, Jesus, "penetra até a divisão da alma (psyche) e do corpo (soma), das juntas e medulas" ( Hb 4,12 ) para separar dos membros da alma (psyche) e do corpo (soma), na carne viva, tudo o que encerram de paixões. Em outros mais, isso se manifesta sob a forma de um amor e de uma paz indescritíveis para com todos; em alguns, é uma exultação e um salto, conforme expressão freqüente dos Padres, movimento de coração (kardia) vivo e virtude (arete) do espírito.
Isso se chama também pulsação e suspiro inefável do Espírito que intercede por nós junto de Deus ( Rm 8,26 ). Isaías chama-o "julgamento da justiça"; Efrém, "picada"; o Senhor, uma "fonte de água que jorra para a vida eterna" ( a água é o Espírito ), que brota e borbulha com força no coração (kardia).
Há duas espécies de exultações e de saltos: uma exultação tranqüila, ou seja, a pulsação, o suspiro, a intercessão do Espírito; a grande exultação, isto é, o pulo, o salto, o vôo vigoroso do coração (kardia) vivo no ar divino. O Espírito divino dá as asas do amor à alma (psyche) libertada dos laços das paixões; antes mesmo da morte, a alma (psyche) se esforça por alçar vôo, em seu desejo de escapar ao peso...
No coração (kardia) de todo iniciante, agem duas operações, de maneiras distintas. Uma, sob o efeito da graça (kharis); outra, sob o efeito do erro. Marcos atesta-o: "Há uma operação espiritual e uma operação satânica desconhecida das crianças". Por outro lado, um triplo ardor de operação queima no homem: um, aceso pela graça (kharis); o segundo, pelo erro e pelo pecado; o terceiro, pelei excesso de sangue. Talássio, o Africano, chama também, a este último, "temperamento" e diz que o acalmamos por meio de uma abstinência conveniente.
A operação da graça (kharis) é uma virtude (arete) do fogo do Espírito, que se exerce no coração (kardia) com alegria; fortifica, aquece e purifica a alma (psyche), suspende por algum tempo seus pensamentos e mortifica provisoriamente os movimentes do corpo (soma). São estes os frutos e os sinais que testemunham sua verdade: lágrimas, contrição, humildade (tapeinophrosyne), temperança, silêncio, paciência, solidão e tudo o que nos dá um sentimento de plenitude e de certeza indubitáveis.
A operação do erro é o fogo do pecado que aquece a alma (psyche) através da volúpia... Ela é indecisa e desordenada, diz Diádoco ( § 31 ). Causa-nos uma alegria despropositada, presunção, perturbação..., acende o temperamento, trabalha a alma (psyche) e a aquece, atrai para si a alma (psyche), para que o homem, contraindo o hábito da paixão, expulse a graça (kharis) pouco a pouco ( P.G. t. 150, cc. 1304s ).