Nilo Tropeço

Nilo do Sinai — DISCURSO ASCÉTICO
Tratado Ascético, Nilo de Ancira, Editorial Ciudad Nueva, Madrid, Biblioteca de Patrística n° 24, 1994, 250 p. — ISBN: 84-86987-67-9

Colaboração e Tradução de Antonio Carneiro

11. Não sejamos pedra de tropeço!

Porque o Senhor nos mandou curar1 os debilitados, não atormentá-los, e tirar proveito do próximo2 mais que a nossa própria complacência, a não ser que, deixando-nos levar pelos impulsos irracionais, sejamos pedra de tropeço para muita gente simples ao dar-lhes ocasião para ambicionar os bens terrenos3.

Porque damos tanto valor à esta matéria que nos ensinaram a desprezar?4) Na medida em que vivemos submetidos às possessões e riquezas, temos o coração5 dividido por numerosas e inúteis solicitudes cuja preocupação nos distrái de atender às coisas mais necessárias e nos dispõe à olhar com indiferença os bens da alma6. Mas tais solicitudes conduzem à um profundo abismo aos que aspiram ao esplendor deste mundo pensando que o mais alto grau de felicidade se acha no desfrute das riquezas.

Na ocasião que fazem profissão de vida filosófica, alardeiam de terem superado os estímulos do prazer, mas, pelos feitos mostram que tendem para estas coisas mais que nós. Não há, entretanto, nada que mereça tão grande castigo como fazer dos demais imitadores dos próprios vícios, porque a perdição dos imitadores será um suplemento de pena, uma condenação não pequena, para o mestre, quer dizer, para o que foi preceptor dos vícios daqueles que não recusaram imitar sua má conduta. Por outro lado, os que, raciocinando sabiamente, entenderam seu ensinamento como infame, fugiram dele.

Ninguém se ofenda, por tanto, com o dito, mas sim corrija as irregularidades que por causa da negligência da maioria, provocou o desprestígio deste nome, ou renuncie ao mesmo nome7. Porque, se seu propósito é filosofar, deve saber que, segundo a filosofia professada, as possessões são supérfluas e que, em razão da pureza da alma, tem que estranhar até o próprio corpo8. Mas, se o maior desejo de alguns é possuir bens terrenos e gozar prazeres da vida, porque magnificam com palavras esta filosofia quando por sua vez professam com suas obras o contrário, levando à prática ações que contradizem o professado e revestindo-se do venerando nome de filósofos?


NOTAS
Algumas da versão em espanhol de José Ramón Díaz Sánchez-Cid



  1. Cf. Mt 10, 8; Lc 9, 2; Lc 10, 9; Rm 15, 1. 

  2. Rm 15, 1; Rm 15, 3; 1 Co 10, 33. 

  3. Cf. Mt 18, 6-9: Mas ao que escandalize à um desses pequeninos que creem em mim, mais vale que o pendurem no pescoço uma dessas pedras de moinho que os asnos movem e o afundem no profundo do mar…; Lc 8, 14. 

  4. A vida monástica está marcada desde o primeiro instante pela renúncia ao mundo e a si-mesmo: O que queira me seguir, negue-se a si mesmo…( Mt 16, 24). Tanto é assim que os monges são chamados com frequência apotaxámenoi ou renuntiantes (cf. J.Cassiano, Inst.4, 1). Sem renúncia não há nem pode haver vida monástica: O que não renuncia a todas as coisas — dizia o grande Macário — não pode ser monge ( Apoth. Macário de Egito 2). Cassiano, desenvolvendo uma tese de Evágrio, distingue tres momentos na renúncia do monge: a) o desprezo de todas as riquezas e bens deste mundo; b) o abandono dos antigos costumes, vícios e afeições do espírito e da carne; e c) a eliminação da mente de todo o presente e visível para contemplar unicamente as coisas futuras e invisíveis (Coll. 3, 6). O desprendimento dos bens temporais vinha a ser como a porta de entrada na vida monástica. Era preciso renunciar, desde o princípio, a toda propriedade pessoal para anular o perigo de por a confiança em algo deste mundo ( cf. infra. c.14) e adquirir a liberdade que exige a consagração à Deus. A renúncia monacal implicava também a continência perfeita e, portanto, a virgindade e o celibato. O mesmo nome de “monges” que se dava aos solitários parecia indicar precisamente sua condição celibatária, o viver sozinhos, sem consorte (cf. Ps. Macário, Hom. 56). Mas, o aspecto mais importante desta renúncia era sem dúvida a abnegação de si-mesmo ou sacrifício da própria vontade (Basílio, Reg.fusius, 8; 6, 1). Os monges imolavam assim seu porvir para a eternidade. Cf. A.Gaultier-Sageret, Analyse de l’abnegation chrètienne, em RAM 33 ( 1957 

  5. Aqui o termo empregado é nous (= mente). Traduzimos por coração devido às conotações afetivas implicadas no texto. Entendemos por coração a sede dos afetos humanos. 

  6. Esta indiferença ou despreocupação pelos bens da alma é o que os Padres do deserto chamaram de acedia, situando-a entre os oito vícios capitais ou maus pensamentos. Para Evágrio, é a tentação por excelência do solitário. Assalta o monge na metade do dia — daí seu apelido de demônio do meio-dia — ; provoca inquietude e tédio; fomenta a ociosidade e o sonho; excita as paixões; move ao abandono da oração e ao falso céu; inspira aversão ao lugar em que habita, aos irmãos com quem convive, ao próprio estado de vida e ao trabalho manual; faz suspirar por outros lugares onde a vida parece mais suportável e o ofício menos penosos; traz a memória dos parentes ou recorda dos melhores tempos passados; faz presente as prolongadas fadigas do ascetismo e, por fim, procura que o monge abandone sua célula e fuja do estado ( Prak. 12). A acedia se apresenta, pois, como um estado de ânimo, muito ligado â vida anacorética, que leva consigo aborrecimento, torpor, preguiça, desgosto, desalento, ansiedade, tristeza, etc. Nilo a define como atoniapsyches ou fraqueza da alma (De oct. spir. mal. 13). Entre suas causas naturais se encontra um demônio muito pesado e especialmente ativo no meio-dia. Entre seus remédios citam-se a oração, a meditação e recitação de passagens da Bíblia, o trabalho manual, a recordação da morte, a paciência, a esperança, a vida de comunidade, a perseverança na célula, a compunção e o conhecimento da natureza desta tentação ou discernimento de espíritos. Seu oposto é a amerimuia ou indiferença evangélica para as coisas terrenas. Cf. G.Bardy, Acedia: DS 1, col. 166-169; Lampe, pp. 61-62. 

  7. Frente aos males que sofre o monacato, Nilo propõe a correção ou a renúncia. O nome a que devem renunciar os que não estão dispostos a deixar-se corrigir é o de filósofos (ver infra), quer dizer, o daqueles que tem feito profissão de vida filosófica ou monástica, mas não vivem como tais. Renunciar ao nome é renunciar ao que o nome implica: hábito, profissão religiosa, monastério. 

  8. A palavra clássica para designar a pureza é katharotes (cf. L.Moulinier, Le pur et l’impur dans la pensée et la sensibilité des Grecs jusqu’à la fin du IV siècle av. J.C., Paris, 1952). Nos escritos dos Santos Padres, referidos à alma, parece aludir a sua disposição para ver à Deus. Tal disposição é já, na opinião de Gregório de Nisa, participação no próprio ser de Deus, que é puro (cf. Orat. cat. 36: PG 45, 92 D). Para Evágrio, a pureza designa o mais alto estado de união com Deus que se possa alcançar neste mundo, um estado que exclui não somente as paixões que têm um componente físico, como a cólera, o orgulho, ou a luxúria, como inclusive as imagens e pensamentos que brotam delas (cf. Prak. 23 e 55; SC 171, 554 e 628; 42, 596). Identifica-se, pois, com a apatheia. Segundo Nilo, a pureza d’alma supõe o estranhamento do corpo, quer dizer, um processo de purificação pelo qual a alma vai experimentando como alheios (não próprios) os impulsos (fisiológicos) do próprio corpo, até o ponto de chegar a assemelhar-se com as próprias potências incorpóreas ou anjos (cf. infra, c.18). Em termos similares se expressa J.Cassiano a propósito da pureza do coração ou castidade perfeita: tal era a harmonia do homem paradisíaco, tal é a pureza intacta dos espíritos angélicos e tal a fruição antecipada da futura glória dos santos (Coll. 10, 7; 9, 2; 1, 4).