Hugo Rahner — Mitos Gregos em interpretação cristã
A Mandrágora, eterna raíz humana
Mitos Gregos em interpretação cristã, Hugo Rahner, Herder: Barcelona, Espanha, 2003, 381 p. ISBN 84-254-2283-3 título original: “ Griechische Mythen in christlicher Deutung” © 1945, “ Orden der Gesellschaft Jesu, Munich” trad. Carlota Rubies, prólogo de Lluís Duch (autor dos livros “ Mito, interpretación y cultura” e “ Antropologia de la religión” publicados pela mesma editora).
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro de excertos das páginas 219-263
Nos livros sagrados do Antigo Testamento encontra-se a menção da raiz mandrágora que já era conhecida desde a Antiguidade. No Gênesis 30, 14-16 é contado como o jovem Rubem, ao ir um dia ceifar no campo, encontrou “dûdâ’îm” e a levou para sua mãe Lia; esta por sua vez deu-a para sua irmã Raquel para que a examinasse, pois, ao que parecia, ajudava a recuperar o amor de seu marido. A tradução para o grego da Septuaginta adotou a palavra hebraica por “mandragórai” e provavelmente fosse acertada sob o ponto de vista botânico. As “dûdâ’îm” que na época da colheita de cereais, ou seja, em fins da primavera, está em plena floração, são as mandrágoras de primavera, com suas flores de cor verde pardo e com seus pomos amarelos de brilho dourado, cuja fragrância é muito penetrante e que todavia se mencionam nos relatos de viagem para Palestina. Mais tarde falaremos acerca do poder das bagas de atuar como filtro de amor. No Cântico dos Cânticos 7,14 menciona-se esta mesma planta quando a noiva, ao descobrir o esplendor primaveral da natureza, diz: “As mandrágoras estão arrojando sua fragrância”; no texto grego aparece de novo a palavra “mandragórai”. Destas duas breves menções que, como a silenciosa fragrância da mandrágora, passam sigilosamente pelas Sagradas Escrituras, brotou por toda parte o simbolismo do qual falaremos agora; ou melhor, o mundo encantado da magia mandragórica no simbolismo cristão foi penetrado por estas duas menções, adquirindo nele nova vida. Explica-se assim o interesse meramente botânico que mostraram os Padres da Igreja pela planta bíblica da mandrágora. O exemplo mais sugestivo a respeito ofereceu o grande Agostinho.1 Também os demais Padres gostaram de falar da botânica da mandrágora, Ambrósio2 e Basílio3, depois deles um rol de Padres que interpretaram o Cântico dos Cânticos e o Gênesis.
Não obstante, lograremos aprofundar mais na compreensão da magia da mandrágora se nos perguntarmos quais eram os espíritos que habitavam o Ocidente e com os que estava relacionada, em um plano simpatista, a raiz. A resposta é uma: Com Hécate, a inquietante senhora de todos os fantasmas e demônios dos mortos.
Hécate é na realidade o reverso escuro do Hermes luminoso. Ambos são “condutores de alma”, mas Hécate é a “senhora do submundo”, em seu séquito constam os fantasmas dos mortos e as almas inquietas dos que foram mortos perto de tumbas e encruzilhadas de caminhos. Eusébio a chama “senhora de todos os demônios malvados”4. É a “negra” e se equipara a Perséfone, que possui a chave para entrar no Hades. Hécate é nas práticas mágicas o demônio do frenesi do amor e equivale a Afrodite. Segundo uma genealogia de época tardia é mãe de Circe e Medéia, quer dizer, das duas grandes bruxas dos gregos.
Eis aqui a prova verdadeira: Hécate está rodeada de cães ladradores do Hades e ela mesma aparece a miúde como um fantasma de cão; os magos a invocam com voz trêmula como “cachorro negro”5. Pois somente quem conhece muito bem a deusa demoníaca, quem se protege dela com o nome adequado, permanece invulnerável a suas astúcias. Isto nos leva a parte mais importante da antiga magia da mandrágora. Segundo a prática mágica tem que arrancar a raiz da terra com ajuda de um cachorro negro. Deter-nos-emos neste aspecto, pois aqui estão as raízes da magia do cachorro negro e a mandrágora6, que posteriormente seria tão conhecida no cristianismo ocidental.7
O cão era, para o homem antigo, um animal , era de certo modo a materialização terrena do demoníaco. Hécate era, como vimos, a senhora dos cachorros. Os demônios aparecem com sua figura e em um escrito mágico bizantino, o “Testamento de Salomão”, um espírito maligno assume a forma de um cão extremamente ladrador; o invoca Salomão pela força que lhe concede seu anel mágico que, debaixo da pedra preciosa, levava incrustado um pedaço de raiz de mandrágora.8 Escutemos uns versos de Sinésio que dar-nos-ão uma ideia muito aproximada de como o homem antigo, inclusive o cristão, se sentia ameaçado pelos cachorros de Hécate que acreditavam habitar o escuro mundo do fundo da alma que, para ele, representava um símbolo do diabo:
No profundo deverá se fundir
a cauda da serpente,
em direção ao fundo deverá mergulhar
o verme alado,
o “demon” da matéria,
névoa da alma,
idólatra,
que invoca os cachorros
carregados de Maldição9
Pai, oh Venerável,
mantém longe de meu espírito
os cachorros devoradores da alma.10
Com estes “cachorros devoradores de alma” temos chegado ao extremo oposto da “flor sanativa da alma”. Às tremendas práticas mágicas que serviam para obter a mandrágora, acrescenta-se agora a magia noturna do cachorro.
“Contra faustum Manichaeum” XXII, 56 ( CSEL 25, pp.651 s.); Isidoro de Sevilha o reproduz palavra por palavra em “Questiones in Vetus Testamentum” 25, 19 s. (PL 83, 262 BC). ↩
“Exameron” III, 9, 39 (CSEL 32, I, p.85, 18 s.). Ambrósio defende aqui, a existência de ervas tóxicas que não estão em contradição com a bondade do Criador e adverte o fato de também existir “anjos malvados” (pp. 84,15). ↩
“Hexameron” II, 4 (PG 29,101 D). Também comentaram: Efrém, “In genesim 30 (“Opera Syriacae-Latine” I, Roma 1737, p. 84) e Isidoro, “Etymologion” XVII, 9,30 (PL 82, 627 BC). ↩
“Praeparatio evangelica” IV, 22 (PG 21, 304 C). ↩
“Papiro Mágico de Paris”, 1432 ss; vide REA VII, col 2776, pp. 40 ss. ↩
No texto em espanhol foi usada a palavra “alruna”, é possível que no original em alemão estivesse “Alraun” que é também o nome para mandrágora. ↩
Vide E. Von Lippmann, “Alraun und schwarzer Hund” (“Mandrágora e Cachorro Negro”), em “Abhandlungen und Vortrage zur Geschichte der Naturwissenschaften” I, Leipzig 1906, pp.190 ss. ↩
“Testamentum Salomonis” (um escrito de magia de origem judaica-grega; compare-se com T.Hopfner, “Offenbarungszauber” (“Revelação Divina da Magia”) I, op.cit., pp. 160s.), (PG 122,1330 s.). ↩
Aqui surgiu uma dificuldade de tradução, pois no texto em espanhol está : “com su Fluch tentador” se fosse traduzido como está seria “com seu Fluch tentador”. Infelizmente estou sem o original em alemão, mas é possível que no original em alemão esteja algo como: “fluchbeladen” (maldito) ou “Fluch” (maldição) “beladen” (carregado de), considerei mais adequado ao texto deixar “carregados de Maldição” no lugar que também poderia ser “malditos”. ↩
Hino III, versos 86-98 (PG 66, 1595) Versão para o alemão de F.Wolters, “Lobgesange und Psalmen”, op.cit., pp. 67 s. ↩