VIDE: Diálogo com a samaritana; Bom Samaritano
O autor do quarto evangelho, na sua prossecução de apresentar Jesus como a alternativa “divina” ao judaísmo, e, por ele, ao mundo, entrega-nos a belíssima narrativa do quarto capítulo sobre o novo sinal relacionado com a religião dos samaritanos.
Começa por afirmar que Jesus deixou a zona geográfica da Judeia para se refugiar na Galileia porque “os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia mais discípulos e baptizava mais do que João” (v. 1).É realmente estranha tal afirmação Jesus tem medo dos fariseus por “fazer mais discípulos e batizar mais do que João Batista“. A estranheza da afirmação tem, no entanto, um certo ar de verdade histórica porque logo a seguir, como que em parêntesis, corrige:”embora não fosse Jesus a baptizar, pois os discípulos é que baptizavam” (v. 2). Não se trata dos “discípulos” de João Batista, mas dos de Jesus, o que significa que Jesus abrira uma brecha na unidade dos discípulos do Batista. Os Sinópticos nada dizem sobre o assunto, mas, partindo do princípio que Jesus passou algum tempo no círculo da comunidade do Batista e trouxe ao de cima a questão teológica sobre a natureza do batismo (3, 25-26), é natural que alguns discípulos do Batista aderissem às teses de Jesus. Neste particular, como já vimos, o quarto evangelho estaria mais de acordo com a história fatual do que os Sinópticos.
Mas a história fatual termina aqui porque o que se segue é um grande sinal do quarto evangelho em estilo de narrativa teológica-cristológica. De fato, a narrativa, depois de apresentar as ordens de Jesus aos discípulos para comprarem, em Sicar, o necessário para comerem, e depois de apresentar um grande diálogo de Jesus com uma mulher samaritana, que, como consequência, leva os samaritanos a convidarem Jesus a ficar com eles “dois dias”, acabam por acreditar em Jesus como “o verdadeiro Salvador do mundo”: “Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (v. 42).
Já dissemos que tal “conversão” não se pode tomar como verdade de história fatual porque contradiz os dados de Ac 1,8 (onde o Ressuscitado determina o “mandato” apostólico: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, toda a Judeia, Samaria e até aos confins da terra”), de Ac 8,14-25 (foi o diácono Filipe o primeiro a converter alguns samaritanos), de Lc 9,51-56 e paralelos (os samaritanos recebem mal Jesus) e de Mt 10,5 (Jesus proíbe os doze de evangelizar os pagãos e os samaritanos). A cena do quarto evangelho é uma grande parábola em ação do seu autor, uma espécie de “midrache”, para apresentar Jesus como o verdadeiro Salvador, não apenas dos judeus, mas de todo o mundo. Se os samaritanos assim acreditam, também os fariseus e demais judeus e pagãos devem acreditar.
Mas o autor da narrativa não parte do nada, porque tem como cenário a história da Samaria e a história de cristãos joanicos samaritanos. Este aspecto fica claro com a frase do v. 4: “Precisava de passar pela Samaria”, conjuntamente com a frase do v. 39: “Porque eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga.”
Em João (como também em Lucas), o verbo dei, ser preciso, relaciona a pessoa de Jesus com o plano divino da salvação. No imperfeito, significa que Jesus precisava daquele encontro com a mulher samaritana para que a sua obra de revelação não deixasse nada em atraso. O verbo aparece mais duas vezes neste capítulo com o mesmo sentido (v. 20: “Dizeis que Jerusalém é o lugar onde é preciso adorar”; v. 24: “Deus é espírito; por isso, os que o adoram é preciso que o adorem em espírito e verdade”), e o mesmo se diga de 3, 7 (“E preciso nascer de novo”), 3, 14 (“E preciso que o Filho do Homem seja levantado…”), 9,4 (“É preciso que eu faça as obras daquele que me enviou”), 10,16 (“Tenho ainda outras ovelhas…, é preciso que venham a mim…”; cf. ainda 12,34 e 20,9). Estamos, portanto, diante duma narrativa teológica. O v. 39, já anotado, no contexto maior dos vv. 35-38, tem em vista o tempo dos samaritanos cristãos na altura em que o autor escreve. A “ceifa” cristã joanica deve ter sido bastante significativa. Entre as várias comunidades joanicas devemos pressupor uma na região da Samaria. Não é por acaso que existe uma estreita ligação entre a “necessidade divina de revelação” do evangelho de Lucas e de João com o verbo dei, que pressupõe o “mandato” missionário de Ac 1, 8: “Sereis minhas testemunhas… em Samaria”. Toda a narrativa se encaminha para a realização dos tempos escatológicos da vinda do Messias que, segundo a mentalidade dos samaritanos, a partir de Dt 18, 18, se chamaria Taheb, aquele que tudo sabia (v. 25: Disse-lhe a mulher: “Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há-de fazer-nos saber todas as coisas. “1.
A questão religiosa de Samaria começa depois da morte de Salomão. Este usava e abusava dos trabalhadores das tribos do Norte. O seu sucessor Jeroboão (931-91O a. C.) agravou ainda mais a situação, desencadeando-se, assim, o cisma entre o Norte e o Sul. Em 722 os assírios conquistaram o reinado do Norte, deportaram grande parte dos judeus para a Assíria e colocaram na região de Samaria colonos assírios. Assim nasceu o sincretismo religioso entre a religião dos assírios e a de Israel, a inimizade política e religiosa entre os dois povos, o aparecimento, mais tarde, durante o império helênico, do templo de Garizim que rivalizava com o de Jerusalém. Os cinco maridos de que fala o v. 18 (“tiveste cinco maridos e o que tens agora não é teu marido”) refere, com toda a probabilidade, os colonos pagãos assírios de cinco regiões e respectivas religiões (cf. 2R 17,24-34; cf. v. 24: “O rei da Assíria mandou vir gente da Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamat, de Sefarvaim, em lugar dos filhos de Israel…”). As várias tentativas políticas e religiosas de reis, sacerdotes e profetas (cf. Ez 37, 16-19) em reunir as dez tribos do Norte com as duas do Sul fracassaram. A última tentativa partiu das tribos do Norte por altura do regresso dos judeus do exílio da Babilônia. As tribos do Norte ofereceram as suas ajudas aos judeus do Sul para a reconstrução do Templo de Jerusalém, mas os responsáveis recusaram tais ofertas e agudizaram ainda mais as rivalidades com a proibição dos casamentos mistos no reinado do Sul (cf. Es 4,1-5; 9-10). A reconquista do reinado do Norte só aconteceu com o rei João Hircano em 107 a. C.,mas o sincretismo religioso permaneceu bem como o ódio entre os dois povos. O autor do Eclesiástico em 50,25-26 fulmina os samaritanos desta maneira: “Dois povos abomina a minha alma / e o terceiro nem sequer é um povo: / os que vivem no monte Seir e os filisteus, / e o povo insensato que habita em Siquem.”
É neste contexto histórico e religioso do passado de Israel, juntamente com o contexto dos samaritanos joanicos, ao tempo do autor do quarto evangelho, que devemos compreender a nossa narrativa do sinal da Samaritana, que podemos estruturar em três grandes blocos:
JESUS REVELA-SE A UMA MULHER SAMARITANA (4,1-26)
JESUS REVELA-SE AOS DISCÍPULOS (4, 27-38)
JESUS REVELA-SE AOS SAMARITANOS (4, 39-42)2
A figura messiânica do Taheb samaritano como alguém que descobriria a verdade final entre judeus e samaritanos continua em aberto. Esta figura parece ser tardia e, como tal, difícil de se aplicar aos tempos do autor do quarto evangelho. De fato, os documentos mais antigos são do séc. XIV, embora as tradições já sejam conhecidas no século quarto. Cf. Dexinger, F., Der Taheb. Ein “messianischer” Heilsbringer der samaritaner. Kairos, Religionswissenschaftliche Studien 3. (Otto Müller, Salzburg 1986); Hall, B.W., Samaritan Religion from John Hyrcanus to Baba Rabba:A critical examination of the relevant material in contemporary Christian literature , the writings of Josephus, and the Mishnah. Studies in Judaica 3. (Sydney University Press, Sydney 1987). ↩
Alguns autores estruturam a narrativa do cap. 4 da seguinte maneira: 1) Jesus e a mulher samaritana I (4, 1-15; 2) Jesus e a mulher samaritana II (4, 16-30); 3) Comentário de Jesus (4, 31-38); 4) Jesus e os samaritanos (4, 39-42). É natural que a narrativa tenha sofrido alterações no período da tradição oral. Como veremos, a lógica interna a nível textual e semântico é complexa. ↩