Samaritana 2 [CNEJ]

Joaquim Carreira das Neves — ESCRITOS DE SÃO JOÃO
Jesus revela-se aos discípulos (4, 27-38)
No segundo bloco (vv. 27-38) entram em ação os discípulos que, entretanto, tinham ido à cidade comprar alimentos. Quando regressam “ficam admirados por ele estar a falar com uma mulher” (v. 27), pois era culturalmente proibido um homem judeu estabelecer conversa com uma mulher, a sós. O imperfeito do verbo laleiti (elalei) indica que os discípulos se aperceberam que a conversa de Jesus com a mulher fora prolongada. Perante a estranheza da situação, os discípulos nada lhe perguntam, embora estejam admirados-chocados (thaumazein). O autor, ao contrário dos Sinópticos, poupa os discípulos de segundas intenções, sobretudo de intenções políticas. O autor do quarto evangelho serve-se da narrativa deste encontro para apresentar o “mistério” de Jesus sempre ligado a fatores de lugares geográficos, de tempo histórico e de personagens bíblicas. E este o significado da explicação do autor com as interrogações: “Mas nenhum perguntou:’Que procuras?’, ou,’De que estás a falar com ela?’” (v. 27).

Os discípulos apenas insistem com Jesus para que coma dado o adiantado da hora e o cansaço (cf. v. 6): “Rabi, come” (v. 31b), mas Jesus recusa a comida. E o que aconteceu com a samaritana em relação às incompreensões normais sobre a água, acontece, agora, com os discípulos em relação à comida: “Será que alguém lhe trouxe de comer?” (v. 33). E assim como Jesus respondeu à samaritana com o óbvio da revelação: “Se conhecesses o dom de Deus… da água viva”, também responde aos discípulos: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (v. 34).

Notemos que a samaritana, no processo da sua catequese, já tinha atingido um escalão superior ao dos discípulos sobre a compreensão da pessoa de Jesus: “judeu”, “Senhor”, Messias”, “Profeta”. Os discípulos tratam Jesus apenas por “Rabi”.

Os comentadores costumam apresentar a estranheza da lógica textual do bloco literário dos vv. 27-38. De fato, quando os discípulos entram em cena, a samaritana deixa o cântaro, desaparece e vai à cidade anunciar o que se passava entre ela e Jesus. ‘”Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será ele o Messias?’ Eles saíram da cidade e foram ter com Jesus” (vv. 29-30).

Logicamente, a narrativa pressupõe que os samaritanos deviam entrar em contato com Jesus, tanto mais que o aoristo exèlthon (“saíram”) é seguido do imperfeito èrgonto (“foram ter com ele”). Mas a verdade é que quem entra em cena são os discípulos, seguindo-se um diálogo de Jesus com eles e, depois, um monólogo de Jesus dirigido aos discípulos. Os samaritanos só aparecem depois deste diálogo e monólogo. Trata-se dum “intermezzo” literário que reforça o drama cristológico, presente em muitos textos do quarto evangelho.

O corte do diálogo entre a samaritana e Jesus é devido ao fato da mesma já ter sido catequizada por Jesus e se ver obrigada a levar a sua nova catequese aos habitantes de Sicar. Estamos perante um ato de missionação. Nunca mais aparece a samaritana a dialogar com Jesus, mas apenas com os samaritanos. Ela desaparece da cena para dar lugar à missão maior de Jesus com os samaritanos. O mesmo vamos encontrar, mais tarde, com Maria Madalena.

A mesma falta de lógica acontece com os discípulos. Eles pedem a Jesus que coma, mas ele recusa respondendo: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (v. 34). Termina aqui o diálogo para, logo a seguir, depararmos com um monólogo de Jesus deveras misterioso:”Não dizeis vós: ‘Mais quatro meses e vem a ceifa’? Pois eu digo-vos: Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa. Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe o fruto em ordem à vida eterna, de modo que se alegram ao mesmo tempo aquele que semeia e o que ceifa. Nisto, porém, é verdadeiro o ditado: ‘um é o que semeia e outro o que ceifa’. Porque eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga” (vv. 35-38). Qual é a lógica entre o v. 34 e os vv. 35-38?

Partindo do princípio de que Jesus é o enviado do Pai para realizar a sua obra, — o que ele, realmente, está a fazer -, os discípulos aparecem como enviados de Jesus para continuarem a realizar a mesma obra. O centro teológico reside no fato de Jesus ser o enviado do Pai (cf. 5,23-24.30.37; 6, 38-39.44; 7,16.18.28. 33; 9,4; 12,44-45.49; 13,20; 14,24; 15,21; 16,5) para realizar a sua obra. No v. 34 aparece o verbo teleiôsô no futuro (“levar ao fim a obra do Pai”) que abrange a obra presente de Jesus e a futura hora dos discípulos. Por isso, no v. 38 Jesus diz: “Porque eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes…”. Jesus é o “enviado” do Pai que realiza, e os discípulos os “enviados” de Jesus, que não realizam. Estamos diante dum paradoxo estranho que tem a solução se percebermos que a obra do Pai, que Jesus realiza, só pode terminar na Cruz e morte.

Jesus começa por apresentar um provérbio popular: “Não dizeis vós: ‘Mais quatro meses e vem a ceifa’? (v. 35). Devia ser um provérbio muito usual na cultura agrária do tempo, consoante a distância entre a sementeira, a ceifa e a colheita. Mas Jesus contradiz o provérbio ao afirmar logo a seguir: “Pois eu digo-vos: Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa. Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe o fruto em ordem à vida eterna, de modo que se alegram ao mesmo tempo aquele que semeia e o que ceifa” (vv. 35b-36). Jesus encurtou o tempo da ceifa pela escatologia realizada, típica do quarto evangelho. No contexto maior da narrativa do sinal com a samaritana estas palavras só podem significar que a “colheita samaritana”, que se devia realizar mais tarde, já aconteceu com a ação de Jesus. A repetição de Jesus acerca da mesma realidade, mas com outras palavras: “Eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga” (v. 38) acentua ainda mais o seu pensamento.

Sem dúvida que a narrativa arranca da missão da comunidade joanica junto dos samaritanos, a qual, é sabido, teve muito sucesso. Semelhante sucesso, de maneira analéptica, é posta, pelo autor, na pessoa de Jesus e não na dos discípulos. Os discípulos nada mais fizeram do que colher o que já fora semeado. Trata-se da primeira missão cristã junto de pagãos, razão porque o autor lhe concede um significado muito especial.

Ao longo da narrativa, Jesus é incompreendido pela samaritana e pelos discípulos, o que significa que a missão dos cristãos joanicos junto dos samaritanos nem sempre foi fácil, mas, diante da colheita final, o resultado é mais do que evidente: Jesus e os discípulos recebem o salário e recolhem o fruto da “vida eterna”. Todos os verbos se encontram num presente de realização escatológica.

O paradoxo do v.38, tão discutido (“outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga”), fica esclarecido se repararmos no verbo “cansar” do v. 6: “Então Jesus, cansado da caminhada…”. O enviado do Pai veio consumar a sua obra, e ela está à vista: “Levantai os olhos e vede os campos já doirados para a ceifa” (v. 35). Foi Jesus que tudo iniciou e preparou. Também é possível que o plural “outros se cansaram a trabalhar..!’ tenha em vista igualmente João Batista e demais discípulos que baptizavam naquela região (v. 2). Deste modo, a narrativa descreve possíveis tensões, dentro da comunidade joanica, naquela região, acerca da primazia de quem começou com a missão — quem foram os primeiros semeadores e os que mais trabalharam. Não há motivo para discriminações ou glórias vãs porque tudo começa com o enviado do Pai que, por sua vez, envia os seus próprios discípulos a fim de que a obra a realizar seja completa e a “vida eterna da alegria” já esteja presente: “Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe o fruto em ordem à vida eterna, de modo que se alegram ao mesmo tempo aquele que semeia e o que ceifa” (v. 36)1.


NOTAS


  1. Cf. Robinson J. A.T.,”The ‘Others’ of John 4,38.” StEv 1 (1958) 510-515; SegaUa,G” Volontà di Dio e dell’Uomo in Giovanni (Vangelo e Lettere). SrivBib 6. (Paideia, Brescia 1974); Okure,T., The Johannine Approach to Mission: A Contextual Study ofjohn 4, 1-42. WUNT 2a série 32 0. C. B. Mohr, Tubingen 1988).