Agostinho: Verbo

Que minha alma te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não se pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham para o não-ser, e dilaceram a alma com desejos pestilentos, e ela quer existir e gosta de descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas não são estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da carne? Ou quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da carne, por ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi criado, mas não o é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado, até o fim que lhes foi designado, porque em teu VERBO, que as criou, ouvem estas palavras: “Daqui até ali”. Confissões IV, X

Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de tua vaidade. Ouve também : o próprio VERBO clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro? — diz o VERBO de Deus — Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já cansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável”. Confissões IV, XI

Mas não conheceram o caminho, o teu VERBO, por quem fizeste as coisas que numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação, e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho, por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes que estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato se obscureceu. Confissões V, III

Se respondessem que te podia ser nociva em algo, então serias violável e corruptível. Se dissessem que não te podia prejudicar nada, não haveria razão para luta. Luta essa em que uma parte de ti mesmo, um de teus membros, produto de tua própria substância, se misturava às forças adversas, a naturezas não criadas por ti. Assim se corromperia, degradando-se a ponto de mudar sua felicidade em miséria e de necessitar de auxílio para se libertar e purificar. E essa parte de ti seria a alma que teu VERBO devia salvar da escravidão, ele que é livre de impurezas, ele que é imaculado da corrupção, ele que é intacto sem ser corruptível, sendo feito de uma só e mesma substância. Confissões VII, II

Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho da humildade, por se ter feito carne teu VERBO, e ter habitado entre os homens, me fizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. Confissões VII, IX

Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o VERBO, e o VERBO estava com Deus, e o VERBO era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o VERBO, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX

Também neles li que o VERBO, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem da vontade do varão, mas de Deus. Mas que o VERBO se fez carne, e habitou entre nós, isso não o li naqueles livros. Confissões VII, IX

Buscava um meio que me der força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o VERBO se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância. Confissões VII, XVIII

Não tendo humildade, eu não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava o que nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu VERBO, verdade eterna, dominando as criaturas mais sublimes da tua criação, levanta a si as que se lhe sujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humilde morada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que deseja sujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que, confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem, vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnica de carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte. Confissões VII, XVIII

Mas nem suspeitava o mistério que se encerra nestas palavras: o VERBO se fez carne. Confissões VII, XIX

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu VERBO senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu VERBO, que eu já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o corpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real, que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

De minha parte, confesso que só aprendi mais tarde a diferença de interpretação das palavras “o VERBO se fez carne”, entre a verdade católica e o erro do Fotino (bispo de Sírmio, afirmava que o VERBO não havia sido Filho de Deus até encarnar-se nas entranhas da Virgem Maria, negando toda união substancial entre a natureza humana e o VERBO divino). A reprovação dos hereges põe às claras o pensamento da tua Igreja e o que esta considera como doutrina sã. Confissões VII, XIX

Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si próprios por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o puder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside a ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eu já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua criação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu VERBO, Deus em ti, e contigo um só Deus, por quem criaste todas as coisas. Confissões VIII, I

Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava verdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhe disse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim por Vitorino, outrora retórico em Roma — e do qual ouvira dizer que morrera cristão — ele me felicitou por não ter caído nas obras de outros filósofos, falazes e enganosas, segundo os elementos deste mundo, mas apenas estes, que insinuam por mil modos a Deus e a seu VERBO. Confissões VIII, II

Mas depois que hauriu forças nas leituras e orações, temeu ser renegado por Cristo diante de seus anjos, se tivesse medo de o confessar diante dos homens. Sentiu-se réu de um grande crime por se envergonhar dos mistérios de humildade de teu VERBO, não se envergonhando do culto sacrílego de demônios soberbos, que ele próprio aceitara como soberbo imitador; envergonhou-se da vaidade, e enrubesceu diante da verdade. De repente, disse a Simpliciano, segundo este mesmo contava: “Vamos à Igreja; quero me tornar cristão”. Simpliciano, não cabendo em si de alegria, foi com ele. Recebidos os primeiros sacramentos da religião, não muito depois, deu seu nome para receber o batismo que renegara, causando admiração em Roma e alegria na Igreja. Viram-no os soberbos, e se iraram; rangiam os dentes e se consumiam de raiva. Confissões VIII, II

Mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depois acrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos ensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de palradores a abandonar teu VERBO, que torna eloquentes as línguas dos meninos. Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se consagrar por ti. Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de uma vontade estranha, mas por minha férrea vontade. Confissões VIII, V

E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio de nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu VERBO, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas! E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra, da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o que é fugaz — uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente — se, dito isto, todas se calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por si mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de um anjo, nem pelo ruído do realidade, e supondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e unicamente esta arrebatasse a alma de seu contemplador, e a absorvesse e abismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este momento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar em gozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados? Confissões IX, X

Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu VERBO o tivesse proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis que eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo seria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não te fosse conhecida. Confissões X, IV

O verdadeiro mediador que tua insondável misericórdia enviou e revelou aos homens, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. Apareceu como intermediário entre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os homens e justo como Deus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une a Deus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela em sua paixão passada. De fato, só é mediador enquanto homem; enquanto VERBO não é intermediário, por ser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único. Confissões X, XLIII

Como nos amaste, Pai bondoso! Não poupando teu Filho único, o entregaste por nós pecadores! Oh! Como nos amaste! Foi por amor a nós que teu Filho, que não considerava rapina o ser igual a ti, submeteu-se até a morte de cruz. Ele era o único livre entre os mortos, tendo o poder de dar sua vida e de novamente retomá-la. Por nós se fez diante de ti vencedor e vítima; por nós, diante de ti, se fez sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque ele era o sacrifício; de escravos, fez de nós teus filhos; nascidos de ti, se fez nosso escravo. Com razão ponho nele a firme esperança que curarás todas as minhas enfermidades por intermédio dele, que está sentado à tua direita e intercede por nós junto de ti. De outro modo desesperaria, pois são muitos e grandes meus males; porém mais poderoso é o poder do teu remédio. Poderíamos pensar que teu VERBO estava muito longe para se unir ao homem, e desesperar de nós, se ele não se tivesse feito carne, habitando entre nós. Confissões X, XLIII

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu VERBO, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

Mas, como falaste? Porventura do mesmo modo como aquela voz que, saindo da nuvem, disse: Este é meu Filho bem-amado? — Essa voz fez-se ouvir, e passou; teve começo e fim; suas sílabas ressoaram, depois passaram, em sucessão ordenada até a última, que vem depois de todas as outras — e depois foi o silêncio. Por onde se vê claramente que essa voz foi gerada por órgão temporal de uma criatura a serviço de tua vontade eterna. E essas palavras, pronunciadas no tempo, foram comunicadas pelo ouvido material à inteligência, cujo ouvido interior está atento à tua palavra eterna. E a razão comparou essas palavras, proferidas no tempo, com o silêncio de teu VERBO eterno, e disse: “É diferente, muito diferente. Tais palavras estão bem abaixo de mim, nem sequer existem, pois fogem e passam; mas o VERBO de Deus permanece sobre mim eternamente”. Confissões XI, VI

É assim que nos convidas a compreender o VERBO, que é Deus junto de ti, que também és Deus, VERBO pronunciado eternamente e pelo qual tudo é pronunciado eternamente. O que é dito, não é uma sequência de palavras, ou uma palavra que é seguida por outra, como que a concluir uma frase; mas tudo é dito simultânea e eternamente. Do contrário, já haveria tempo e mudança, e não a verdadeira eternidade nem a verdadeira imortalidade. Confissões XI, VII

Isto eu o sei, meu Deus, e por isso te dou graças. Eu o sei, e eu to confesso, Senhor; e também o sabe todo aquele que não é ingrato à infalível verdade. Sabemos, Senhor, sabemos que não ser mais depois de ter existido, ou passar a ser quando ainda não se existia é o morrer e o nascer. Mas em teu VERBO, por ser verdadeiramente imortal e eterno, nada desaparece nem tem sucessão. Com o teu VERBO que é co-eterno, enuncias eternamente e a um só tempo tudo o que dizes. E o que se realiza é o que dizes que se faça. Não é de outro modo, senão pelo VERBO, que crias. Todavia os seres criados por tua palavra não chegam à existência simultaneamente, desde toda a eternidade. Confissões XI, VII

Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo eu o compreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que tem começo e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nem fim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu VERBO, que é o princípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana, e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos homens, para que cressem nele, e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna Verdade, onde um bom e único mestre instrui todos os seus discípulos. Confissões XI, VIII

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu VERBO, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu VERBO, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu VERBO, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

Um terceiro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu VERBO, que lhe é co-eterno, a matéria informe das criaturas espirituais e corporais. Outro afirma: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos o céu e a terra, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bem distintas e determinadas. Confissões XII, XX

Eis que eu, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhas confissões; peço à tua misericórdia que me permita a realização desse desejo, e declaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis, pelo teu VERBO imutável. Confissões XII, XXIV

É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem, para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti, continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o céu e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e corpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Que méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam informes em teu VERBO, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade, comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmo informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido? Confissões XIII, II

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu VERBO não fosse conduzida ao mesmo VERBO que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável em sua sabedoria. Confissões XIII, II

Minha , que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu VERBO é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos trevas”. — Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas. Confissões XIII, XIV

Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do VERBO da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII

Por certo que não. Há coisas cuja ideia é completa, acabada, que não se multiplicam no curso das gerações, tais como as luzes da sabedoria e da ciência. Mas esses seres são o objeto de operações materiais múltiplas e variadas e, crescendo umas de outras, se multiplicam sob tua benção, meu Deus. É assim que refreias a impertinência de nossos sentidos, dando a uma verdade única o meio de se exprimir de varias maneiras, por movimentos do corpo. Eis que produziram tuas águas, pela onipotência de teu VERBO. Tudo isto se originou das necessidades de povos afastados de tua verdade eterna, por meio do teu Evangelho. De fato foram essas águas que fizeram brotar essas coisas, e sua amargura estagnante foi causa de que teu VERBO as criasse. Confissões XIII, XX

E assim não foi a profundeza do mar, mas a terra livre do amargor das águas que, impelida pelo teu VERBO gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e os pássaros, mas a alma viva. Confissões XIII, XXI

A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu VERBO. Envia-lhe, pois, teu VERBO, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu. A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a terra árida. Confissões XIII, XXI

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu VERBO, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu VERBO, que permanece em mim, eterno como eu. Assim, o que vês por meu Espírito, sou eu quem o vê; o que dizes por meu Espírito, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo no tempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo.” Confissões XIII, XXIX

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu VERBO, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV