Agostinho: abismo

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso ABISMO a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. Confissões I, XVIII

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não via o ABISMO pois não via o ABISMO de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu até desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. Confissões I, XIX

Mas, a quem conto eu estes fatos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tua presença conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que estas páginas chegassem às mãos de poucos. E para que então? Para que eu, e quem me ler, pensemos na profundeza do ABISMO de onde temos de clamar por ti? E que há de mais próximo a teus ouvidos que o coração contrito e a vida que procede da ? Confissões II, III

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do ABISMO. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV

Eis aqui o servo que, fugindo do seu senhor, seguiu uma sombra. Ó podridão! Ó monstro da vida e ABISMO da morte! Como pôde agradar-me o ilícito, e não por outro motivo, senão porque era ilícito? Confissões II, VI

Ai de mim, por que degraus fui descendo até a profundidade do ABISMO, exaurido e devorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus — a quem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda não te conhecia — tudo por buscar-te, não com a inteligência — com a qual quiseste que eu fosse superior aos animais — mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim, mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo, e mais elevado do que o que em mim existe de mais alto. Confissões III, VI

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste ABISMO de trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a morte de minha alma com a e o espírito que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro? Confissões III, XI

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me revolver naquele ABISMO de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto mais quanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva, casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança, porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar por mim em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eram aceitas a teus olhos, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquela escuridão. Confissões III, XI

De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz ao ABISMO? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele quem for, se é homem? Confissões IV, I

Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o ABISMO de teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de que seu espírito reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinal que recebera sobre o corpo inconsciente. Confissões IV, IV

Então eu ignorava tais coisas — e por isso amava belezas terrenas. Caminhava para o ABISMO, dizendo a meus amigos: “Será que amamos algo que não é belo? E que é o belo? E que é a beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas que amamos? Pois, com certeza, se nelas não houvesse certa graça e formosura, não nos atrairiam. Confissões IV, XIII

Grande ABISMO é o homem, cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perde um sem que tu o saibas; e, contudo, mais fáceis de contar são seus cabelos que suas paixões e os movimentos de seu coração. Confissões IV, XIV

Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Buscava eu aplicá-los — ó doce verdade — à tua melodia interior, quando meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba, caía no ABISMO. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados. Confissões IV, XV

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não veem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam voo como aves do céu; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do ABISMO; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal. Confissões V, III

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o ABISMO em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III

Contudo, o ABISMO dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse ABISMO na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava. Confissões VI, VII

Louvor e glória a ti, ó fonte das misericórdias! Eu me tornava cada vez mais miserável, e tu te aproximavas cada vez mais de mim. já estava junto de mim tua destra, para me arrancar do lodo dos meus vícios, e em purificar, e eu não o sabia. Mas nada havia que me fizesse sair do profundo ABISMO dos prazeres carnais, a não ser o medo da morte e de teu juízo futuro, que jamais saiu do meu peito, através das várias doutrinas que segui. Confissões VI, XVI

Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desse ABISMO os olhos do meu espírito, nele me precipitava de novo, e tentando reiteradamente fugir dele, sempre voltava a recair. Confissões VII, III

Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavam até aquele ABISMO de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a tese que tu és sujeito ao mal a considerar o homem capaz de o cometer. Confissões VII, III

O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar coisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da identidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não o seriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo do Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos, fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das almas, do fundo do ABISMO de teu justo juízo. E que o homem não se atreva a dizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, não o diga, porque é um simples homem. Confissões VII, VI

Vamos pois, Senhor, mãos à obra! Desperta-nos, chama-nos, inflama-nos, arrebata-nos; derrama tuas doçuras, encanta-nos: amemos, corramos! Não é verdade que muitos voltam a ti, saindo de um ABISMO de cegueira mais profundo que o de Vitorino, e se aproximam de ti, e são iluminados pela tua luz, junto da qual recebem o poder de se fazerem teus filhos? Confissões VIII, IV

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o ABISMO de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I

Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo e misterioso ABISMO foi ele chamado num instante, para que eu inclinasse a cerviz a teu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção? Confissões IX, I

E, para ti, Senhor, que conheces o ABISMO da consciência humana, que poderia haver de oculto em mim, ainda que não to quisesse confessar? Confissões X, II

Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o que te devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos os que te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me, Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coração possam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não me engane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e tem compaixão, Senhor meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos, mas também luz dos que veem e força dos fortes; presta atenção à minha alma e ouve-a clamar do fundo do ABISMO. E se teus ouvidos estão ausentes do ABISMO, para onde iremos, por quem clamaremos? Confissões XI, II

Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo ABISMO acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o ABISMO”. — Mas que são trevas, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o ABISMO porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som? Confissões XII, III

Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua ideia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o ABISMO? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Confissões XII, IV

Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um ABISMO sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o ABISMO — isto é: mais profundas que o ABISMO. Esse ABISMO das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII

Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o ABISMO. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima. Confissões XII, VIII

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse ABISMO, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o ABISMO. Por essas palavras, a Escritura sugere a ideia de algo informe, para ensinar aos poucos aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo céu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. Confissões XII, XII

“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo. Confissões XII, XIII

Quanto a esta terra invisível e informe, a este ABISMO de trevas, com que, durante seis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis que são conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender com isso, sem erro, essa matéria informe de que falei. Confissões XII, XVII

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra — em outras palavras, a criação invisível e visível — mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinando sobre o ABISMO. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas reinando sobre o ABISMO, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. Confissões XII, XVII

A verdade é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informe que a terra e o ABISMO. A verdade é que não apenas tudo o que foi criado e formado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autor de tudo que existe. A verdade é que tudo o que é formado a partir do informe, primeiro é informe, e depois recebe forma. Confissões XII, XIX

O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO” — isto é, essa massa corpórea, que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisas corpóreas. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO” — isto é, esse conjunto que chamamos de terra e céu era a matéria ainda informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a terra corpóreos, com tudo o que nossos sentidos físicos neles percebem. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO” — isto é, esse conjunto que chamamos de céu e de terra era a matéria ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, o céu do céu, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material, ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO” — isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de terra, porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica, ABISMO de trevas, é dela, que Deus criou o céu e a terra, isto é, a criatura espiritual e a corporal. Confissões XII, XXI

E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o ABISMO” — isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o céu e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. Confissões XII, XXI

Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que está acima de dúvidas para uma sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são co-eternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação , por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que a Escritura chama de terra invisível e desordenada e de ABISMO tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é co-eterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada? Confissões XII, XXII

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao ABISMO, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável em sua sabedoria. Confissões XIII, II

Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luz que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a um ABISMO de trevas. Confissões XIII, II

Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do ABISMO das trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz, se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior. Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o ABISMO, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

A quem e como falarei do peso da concupiscência, que nos arrasta para um ABISMO profundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu Espírito, que pairava sobre as águas? Confissões XIII, VII

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o ABISMO que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que ABISMO de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Contudo, somos luz apenas pela , e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O ABISMO clama pelo ABISMO, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o ABISMO inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito…” Confissões XIII, XIII

E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” — Mas não é mais sua voz que fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do céu por intermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para que a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo do esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porque está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não com sua própria voz, que ele chama pelo outro ABISMO, objeto de seu zelo e de seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos tal como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o teu Deus? Confissões XIII, XIII

Também eu pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” — Respiro um pouco de ti quando minha alma se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltação e de louvor, verdadeiro canto de festa. — Mas ela ainda está triste, porque torna a cair e a ser ABISMO, ou melhor, porque sente que ainda é ABISMO. Confissões XIII, XIV

Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade, quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso à , esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que teus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do ABISMO; e que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação. E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, e vossa alma viverá, e a terra dará nascimento a uma alma viva. Não vos conformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma vive evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte. Confissões XIII, XXI

Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águas profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para alimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações, exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas fisicamente, por causa do ABISMO do mundo e da cegueira da carne que, impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, embora tenham suas origens na água. Confissões XIII, XXIII