Agostinho: alma

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que o embriagasses, para que eu me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo, meu único bem! Que és para mim? Tem piedade de mim, para que eu possa falar. E que sou eu para ti, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contra mim, ameaçando-me com terríveis castigos? Acaso é pequeno o castigo de não te amar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericórdias, meu Senhor e meu Deus, que és para mim? Dize a minha ALMA: Eu sou a tua salvação. Que eu ouça e siga essa voz e te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa vê-lo para não morrer eternamente. Confissões I, V

Estreita é a casa de minha ALMA para que venhas até ela: que seja por ti dilatada. Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois eu o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitos contra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Não quero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me a mim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniquidade. Não quero contender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniquidades, Senhor, quem, Senhor, subsistirá? Confissões I, V

Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecer meus desejos a quem os podia satisfazer, embora realmente não o pudessem, porque meus desejos estavam dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiam entrar em minha ALMA. assim, agitava os braços e dava gritos e sinais semelhantes a meus desejos, os poucos que podia e como podia, embora não fossem de fato sua expressão. Mas, se não era atendido, ou porque não me entendessem, ou porque o que desejava me fosse prejudicial, eu me indignava com os adultos, porque não me obedeciam, e sendo livres, por não quererem me servir; e deles me vingava chorando. Assim são as crianças que pude observar; e que eu também fosse assim, mais me ensinaram elas, sem o saber, do que os que me criaram, sabendo-o. Confissões I, VI

Daqui se segue que o que é inocente nas crianças é a debilidade dos membros infantis, e não a ALMA. Confissões I, VII

Que esta fosse sua intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são como uma linguagem universal, feita com a expressão rosto, a atitude dos membros e o tom da voz, que indicam os afetos da ALMA para pedir, reter, rejeitar ou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em várias frases e ouvidas repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e, domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades por meio delas. Confissões I, VIII

Porventura, Senhor, haverá alguma ALMA tão grande, unida a ti com tão ardente afeto, pois isto também pode ser produzido pela estultice — repito, uma ALMA que alcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio — para fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do mundo? Haverá uma ALMA que assim os despreze — rindo-se dos que têm deles tanto horror — como se riam nossos pais dos tormentos que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles. Confissões I, IX

Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção a saúde da minha ALMA, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua. Confissões I, XI

Assim, convertias em bem o mal que eles me faziam, e dos meus pecados, me davas justa retribuição, porque é teu desígnio, e assim acontece, que toda ALMA desordenada seja castigo de si mesma. Confissões I, XII

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha ALMA, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII

Mas agora, meu Deus, grite em minha ALMA tua verdade, e diga: Não é assim, não é assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois eu preferiria esquecer todas as aventuras de Eneias, e outras histórias semelhantes, do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas às portas; porém, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro. Confissões I, XIII

Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha ALMA, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é verdade que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto. Confissões I, XIII

Ouvi, Senhor, minha oração, para que não desfaleça minha ALMA sob a tua lei, nem me canse em confessar tuas misericórdias, com as quais me arrancaste de meus perversos caminhos; que tua doçura sobrepuje todas as doçuras que segui, e assim te ame fortissimamente, e abrace tua mão com toda minha ALMA, e me livres de toda a tentação até o fim dos meus dias. Confissões I, XV

Permite-me, Senhor, que diga também algo de meu talento, dádiva tua, e dos desatinos em que o empregava. Propunha-se-me como desafio — coisa mui preocupante para minha ALMA, tanto pelo louvor ou descrédito, como por medo dos açoites — que repetisse as palavras de Juno, irada e ressentida por não podem “afastar da Itália ao rei dos troianos”, embora jamais tenha sabido que tivessem sido pronunciadas por Juno. Mas obrigavam-nos a errar seguindo os passos das ficções poéticas, e a repetir em prosa o que o poeta havia dito em verso. Era mais elogiado aquele que, conforme a dignidade da pessoa representada, soubesse pintar com mais vivacidade e semelhança, e revestir com palavras mais apropriadas seus afetos de ira ou de dor. Confissões I, XVII

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a ALMA que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. Confissões I, XVIII

Quero recordar minhas torpezas passadas e as degradações carnais de minha ALMA, não porque as ame, mas por te amar, ó meu Deus. É por amor de teu amor que o faço, percorrendo com a memória amargurada, aqueles meus perversos caminhos, para que tu me sejas doce, doçura sem engano, ditosa e eterna doçura. Resgata-me da dispersão em que me dissipei quando, afastando-me de tua unidade, me desvaneci em muitas coisas. Confissões II, I

E que me deleitava, senão amar e ser amada? Mas eu não era moderado, indo de ALMA para ALMA de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosa concupiscência de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como que uma névoa que obscurecia e ofuscava meu coração, a ponto de não discernir a serena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam; arrastavam minha fraca idade pelo declive íngreme de meus apetites, afogando-me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre mim, e eu não o sabia. Ensurdeci com o ruído da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais me afastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava e fervia em minha devassidão, e tu te calavas — ó alegria que tão tarde encontrei! — tu te calavas então, e eu ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrás de estéreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansaço. Confissões II, II

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha ALMA, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV

Que amei, então, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Não eras belo, já que eras furto. Mas, por acaso és algo para que eu fale contigo? Belas eram as pêras que roubamos, por serem criaturas tuas, ó formosíssimo Criador de todas as coisas, bom Deus, Deus sumo, meu bem e meu verdadeiro bem; belas eram aquelas pêras! Porém, não eram elas que apeteciam minha ALMA depravada. Eu as tinha em abundância, e melhores. Colhi-as da árvore só para roubar; tanto que, tão logo colhidas, joguei-as fora, saboreando nelas apenas a iniquidade, com que me regozijava. Se alguma delas entrou em minha boca, somente o crime é que lhe deu sabor. Confissões II, VI

Assim peca a ALMA, quando se aparta e busca fora de ti o que não pode achar puro e ilibado senão quando se volta novamente para ti. Perversamente te imitam todos os que se afastam de ti e se levantam contra ti. Porém, mesmo imitando-te, mostram que és o criador de toda criatura e que, portanto, não existe lugar onde alguém se possa afastar de ti de modo absoluto. Confissões II, VI

Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha ALMA sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teu nome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça e misericórdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o mal que não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, eu que amei gratuitamente o erro? Confissões II, VII

Mas, que é esta, na verdade? E quem mo poderá ensinar, senão o que ilumina meu coração e rasga minhas sombras? De onde vem à minha ALMA a ideia destas indagações, desta discussão e considerações? Se eu então amasse as pêras que roubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia tê-las roubado sozinho, se isso bastasse. Poderia fazer a iniquidade pela qual chegaria meu deleite sem necessidade de excitar o prurido da minha cobiça com a conivência de almas cúmplices. Confissões II, VIII

E que sentimento era aquele de minha ALMA? certamente, assaz torpe e eu um desgraçado por alimentá-lo. Mas, que era na realidade? E quem há que conheça os pecados? Era como um riso, como que a fazer-nos cócegas no coração, provocado por ver que enganávamos aos que não suspeitavam de nós tais coisas, e porque sabíamos que haviam de detestá-las. Confissões II, IX

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se ri facilmente quando está só? Ninguém o faz, é verdade; porém, também é verdade que às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja, quando se oferece aos sentidos ou à ALMA algo extraordinariamente ridículo. Porque a verdade é que eu sozinho nunca teria feito aquilo; não, eu sozinho jamais faria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrança daquele estado de ALMA, e repito que eu sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não me deleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado de modo algum, nem eu o teria feito. Confissões II, IX

Ó amizade inimiga! Sedução impenetrável da ALMA, vontade de fazer o mal por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingança! Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; “Vamos! Façamos!”. Confissões II, IX

E por isso minha ALMA não estava bem e, ferida, voltava-se para fora de si, ávida de se roçar miseravelmente às coisas sensíveis; se porém não tivessem ALMA, não seriam certamente amadas. Confissões III, I

Deve-se, pois, repelir a compaixão? De modo algum. Convém, pois, que alguma vez se amem as dores. Mas evita nisso a impureza, ó minha ALMA, sob proteção de Deus, do Deus de nossos pais, louvado e exaltado por todos os séculos; cuidado com a impureza. Porque nem agora me fecho a tal compaixão. Mas naquele tempo comprazia-me no teatro com os amantes, quando eles se gozavam em suas torpezas — embora estas não passassem de encenações. E quando um deles se perdia, eu quase piedosamente me contristava, e sentia prazer numa e noutra coisa. Confissões III, II

Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha ALMA, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Oh! Quão longe estavas daquelas minhas quimeras, fantasmas de corpos que jamais existiram em comparação, são mais reais as imagens dos corpos existentes; e, mais reais ainda essas imagens, esses mesmos corpos, os quais, todavia, não são tu! Mas também não és a ALMA que dá vida aos corpos — mas é a vida das almas, a vida das vidas, que vives, imutável, por ti mesma; a vida de minha ALMA. Confissões III, VI

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu tal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a ALMA não ia além de fantasmas? Confissões III, VII

Acaso será em alguma parte e momento injusto amar a Deus de todo o coração, com toda a ALMA e com todo o entendimento, e amar ao próximo como a nós mesmos? Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os do sodomitas, hão de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois, mesmo que todos os cometessem, não seriam menos réus de crime diante da lei divina, que não fez os homens para usar tão torpemente de si; de fato viola-se a união que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele é autor, se mancha com a depravação das paixões. Confissões III, VIII

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha ALMA deste abismo de trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a morte de minha ALMA com a e o espírito que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro? Confissões III, XI

Não é pois verdade que a ALMA que suspira por semelhantes fábulas não se aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo me sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos erros, objeto de seu riso e escárnio? Confissões IV, II

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha ALMA, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III

Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha ALMA? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e frequente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele — que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”. Confissões IV, III

Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência se revelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso está espalhada por toda a natureza. “Se alguém — dizia ele — consultando as vezes as páginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensar em coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assunto que o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a ALMA humana, movida por instinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte, mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente”. Confissões IV, III

Esse homem já errava em espírito comigo, e minha ALMA não podia viver sem ele. Confissões IV, IV

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-me mesmo num grande problema. Perguntava à minha ALMA porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” — minha ALMA não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração. Confissões IV, IV

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda ALMA prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades — se não é ficção — que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro. Confissões IV, VI

Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam. Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eu continuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou ao amigo “metade da sua ALMA”. E eu senti que minha ALMA e a sua não eram mais que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não morresse de todo aquele a quem eu tanto amara. Confissões IV, VI

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a ALMA em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha ALMA deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII

Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha ALMA, logo deslizava como quem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. Eu era para mim mesmo uma infeliz morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração, fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo? Confissões IV, VII

O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes, causa na ALMA efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e passando deixava em mim novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco restituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor. Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores. Confissões IV, VIII

Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de meu ser, senão porque derramei minha ALMA sobre a areia, amando a um mortal como se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as consolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava tem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro corrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava; fábula esta que não morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos. Confissões IV, VIII

Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha ALMA, como conversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil outros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendo de muitas uma só. Confissões IV, VIII

Ó Deus das virtudes! Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos! Porque, para onde quer que se volte a ALMA humana, onde quer que se estabeleça fora de ti, sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de ti e fora de si mesma; e todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elas nascem e morrem; e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição e, uma vez perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nem tudo envelheça, tudo perece. Logo, quando os seres nascem e se esforçam para existir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para deixar de existir. Esta é a sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são partes de coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-se umas às outras, formam o conjunto de que são partes. Confissões IV, X

Que minha ALMA te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não se pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham para o não-ser, e dilaceram a ALMA com desejos pestilentos, e ela quer existir e gosta de descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas não são estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da carne? Ou quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da carne, por ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi criado, mas não o é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado, até o fim que lhes foi designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estas palavras: “Daqui até ali”. Confissões IV, X

Não seja vã, ó minha ALMA, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de tua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro? — diz o Verbo de Deus — Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, ALMA minha, já cansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável”. Confissões IV, XI

Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr seu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas obras, com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com sua ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista, foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda está conosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou. Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por ele, e no mundo estava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha ALMA, a ele que a cura e contra quem pecou. Confissões IV, XII

Dize-lhes isto, minha ALMA, para que chorem neste vale de lágrimas, e assim os arrebates contigo para Deus, pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas de caridade, é o espírito divino que te inspira. Confissões IV, XII

E eu observava e via que num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso e belo, e outra o que lhe era conveniente, sal aptidão de se ajustar de maneira perfeita a alguma coisa como, por exemplo, a parte do corpo em relação ao conjunto, o calçado em relação ao pé, e outras similares. Esta consideração brotou em minha ALMA do íntimo de meu coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e o conveniente, creio que dois ou três — tu o sabes, Senhor — pois já me esqueci, e não os tenho mais porque se me extraviaram não sei como. Confissões IV, XIII

Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma ALMA gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora também eu seja homem? Confissões IV, XIV

Eis onde jaz enferma a ALMA que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É levada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam! E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a verdade, apesar de estar ela à nossa vista. Confissões IV, XIV

Mas não atinava com a chave de tuas artes em tão grandes obras, ó Deus onipotente, único criador de maravilhas. Vagava minha ALMA pelas formas corpóreas, e definia o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada por sua acomodação a outra coisa, e apoiava essa distinção com exemplos tomados dos corpos. Confissões IV, XV

Daqui passei à natureza da ALMA, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na ALMA, julgava que tampouco seria possível ver minha ALMA. Confissões IV, XV

Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a ALMA racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como ALMA sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável. Confissões IV, XV

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da ALMA, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a ALMA racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a ALMA, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro. Confissões IV, XV

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles proclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige a ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se possa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Ao contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar; não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha ALMA te louve para que te ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teus contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se em tua criação, nossa ALMA se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza. Confissões V, I

Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, com grande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamente sabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertencia à classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, que pretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos, tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Não ignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-se temerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada. Por isso mesmo cresceu aos meus olhos, por ser a modéstia de uma ALMA que se conhece muito mais bela que o saber que eu desejava; e em todas as questões mais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo. Confissões V, VII

De fato, não achando na ocasião caminho melhor que aquele por onde cegamente me lançara, resolvi continuar provisoriamente na mesma, até que tivesse a fortuna de encontrar algo melhor e preferível. Foi assim que aquele Fausto, que havia sido para muitos laço de morte, começava involuntária e inconscientemente a desfazer o laço que me enredara. É que tuas mãos, meu Deus, no segredo de tua providência, não abandonavam minha ALMA; e minha mãe, dia e noite, não deixava de te oferecer em sacrifício por mim o sangue de seu coração, na forma de suas lágrimas. Confissões V, VII

Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eu mudasse de residência para a saúde de minha ALMA, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade. Confissões V, VIII

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha ALMA, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha ALMA, que disto se não persuadia. Confissões V, IX

Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse ferido as entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamente repetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus de misericórdia, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta e sóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes por dia — de manhã e à tarde — à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-se em vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para que a ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que não te pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação da ALMA de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderias desprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu a assistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência. Confissões V, IX

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha ALMA que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha ALMA para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X

Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de lodo, que rende imundas as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, e desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à ALMA humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade e abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo — confesso — preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor. Confissões V, XII

Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo, com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que se eu então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha ALMA. Mas não podia. Confissões V, XIV

Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado acerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em uma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo, terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha ALMA, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo. Confissões V, XIV

É verdade que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela o olhar de meu espírito, pudesse dirigir-se de algum modo à tua verdade, sempre imutável e indefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, e que depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minha ALMA que, não podendo sarar senão pela , recusava-se a sarar por temor de crer, novamente, em falsidades. Minha ALMA resistia às tuas mãos, ó meu Deus, que preparaste o remédio da , e o derramaste sobre as enfermidades da terra, dando-lhe tanta autoridade e eficácia. Confissões VI, IV

Eu aspirava às honras, às riquezas e ao matrimonio, e tu te rias de mim. E nesses desejos sofria grandes amarguras; e tu me eras tanto mais propício quanto menos consentias que me fosse doçura o que não eras tu. Vê, Senhor, meu coração, tu que quiseste que recordasse estes fatos e os confessasse. Esta ALMA, a quem livraste do visco tenaz da morte, une-se agora a ti. Confissões VI, VI

Como era infeliz! E tu fustigavas o mais dolorido da ferida, para que deixasse tudo, e se convertesse a ti, que estás acima de tudo. Sem ti nada existiria. Ferias minha ALMA para que voltasse para ti, e fosse curada. Confissões VI, VI

Longe de minha ALMA os que dizem: “Importa levar em conta a causa da alegria; o mendigo se alegrava com a embriaguez, e tu com a glória”. Que glória, Senhor? Com a que não está em ti. Porque como aquela não era verdadeira alegria, assim aquela glória não era a verdadeira, antes perturbava mais ainda meu coração. O ébrio, naquela mesma noite, curaria sua embriaguez, enquanto eu já dormia com a minha, e me levantara com ela, e tornaria a dormir e a levantar com ela, e tu sabes quantos dias! Importa, é certo, conhecer os motivos da alegria de cada um, eu o sei, e a alegria da esperança fiel dista infinitamente daquela vaidade. Mas então, havia entre nós outra diferença, pois certamente ele era o mais feliz, não só porque transbordava de alegria, enquanto eu me consumia de cuidados, mas também porque ele comprara o vinho desejando a felicidade dos benfeitores, enquanto eu procurava com mentiras uma vã ostentação. Confissões VI, VI

Já havias dito outrora, e escrito em teus livros: “Corrige o sábio, e ele te amará”. Eu não o repreenderia, mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quer não, de acordo com a justa ordem que conheces, fizeste de meu coração e de minha língua carvões abrasadores, para cauterizar e curar aquela ALMA tão promissora, mas pervertida. Confissões VI, VII

Senhor, cale teus louvores quem não percebe tuas misericórdias, que eu te confesso do mais íntimo de meu ser. Depois de ouvidas minhas palavras, Alípio saiu daquele fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com o torpe prazer, e sacudiu sua ALMA com corajosa temperança, afastando de si todas as imundícies dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou. Confissões VI, VII

Dizia-lhes Alípio: “Mesmo que arrasteis para lá meu corpo, e o retenhais ali, podereis por acaso obrigar minha ALMA e meus olhos a contemplar tais espetáculos? Estarei ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós”. Mas eles, não fazendo caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar se poderia ou não cumprir a palavra. Confissões VI, VIII

Quando chegaram, ocuparam os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro já fervia nas paixões mais selvagens. Alípio, fechando a porta dos olhos, proibiu que sua ALMA se envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado os ouvidos! Porque, em um lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que, vencido pela curiosidade, e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena, fosse o que fosse, abriu os olhos. Foi logo ferido na ALMA mais profundamente do que a ferida física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. Sua queda foi mais miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhe pelos ouvidos, abriram-lhe os olhos, para ferir e abater sua ALMA, mais temerária do que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se apoiar em ti. Logo que viu sangue, bebeu junto a crueldade, e não se afastou do espetáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber, absorvia o furor popular e se deleitava naquela luta criminosa, inebriado de sangrento prazer. Confissões VI, VIII

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitos clientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos, este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio se lhe opôs. À tentativa de corrompê-lo, Alípio reconheceu com o riso. Zombou das ameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade de sua ALMA, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de homem tão poderoso, conhecido por seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar. Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não o fazia abertamente, responsabilizando a Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazer o que desejava, porque, se acedesse — e era verdade — demitir-se-ia imediatamente. Confissões VI, X

“Repartamos o tempo, reservemos algumas horas para a salvação da ALMA nasceu uma grande esperança: a católica não ensina o que eu pensava, e eu a criticava levianamente. Seus doutores têm como crime limitar Deus à figura humana; e eu ainda hesito em bater para que nos sejam reveladas as outras verdades! As horas da manhã eu dedico aos alunos; mas que faço das outras? Por que não as consagro a essa busca?” Confissões VI, XI

“Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me surpreender de repente, em que estado sairei do mundo? E onde aprenderei o que deixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, e se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seria conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é por acaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a cristã, com grande prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do corpo terminasse também a vida da ALMA. Por que hesitar, pois, em abandonar as esperanças do mundo para me consagrar à busca de Deus e da bem-aventurança?” Confissões VI, XI

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um lado para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor. Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim mesmo. Amando a vida feliz, temia buscá-la em sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda no remédio de tua misericórdia, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência fosse obra de nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força. Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus ouvidos com os gemidos de minha ALMA, e com firme lançasse em ti meus cuidados. Confissões VI, XI

Eu argumentava com os exemplos dos que, embora casados, haviam-se dedicado ao estudo da sabedoria, servindo a Deus, e guardando fidelidade e amor aos amigos. Contudo, eu estava longe dessa grandeza de ALMA. Prisioneiro da morbidade da carne, arrastava com prazer mortal minha cadeia, temendo que ela se rompesse e, rejeitando as palavras que bem me aconselhavam, como o ferido repele a mão que lhe desfaz as ataduras. Confissões VI, XII

Ele admirava-se de que eu, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao visco do prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me era impossível levar vida casta. Para esgrimir contra sua admiração, dizia-lhe que havia grande diferença entre sua rápida e furtiva experiência do prazer, de que mal se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de uma ligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimonio, já não causaria admiração se eu não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípio também começou a desejar o matrimonio, não certamente vencido pelo apetite do prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem sem o qual minha vida — que ele tanto apreciava — não me parecia vida, mas tormento. De fato, livre dessa prisão, sua ALMA pasmava de tal servidão, e do espanto passava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesma servidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama o perigo, nele cairá. Confissões VI, XII

Contudo, nada revelaste à minha mãe que, a meu pedido e por seu desejo, te suplicava com forte clamor de coração, todos os dias que lhe desse alguma visão sobre meu futuro matrimonio. Via, sim, algumas coisas vãs e fantásticas, que o espírito humano engendra quando preocupado. Ela me relatava, sem a confiança que costumava dar às visões que lhe enviavas, mas com desprezo. Dizia que distinguia, por um vago discernimento que não podia explicar com palavras, a diferença que havia entre tuas revelações e os sonhos de sua ALMA. Confissões VI, XIII

Mas eu, desgraçado, fui incapaz de imitar aquela mulher. Estava impaciente pelo prazo de dois anos que deveria transcorrer até receber por esposa aquela que pedira em casamento — e porque eu não era amante do matrimonio, mas escravo da sensualidade — procurei pois outra mulher, não como esposa, mas para alimentar e manter íntegra ou agravada a doença da minha ALMA, sob a tutela do meu hábito, até que contraísse matrimonio. Mas nem por isso sarava a chaga causada pela separação da primeira mulher; mas, depois de ardor e sofrimento agudíssimos, começava a se corromper doendo tanto mais desesperadamente quanto mais fria se tornava. Confissões VI, XV

Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmente meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade da ALMA e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E eu perguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem temor algum de perdê-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?” Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no vício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aos olhos da carne, e somente visível das profundezas da ALMA. Na minha miséria, não indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos, por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a ideia que eu tinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia que eles me amavam com o mesmo desinteresse. Confissões VI, XVI

Ó caminhos tortuosos! Ai da ALMA temerária que, afastando-se de ti, esperava achar algo melhor! Dá voltas e mais voltas, para todos os lados, mas tudo lhe é duro, porque só tu és seu descanso. Mas eis que estás presente, e nos livras de nossos miseráveis erros, e nos pões em teu caminho, e nos consolas dizendo: “Correi, que eu vos levarei e conduzirei ao termo, e aí serei vosso sustento!” Confissões VI, XVI

E sendo eu homem — e que homem — esforçava-me para imaginar a ti, o sumo, o único e verdadeiro Deus. Com toda minha ALMA eu te julgava incorruptível, inviolável e imutável. Mesmo não sabendo de onde nem como me vinha esta certeza, eu via com clareza e tinha como certo que o incorruptível é melhor do que o corruptível. Sem hesitar, colocava o que não pode ser vencido acima do que o pode ser, e o que não sofre mudança parecia-me melhor do que é suscetível a mudanças. Confissões VII, I

Se respondessem que te podia ser nociva em algo, então serias violável e corruptível. Se dissessem que não te podia prejudicar nada, não haveria razão para luta. Luta essa em que uma parte de ti mesmo, um de teus membros, produto de tua própria substância, se misturava às forças adversas, a naturezas não criadas por ti. Assim se corromperia, degradando-se a ponto de mudar sua felicidade em miséria e de necessitar de auxílio para se libertar e purificar. E essa parte de ti seria a ALMA que teu Verbo devia salvar da escravidão, ele que é livre de impurezas, ele que é imaculado da corrupção, ele que é intacto sem ser corruptível, sendo feito de uma só e mesma substância. Confissões VII, II

Por isso, buscava-a com segurança, certo de que era falsidade o que diziam os maniqueus; deles fugia com toda a ALMA, porque via suas indagações sobre a origem do mal cheias de malícia, preferindo crer que tua substância era passível de sofrer o mal do que a deles ser susceptível de o cometer. Confissões VII, III

Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, e semeou minha ALMA esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meu dulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este, de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua vontade perversa, de onde lhe veio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo por um Criador boníssimo?” Confissões VII, III

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha ALMA toda a criação, tanto o que podemos ver — como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos. Confissões VII, V

Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes temores da morte, e sem ter encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempre mais em meu coração a de teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela Igreja Católica; ainda incerta, certamente, em muitos pontos, e como que flutuando fora das normas da doutrina. Minha ALMA porém não a abandonava, e cada dia mais se abraçava a ela. Confissões VII, V

Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha ALMA! Foste tu, e só tu — pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam — o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente — não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem. Confissões VII, VI

Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha ALMA. Confissões VII, VII

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha ALMA, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós, porque te compadeceste da terra e do , e foi de teu agrado corrigir minhas deformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesse impaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para mim uma certeza. O inchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista de minha ALMA, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio das dores salutares. Confissões VII, VIII

Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a ALMA do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX

E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptível havia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é, naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teu povo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeça de um quadrúpede, curvando tua imagem, isto é, a própria ALMA, diante da imagem de um bezerro comendo feno. Confissões VII, IX

Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da ALMA, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas. Confissões VII, X

E conheci então que “castigaste o homem por causa de sua iniquidade”, e “que secaste minha ALMA como uma teia de aranha”, e eu disse: Porventura não existe a verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na verdade, Eu sou o que sou. Confissões VII, X

Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua criação, como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas obras. Mas, como minha ALMA não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerar como obra tua o que lhe desagradava. Confissões VII, XIV

Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a ALMA, e a morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo, por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII

E, gradualmente, fui subindo dos corpos para a ALMA, que sente por meio do corpo; e dela à sua força interior, à qual os sentidos comunicam as coisas exteriores, que é o limite alcançado pelos animais. Daqui passei para o poder do raciocínio, ao qual cabe julgar as percepções dos sentidos corporais; por sua vez, julgando-se sujeito a mudanças, levantou-se até a sua própria inteligência, e afastou o pensamento de suas cogitações habituais. Livrou-se da multidão de fantasmas contraditórios, para descobrir que luz a inundava quando, sem nenhuma dúvida, afirmava que o imutável deve ser preferido ao mutável; e também de onde lhe vinha o conhecimento do próprio imutável, porque, se não tivesse dele alguma noção, nunca o preferiria ao mutável com tanta certeza. E, finalmente, chegou àquele que é um único lampejo. Confissões VII, XVII

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu Verbo senão com ALMA e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da ALMA e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o corpo de um homem, ou um corpo sem uma ALMA inteligente, mas um homem real, que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

Alípio porém pensava que os católicos, crendo em um Deus revestido de carne, entendiam quem eu em Cristo, além de Deus e da carne, não havia ALMA humana; e não julgava que lhe atribuíssem inteligência humana. E como estava bem persuadido de que os atos atribuídos tradicionalmente a Cristo não podiam ser senão obras de um criatura cheia de vida e de inteligência, Alípio se aproximava com certa relutância da cristã. Mas depois, ao saber que este erro era próprios dos hereges apolinaristas, aderiu alegremente à católica. Confissões VII, XIX

Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa verdade, que as trevas de minha ALMA me impediam de contemplar. Estava certo de tua existência e de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; e de que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem te mudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algum movimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pela única e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades, mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, como se fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da verdade em Cristo, nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecer sábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Onde estava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus? Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles me encontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minha memória os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teus livros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha ALMA, pudesse discernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que veem para onde se deve ir, e não veem por onde se vai, nem o caminho que conduz à pátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la. Confissões VII, XX

Nada disso dizem os livros platônicos. Nem têm naquelas páginas esse sentimento de piedade, as lágrimas da confissão, esse teu sacrifício, a ALMA abatida, esse coração contrito e humilhado, nem a salvação de teu povo, nem a cidade prometida, nem o penhor do Espírito Santo, nem o cálice de nossa redenção. Confissões VII, XXI

Nos livros platônicos ninguém canta: “Minha ALMA não estará sujeita a Deus? Porque dele procede minha salvação, pois é meu Deus e meu amparo, do qual não mais me apartarei. Confissões VII, XXI

Bom Deus, que se passa no homem para que se alegre mais com a salvação de uma ALMA desesperada, quando salva de grande perigo, do que se ela sempre tivesse tido esperança, ou se o perigo tivesse sido menor? Também tu, Pai misericordioso, sentes mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência. Grande é o nosso prazer ao falar da alegria do pastor trazendo de volta sobre os ombros a ovelha desgarrada, e da mulher que repõe em teus tesouros, para satisfação geral dos vizinhos, a dracma perdida. E nos arranca lágrimas a alegria das festas de tua casa quando lemos que teu filho menor estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado. Confissões VIII, III

Mas, que se passa na ALMA, para que se alegre mais com as coisas que estima, encontradas ou reavidas, do que se sempre as tivesse possuído? Na verdade, tudo o atesta, e há inúmeros testemunhos que afirmam: “É assim mesmo!” Confissões VIII, III

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual me mantinha cativo. Da vontade perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o hábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéis enlaçados entre si — por isso lhes chamei corrente — me mantinha preso em dura servidão. A nova vontade, que despontava em mim, de te servir sem interesse, de me alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de vencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a ALMA. Confissões VIII, V

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a ALMA é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquanto Ponticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a que viera, Ponticiano voltou para sua casa, e eu para dentro de mim. Que coisas não disse contra mim? Com que açoite de palavras não flagelei minha ALMA, para obrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se, sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nada lhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhida à corrente do vício, onde se corrompia mortalmente. Confissões VIII, VII

Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comando de minha ALMA, movendo os membros segundo sua vontade, do que a própria ALMA obedecer a si mesma para realizar seu grande desejo com a vontade. Confissões VIII, VIII

A ALMA dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a ALMA dá ordens a si mesma, e resiste. Ordena a ALMA à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal se pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a ALMA é espírito e a mão é corpo. A ALMA dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, e contudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa? Confissões VIII, XI

Manda a ALMA que queira — e não mandaria se não quisesse — e, não obstante, não faz o que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total. A ALMA manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não são executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser a uma vontade que nada mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por que não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria que fosse, porque já seria. Confissões VIII, XI

Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; é uma enfermidade da ALMA. esta, sustentada pela verdade, não se ergue de todo, pois está oprimida pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas incompletas, e o que uma possui falta à outra. Confissões VIII, XI

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da ALMA á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X

Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma ALMA estranha, mas apenas o castigo de minha ALMA. E por isso já não era eu quem mo infligia, mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente, por ser eu filho de Adão. Confissões VIII, X

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma ALMA a que hesita entre duas vontades opostas. Confissões VIII, X

Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, não falem mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadas em duas substâncias antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes, como no caso em que ambas as vontades são más; por exemplo, quando alguém hesita, entre matar a outrem com um punhal ou veneno; entre assaltar esta ou aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas; entre esbanjar na compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo ou ao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceira incerteza: entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ou ainda, acrescento uma quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem possibilidade para isso. Suponhamos que todas essas circunstâncias ocorram simultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e irrealizáveis ao mesmo tempo, a ALMA será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou mais ainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus não afirmam que existe tão grande número de substâncias diferentes. Confissões VIII, X

Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma ALMA que, sem uma vontade plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais. Confissões VIII, X

Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha ALMA, e com severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me prender mais firmemente. Confissões VIII, XI

E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo! Por tua misericórdia, afasta-as da ALMA de teu servo! Oh! Que imundícies me sugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes que eu lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado por cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás. Confissões VIII, XI

Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha ALMA, e expôs toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme tormenta, trazendo copiosa torrente de lágrimas. E para dar-lhe toda vazão com seus gemidos, afastei-me de Alípio; a solidão parecia-me mais adequada e me afastei o mais longe possível, para que sua presença não me fosse embaraçosa. Tal era o estado em que encontrava, e Alípio percebeu-o, pois lhe disse alguma coisa com um timbre de voz embargado de lágrimas que me denunciou. Confissões VIII, XII

Ó Senhor, sou teu servo e filho de tua serva. Rompeste minhas cadeias: eu te sacrificarei uma vítima de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e que todos os meus ossos te digam: Senhor, quem semelhante a ti? Que eles te digam essas palavras e que me respondas e digas à minha ALMA: Eu sou tua salvação. Confissões IX, I

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha ALMA. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I

Minha ALMA já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e do prurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minha luz, minha riqueza, minha salvação! Confissões IX, I

Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou teu filho adotivo. Ali vive — pois, que outro lugar conviria a uma ALMA assim? Ali vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre homem ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas não creio que se embriague a ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor, que és sua bebida, te lembras de nós. Confissões IX, III

Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me — e me é doce confessá-lo, Senhor — a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como me aplanaste a ALMA derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos; como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como também submeteste Alípio — o irmão de meu coração — ao nome de teu Filho único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava em minhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o veneno das serpentes. Confissões IX, IV

Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios, investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que estivessem perto de mim, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto e ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei, tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha ALMA na tribulação. Confissões IX, IV

Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem — sem eu o saber, para que não pensassem que eram por causa deles as palavras que eu entremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diria daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as mesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a mim mesmo, diante de ti, na íntima efusão dos afetos de minha ALMA. Confissões IX, IV

Muitas coisas passo em silêncio, porque tenho pressa. Recebe minhas confissões e ações de graças, meu Deus, pelas inúmeras bondades que não menciono aqui. Mas não quero calar o que brota de minha ALMA a respeito desta tua serva, que me gerou na carne para a luz temporal, e no coração para a luz eterna. Não referirei suas qualidades, nem a si mesma se havia educado. Confissões IX, VIII

Mas, tu, Senhor, governador do céu e da terra, que desvias para teus desígnios as águas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura de uma ALMA com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribua a seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cuja emenda deseja conseguir. Confissões IX, VIII

E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio de nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu Verbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas! E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra, da água, do ar e até dos céus; e que a própria ALMA se calasse, e se elevasse sobre si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o que é fugaz — uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente — se, dito isto, todas se calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por si mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de um anjo, nem pelo ruído do realidade, e supondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e unicamente esta arrebatasse a ALMA de seu contemplador, e a absorvesse e abismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este momento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar em gozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados? Confissões IX, X

Mas eu, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teus fiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças. Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de sua sepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele na maior concórdia, assim também queria — visão própria da ALMA humana incapaz das coisas divinas — ter a felicidade de que os homens recordassem que, depois de sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir o de ambos os cônjuges. Confissões IX, XI

Por fim, nove dias após cair enferma, aos cinquenta e seis anos de idade e aos trinta e três da minha, aquela ALMA santa e piedosa libertou-se do corpo. Confissões IX, XI

Era para mim grande consolação o testemunho que dera de mim, quando nesta última enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca uma só palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meu Criador, a solicitude que eu lhe tributava, em comparação com o devotamento servil que por mim suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia a ALMA ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada. Confissões IX, XII

Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lagrima. Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossa redenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de ser inumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei. Mas durante todo o dia andei oprimido por grande tristeza interior; pedia-te como podia, com a mente perturbada, que aliviasses minha dor. Mas não me atendias, sem dúvida para que fixasse, bem na memória, ao menos por esta única experiência, como são poderosos os laços do costume, mesmo em uma ALMA que já não se alimentava de palavras enganadoras. Confissões IX, XII

Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho (bálneo, em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque o banho aliviava as tristezas da ALMA. Mas eu o confesso à tua misericórdia — ó Pai dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não expulsou o amargor de sua tristeza. Confissões IX, XII

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos perigos que corre toda ALMA que morre em Adão. É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII

Quem poderá devolver-lhe seu sangue inocente? Quem poderá restituir-lhe o preço pago por nosso resgate, para nos arrancar ao inimigo? A este mistério de nossa redenção ligou tua serva sua ALMA com o vínculo da . que ninguém a afaste de tua proteção. Que entre ela e ti não se interponha, nem pela força, nem pelo engano, o leão ou o dragão. Ela não responderá que nada deve, para não ser convencida e arrebatada pelo astuto acusador, responderá que suas dívidas lhe foram perdoadas por aquele a quem ninguém pode restituir o que por nós pagou sem nada dever. Confissões IX, XIII

Ó Deus, faz que eu te conheça, meu conhecedor, que eu te conheça como de ti sou conhecido. Virtude de minha ALMA, penetra-a, assemelha-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nem ruga. Confissões X, I

Portanto, assim como sou, Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo me vou confessando a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mas com as palavras da ALMA e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem. Quando sou mau, confessar-me ai é o mesmo que desprezar a mim próprio; quando sou bom, é apenas nada atribuir a mim mesmo. Confissões X, II

Mas tu, Médico da minha ALMA, faze-me ver claramente a utilidade de meu propósito. As confissões de meus pecados passados — que já perdoaste e esqueceste, para me fazer feliz em ti, transformando minha ALMA com tua e teu sacramento — levam o coração dos que as leem e ouvem a não dormir no desespero dizendo: “Não posso”. Mas despertem para o amor pela tua misericórdia e para a doçura de tua graça, que fortalece o fraco e este se dá conta de sua debilidade. Confissões X, III

Mas, com que propósito desejam ouvir-me? Desejarão talvez congratular-me comigo, ouvindo quanto me aproximei de ti por tua graça, e orar por mim, ao ouvir quanto me retardou o peso de minhas culpas? A estes mostrarei quem sou; já não é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos te deem graças por mim, e que muitos te roguem por mim. possa o coração de meus irmãos amar em mim o que ensinas a amar, e, deplorar em mim o que ensinas a aborrecer! Mas que brotem tais sentimentos em uma ALMA irmã, e não em almas estranhas, ou nesses filhos espúrios, cuja boca fala vaidade, e cuja direita é a direita da iniquidade, que o faça uma ALMA fraterna que se alegra por mim quando me aprova, e quando me reprova se aflige por mim, porque quer me aprove, quer não, me ama. Confissões X, IV

Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu Verbo o tivesse proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis que eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo seria grande demais, se minha ALMA aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não te fosse conhecida. Confissões X, IV

Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha ALMA uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI

Para me servirem, tenho um corpo e uma ALMA: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” — e ainda — “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisas por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a ALMA, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo. Confissões X, VI

Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julgá-las. Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam sua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me diz: “Teu Deus não é nem o céu, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por isso, minha ALMA, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida. Confissões X, VI

Que amo, então, quando amo a meu Deus? Quem é aquele que está acima da minha ALMA? É por minha ALMA; portanto, que subirei até ele. Hei de sobrepujar a força que me ata ao corpo, e que enche meu organismo de vida, pois não encontro nela o meu Deus. Se assim fosse, o cavalo e a mula, que não têm inteligência, também o encontrariam, porque essa mesma força vivifica seus corpos. Confissões X, VII

E existe outra força, que não só vivifica, mas que também torna sensível minha carne que o Senhor me deu, ordenando ao olho que não ouça, e ao ouvido que não veja, mas àquele que sirva para ver, e a este para ouvir; e que determinou a cada um dos outros sentidos o respectivo lugar e ofício. É deles que se serve minha ALMA para exercer suas diversas funções, permanecendo, contudo, uma só. Confissões X, VII

“Farei isto ou aquilo” — digo para mim, nesse vasto universo de minha ALMA, repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquela conclusão. “Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!” “Queira Deus não aconteça isto ou aquilo!” isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidades que exprimo, saídas do mesmo tesouro da memória; sem elas, nada poderia dizer. Confissões X, VIII

Essa mesma memória conserva também os afetos da ALMA, não do modo como os sente a ALMA quando da vivencia, mas de modo muito diverso, segundo o exige a força da memória. Confissões X, XIV

Lembro-me de ter estado alegre, ainda que não o esteja agora; recordo minha tristeza passada, sem estar triste; lembro-me de ter sentido medo, sem senti-lo de novo; lembro-me de antigo desejo, sem que o mesmo sinta agora. Outras vezes, pelo contrário, lembro-me com alegria a tristeza passada, e com tristeza uma alegria passada. Isto nada tem para admirar quando se trata de emoções corporais, porque uma coisa é a ALMA e outra o corpo; e assim não é maravilha que me lembre com alegria de um sofrimento físico já passado. Confissões X, XIV

Porém, aqui o espírito é a própria memória. Quando confiamos uma tarefa a alguém, dizemos: “Não o guardei no espírito”, “fugiu-me do espírito”. É, portanto, a memória que chamamos de espírito. Sendo assim, por que ao evocar com alegria uma tristeza passada, meu espírito sente alegria e minha memória, tristeza? Se meu espírito se alegra com a alegria que tem em si, por que a memória não se entristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a memória estranha ao espírito? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a memória é como o estômago da ALMA, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando tais emoções são confiadas à memória, depois de passarem, digamos, por esse estômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículo comparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não são totalmente diferentes. Confissões X, XIV

É ainda da memória que tiro a distinção entre as quatro emoções da ALMA: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que eu teça, dividindo cada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na memória que encontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordar essas emoções, não me perturbo com nenhuma delas. Confissões X, XIV

Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos na memória não só os sons dessas palavras, segundo a imagem gravada em nós pelos sentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não a recebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria ALMA, sentindo-as pela experiência das próprias emoções, confiou-as à memória; ou então a própria memória as reteve, sem que ninguém lhas confiasse. Confissões X, XIV

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da ALMA, que a memória conserva quando a ALMA já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII

Mas donde nos vem este nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugerido por outrem, é pela memória que reconhecemos; não o aceitamos como um conhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nos disseram. Se fosse totalmente apagado da ALMA, nem mesmo avisados o reconheceríamos. Confissões X, XIX

E como hei de te buscar, Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procura da felicidade. Procurar-te-ei para que minha ALMA viva, porque meu corpo vive de minha ALMA, e minha ALMA vive de ti. Como então devo buscar a felicidade? Porque não a possuirei até que possa dizer “basta”. Como, pois, procurá-la? Talvez pela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança do esquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lo vivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seu esquecimento? Confissões X, XX

Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quando estou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me da felicidade. Ora, esta alegria, eu jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, ou toquei; apenas a experimentei em minha ALMA quando me alegrei. E esta ideia se fixou em minha memória para que eu pudesse recordá-la, às vezes com desgosto, outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram. Confissões X, XXI

Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também os animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha ALMA, mas também aí não te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória — porque também o espírito lembra de si mesmo — mas nem ali estavas. Isso porque não és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha memória desde que te conheço. Confissões X, XXV

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha ALMA e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo? Confissões X, XXX

Senhor onipotente, não poderia tua mão curar todas as enfermidades de minha ALMA, abolindo também, com maior abundância de graça, os movimentos lascivos de meu sono? cada vez mais multiplica, Senhor, o número de tuas bondades para comigo, para que minha ALMA, livre do visco da concupiscência, siga até chegar a ti. Para que não seja rebelde, nem mesmo durante o sono; para que, pelo estímulo de imagens bestiais, não só não cometa essas torpezas degradantes até a lascívia carnal, mas que nem mesmo consinta nisso. Confissões X, XXX

Ora, a medida do prazer não é a mesma da saúde; o que é bastante para a saúde não o é para o prazer, e muitas vezes é difícil discernir se é o cuidado com o corpo que pede reforço de alimento, ou se é a gula que nos engana e quer ser servida. Essa incerteza alegra nossa pobre ALMA, feliz por ter encontrado um álibi e uma desculpa na impossibilidade de determinar o que basta para o cuidado com a saúde, e sob o pretexto da sua conservação esconde a busca do prazer. Esforço-me para resistir a essas tentações diárias, e invoco tua mão para me socorrer. A ti confesso minha incerteza, porque sobre este ponto meu juízo ainda não é firme. Confissões X, XXXI

Às vezes parece-me tributar-lhe mais atenção do que devia: sinto que tuas palavras santas, acompanhadas do canto, me inflamam de piedade mais devota e mais ardente do que se fossem cantadas de outro modo. Sinto que as emoções da ALMA encontram na voz e no canto, conforme suas peculiaridades, seu modo de expressão próprio, um misterioso estímulo de afinidade. Confissões X, XXXIII

Assim, oscilo entre o perigo do prazer e a constatação dos efeitos salutares do canto. Por isso, sem emitir juízo definitivo, inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja, para que, pelo prazer do ouvido, a ALMA ainda muito fraca, se eleve aos sentimentos de piedade. E quando me comovem mais os cantos do que as palavras cantadas, confesso meu pecado e mereço penitencia, e então preferiria não ouvir cantar. Confissões X, XXXIII

Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a ALMA! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. Confissões X, XXXIV

E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, a procuro e, se sua ausência se prolonga, a ALMA se entristece. Confissões X, XXXIV

Quanto a mim, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te um hino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por mim. As belezas que da ALMA do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que é superior às nossas almas e pela qual minha ALMA suspira dia e noite. Confissões X, XXXIV

Às anteriores acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além da concupiscência da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, e cuja servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na ALMA um outro desejo, que se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfação carnal do que a tudo conhecer por meio da carne. Confissões X, XXXV

E é ela, enfim, que, até na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais e prodígios, não para a salvação da ALMA, mas apenas pela ânsia de vê-los. Confissões X, XXXV

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma ALMA, a finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua vontade. Confissões X, XXXV

Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tua infinita misericórdia. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si grande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbam nossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa ALMA até teus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um ato tão importante. Confissões X, XXXV

Quem busca o louvor dos homens, quando tu o reprovas, não será por estes defendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua condenação. Mas quando não se louva um pecados pelos desejos de sua ALMA, nem se abençoa quem pratica iniquidades, mas te louva um homem pelos dons que lhe concedeste, se ele se compraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, a despeito dos louvores que recebe dos homens. E quem o louva é melhor do que é louvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com o dom do homem. Confissões X, XXXVI

Posso avaliar o quanto dominei a minha ALMA a respeito dos prazeres da carne e das vãs curiosidades, quando me vejo privado de tais coisas por minha vontade ou por necessidade. Confissões X, XXXVII

Quanto à riqueza, ambicionada apenas para satisfazer a uma, duas ou todas as três paixões, no caso em que a ALMA não perceba se as despreza quando as possui, depende só dela renunciar a elas para provar seu desapego. Todavia, para nos privar dos louvores e provar nosso poder sobre eles, será talvez necessário levar uma vida má, infame, horrível, a ponto de ninguém nos conhecer sem nos detestar? Pode-se dizer ou conceber maior insanidade? Confissões X, XXXVII

Em nenhuma dessas coisas que percorro consultando-te, não encontro lugar seguro para minha ALMA senão em ti; só em ti se reúnem meus pensamentos esparsos, sem que nada meu se aparte de ti. Às vezes, me fazes conhecer uma extraordinária plenitude de vida interior, de inefável doçura que, se chegasse à contemplação, não seria certamente compatível com esta vida. Mas torno a cair nesta baixeza, cujo peso me acabrunha; volto a ser dominado pelos meus hábitos, que me tem cativo e, apesar de minhas lágrimas, não me libertam. Tão pesado é o fardo do hábito! Não quero estar onde posso e não posso estar onde quero: miséria em ambos os casos! Confissões X, XL

Muitas coisas te narrei, conforme o pude e conforme o desejo de minha ALMA, porque o exigiste primeiro, para que te confessasse, Senhor, meu Deus, porque és bom, e porque tua misericórdia é eterna. Confissões XI, I

Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os começos de tuas luzes na minha ALMA e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe dever. Confissões XI, II

Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o que te devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos os que te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me, Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coração possam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não me engane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e tem compaixão, Senhor meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos, mas também luz dos que veem e força dos fortes; presta atenção à minha ALMA e ouve-a clamar do fundo do abismo. E se teus ouvidos estão ausentes do abismo, para onde iremos, por quem clamaremos? Confissões XI, II

Mas de onde proviriam essas coisas se não as tivesse criado? Criaste o corpo do artista, a ALMA que governa seus membros, a matéria que ele plasma, a inspiração que concebe e vê interiormente o que executará exteriormente. Deste-lhe os órgãos dos sentidos, intérpretes pelos quais materializa as intenções de sua ALMA; informam o espírito do que fizeram, para que este consulte a verdade, o juiz interior, para saber se a obra é boa. Tudo isso te louva como criador de todas as coisas. Confissões XI, V

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha ALMA, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Mas vejamos, ó ALMA humana, se o tempo presente pode ser longo, porque foi-te dada a prerrogativa de perceber e medir os momentos. Que me respondes? Por acaso cem anos presentes são um tempo longo? Consideremos antes se cem anos podem ser presentes. Se for o primeiro ano que corre, está presente; mas os outros noventa e nove ainda são futuros, e portanto ainda não existem. Se estamos no segundo ano, já temos um ano passado, o segundo presente e todos os outros no futuro. Desse período de cem anos, seja qual for o ano que supomos presente, todos os que o precederam serão passados, e todos os que estão por vir, futuros. Portanto, os cem anos não podem estar simultaneamente presentes. Confissões XI, XV

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce Luz dos olhos de minha ALMA! Confissões XI, XIX

Minha ALMA se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que eu os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Confissões XI, XXII

Acaso minha ALMA não foi sincera confessando-te que posso medir o tempo? De fato, meu Deus, eu o meço, e não sei o que meço. Meço o movimento dos corpos com o auxílio do tempo, e não poderei medir o tempo do mesmo modo? E poderia eu medir o movimento de um corpo, sua duração, o tempo que gasta para ir de um lugar a outro, sem medir o tempo em que se move? Confissões XI, XXVI

Por esse motivo é que o tempo me pareceu não ser nada mais que uma extensão. Mas extensão de que? Não saberia dizê-lo ao certo; seria de admirar que não fosse extensão da própria ALMA. portanto, dize-me , meu Deus, que é o que meço quando digo um tanto vagamente: “Este tempo é mais longo do que aquele” — ou mais exatamente: “Este tempo é o dobro daquele? Confissões XI, XXVI

Insiste, ó minha ALMA, e presta grande atenção: Deus é nosso apoio. Ele é que nos criou, e não nós. Olha para lá, par o lado onde desponta a aurora da verdade. Confissões XI, XXVII

Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor, meu Pai, tu és eterno. Mas eu me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro; tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minha ALMA, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti. Confissões XI, XXIX

Não ensinaste, Senhor, à ALMA que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor, que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada, nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, mas massa informe, sem figura alguma. Confissões XII, III

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha ALMA. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha ALMA, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha ALMA, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha ALMA, que essa criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é co-eterna; que goza de ti em união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável; que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa chamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes. Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos, cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu. Confissões XII, XI

Diante disso, possa a ALMA, cuja peregrinação afastou de ti, compreender se já tem sede de ti, se seu pranto se tornou seu pão, quando todos os dias lhe dizem: Onde está teu Deus? — se ela deseja apenas habitar em tua morada todos os dias de sua vida. E que é sua vida, senão tu? Confissões XII, XI

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à ALMA, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo co-eterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a Verdade disse ao ouvido de minha ALMA sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substância não varia no tempo, e que sua vontade se confunde com sua substância? E que por isso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis, simultaneamente e para sempre. Sua vontade não se exerce repetidas vezes, não se propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nem deixa de querer o que antes queria, uma vez que tal vontade seria mutável, e o que é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno. Confissões XII, XV

Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha ALMA: que a espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois se transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que varia assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus eterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência não admite nada que seja transitório. Confissões XII, XV

Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada impropriamente de céu e terra, e portanto, que o universo criado por Deus na sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como morada eterna de Deus, quer mudando-se como a ALMA e o corpo do homem. Confissões XII, XVII

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da ALMA, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento — nem assim veríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, de não nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras. Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa ALMA, de todo nosso espírito, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses dois preceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Não acreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servo sentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantos pensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras, vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento e não aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor da qual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar! Confissões XII, XXV

Com efeito, essas matérias precedem no tempo os objetos que delas são feitos. Mas com o canto não é assim. Quando se canta ouve-se o som do canto: não há em primeiro lugar sons desorganizados, que depois assumem a forma de canto. Logo que ele soa, o som se desvanece, e não deixa de si nada que se possa coordenar com arte. Por conseguinte, o canto é formado de sons: o som é sua matéria e, para se transformar em canto, recebe uma forma. A prioridade não se fundamenta em um poder criador, porque o som não é o artífice do canto, mas é apenas posto pelo corpo à disposição da ALMA do cantor, para que dele faça um canto. Nem se trata de prioridade temporal: o som é produzido ao mesmo tempo que o canto. Tampouco se trata de prioridade de escolha: o som não é superior ao canto, pois o canto nada mais é que som, mas um som bonito. Trata-se apenas de uma prioridade de origem, pois o canto não recebe forma para se tornar som, mas o som para se tornar canto. Confissões XII, XXIX

Eu te invoco, ó meu Deus, minha misericórdia, que me criaste, e que não olvidaste aquele que te esqueceu. Chamo-te à minha ALMA, que preparas para te receber fazendo-te desejar por ela. Confissões XIII, I

E também nós, que por nossa ALMA somos criaturas espirituais, nós nos afastamos de ti, nossa luz, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entre os restos de nossas trevas, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único, como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundos como abismos. Confissões XIII, II

A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismos materiais. A metáfora é a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões, nossos amores, a impureza de nosso espírito que nos arrasta para baixo sob o peso das preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor de tua paz, para que levantemos nossos corações para junto de ti, onde teu Espírito paira sobre as águas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa ALMA tiver atravessado essas águas que são sem substância. Confissões XIII, VII

O anjo caiu, a ALMA do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos. Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem como exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço, quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência; veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos. O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda. Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da ALMA, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente. Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem, temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo? Confissões XIII, XI

Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonou nossa miséria, e disseste: “Faça-se a luz”. Fazei penitencia, porque está próximo o reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a ALMA conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós. Confissões XIII, XII

Também eu pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” — Respiro um pouco de ti quando minha ALMA se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltação e de louvor, verdadeiro canto de festa. — Mas ela ainda está triste, porque torna a cair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo. Confissões XIII, XIV

Minha , que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha ALMA, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos trevas”. — Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas. Confissões XIII, XIV

Não é justo a teus olhos que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, que ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha ALMA é para ti como terra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua luz é que veremos a luz. Confissões XIII, XVI

E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa ALMA germina obras de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a socorrê-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos, símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo. Confissões XIII, XVII

Que o mar também conceba e dê à luz tuas obras; que as águas produzam répteis dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca de Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas…” não a ALMA viva, filha da terra, mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assim como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras de teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os povos com teu nome, em teu batismo. Confissões XIII, XX

Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade, seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas, por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os homens iniciados nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios, aos quais estão sujeitos, se sua ALMA não se elevasse á vida do espírito, e, após a palavra inicial, não aspirasse à perfeição. Confissões XIII, XX

E assim não foi a profundeza do mar, mas a terra livre do amargor das águas que, impelida pelo teu Verbo gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e os pássaros, mas a ALMA viva. Confissões XIII, XXI

A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma ALMA viva, és tu. A terra a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu. A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a terra árida. Confissões XIII, XXI

Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. As primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens, mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos. Todavia, a ALMA viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis é meritório abster-se de amar este mundo, para que sua ALMA viva por ti, essa ALMA que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as delicias de um coração puro. Confissões XIII, XXI

Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade, quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso à , esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que teus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do abismo; e que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação. E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, e vossa ALMA viverá, e a terra dará nascimento a uma ALMA viva. Não vos conformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A ALMA vive evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte. Confissões XIII, XXI

Abstende-vos das violências selvagens da soberba, das ociosas voluptuosidades da luxúria, da falsidade que engana em nome da ciência, para que os animais ferozes sejam domesticados, os brutos domados e para que as serpentes sejam inofensivas: todos representam alegoricamente os movimentos da ALMA humana. O fastio do orgulho, as delícias da luxúria, o veneno da curiosidade, são movimentos da ALMA morta, mas não morta a ponto de carecer de todo movimento; é afastando-se da fonte da vida que ela morre, o mundo a arrebata ao passar, e a este se amolda. Confissões XIII, XXI

Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma ALMA viva, uma ALMA que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como eu” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na ALMA viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa ALMA, vivendo bem, se tornar ALMA viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o que é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas, comparáveis aos frutos da terra; ele julga a ALMA viva pelas paixões domadas pela castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se corrigir. Confissões XIII, XXIII

E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na ALMA viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV

Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, de que te alimentas, ó homem renovado para o conhecimento de Deus, conforme a imagem de teu Criador, ALMA viva que possui tal domínio de si, língua alada que exprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O que foi para ti esse alimento substancioso? A alegria. Confissões XIII, XXVI

Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que, para serem iniciados e conquistados para a , precisam desses rituais de iniciação e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os primeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não se alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a ALMA só se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os cetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separados e purificados de amargura das águas do mar. Confissões XIII, XXVII

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na ALMA humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a ALMA viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a ALMA, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas. Confissões XIII, XXXIV