Fundador de uma nova religião, Mani (n. c. 216) pregou com êxito no Império Persa mas foi morto por sacerdotes zoroastrianos por volta de 276. O maniqueismo era uma religião dualista baseada em dois princípios conflitantes: a salvação reside na libertação do Bem, ou Luz, que está encarcerado na matéria, ou trevas. Em parte monástico, o maniqueismo foi sobretudo uma fé missionária, propagando-se à China, Índia, norte da África e, no século V, à Espanha e sul da Gália. Embora suprimido como heresia, influenciou seitas subsequentes (bogomilos, cátaros, por exemplo). Em sua mais extrema forma, levou à excessiva austeridade na alimentação, abstinência do sexo e da ingestão de coisas sexualmente criadas; por outras palavras, rejeição do que os teólogos cristãos passaram a denominar a “criaturidade” do homem. [DIM]
Não precisamos relembrar os complexos mitos cosmogônicos, antropogônicos e escatológicos do maniqueísmo. Embora fizesse uso de elementos iranianos e mesopotâmicos (mandeus), Manés criou sua própria mitologia, assim como muitos gnósticos o fizeram, antes e depois dele, e como William Blake aventurou-se a fazer ainda no século XVIII. Nota-se, também, que Manés construiu uma mitologia de acordo com o Zeitgeist da época, que exigia um intrincado, patético, divino drama cósmico, fundamentado por emanações, reduplicações, homologias e outros recursos. O episódio que nos interessa é o do começo do drama cósmico, quando uma porção da luz divina é capturada pelo poder das trevas.
Ao compreender que o Príncipe das Trevas (= o Princípio do Mal) está pronto a atacar o domínio da Luz, o Grande Pai resolve enfrentar sozinho o adversário. Ele “invoca” ou seja, emana a Mãe da Luz, que, por sua vez, projeta uma nova hipóstase, Homem Primordial. Junto a seus cinco filhos – que são, de fato, seu próprio ser, uma armadura constituída por cinco luzes – o Homem Primordial desce até ao extremo; mas é conquistado pelas Trevas, e seus filhos são devorados pelos demônios. Essa derrota marca o início da “mistura” cósmica, mas é também a garantia do triunfo final de Deus (da Luz). Isto porque as Trevas (a Matéria) possuem partículas de Luz, e o Grande Pai prepara sua libertação, ao mesmo tempo que prepara a vitória definitiva sobre as Trevas. Numa segunda criação, o Pai “evoca” o Espírito Vivo, que, por sua vez, vai aos confins do reino das Trevas, segura a mão do Homem Primordial e o eleva até o Paraíso da Luz, seu lar celestial. Depois de vencer os Arcontes demoníacos, o Espírito Vivo faz, com a pele deles, os céus e, com sua carne e excrementos, a terra. E também o Espírito Vivo quem libera a Luz, criando o Sol, a Luz e as Estrelas, utilizando as partes que não se corromperam em consequência do contato com as Trevas.
Finalmente, a fim de resgatar as partículas de Luz restantes, o Pai emana o Terceiro Mensageiro. Esse mensageiro constrói unia roda cósmica gigante que, na primeira parte do mês, puxa as partículas de luz liberadas em direção da Lua, formando uma “gloriosa coluna”. Durante a segunda metade do mês, essa Luz é conduzida até o Sol e, finalmente, ao Paraíso da Luz. Contudo, existem ainda as partículas que haviam sido devoradas pelos Arcontes. Com a finalidade de resgatá-las, o Terceiro Mensageiro se manifesta aos Arcontes machos sob a forma de uma resplandecente e formosa virgem nua. Tomados pelo desejo sexual, os Arcontes machos emitem o esperma e, com ele, as partículas de Luz. Do sêmen caído na terra, crescem as árvores e plantas. Também às Arcontes fêmeas o Mensageiro aparece, desta vez como um radiante jovem nu. Ao verem o belo jovem, os demônios fêmeas, já grávidas, abortam. Esses abortos, lançados por terra, devoram os brotos das árvores, assimilando dessa maneira, as partículas de Luz.
Assustada com a estratégia do Terceiro Mensageiro, a Matéria, personificada como “Concupiscência”, decide resistir, construindo uma prisão mais fortificada para defender as partículas divinas restantes. Um casal de demônios, Asqualun e Namrael, devoram todos os abortos monstruosos e, após isto, tem relação sexual. Dessa relação, nascem Adão e Eva. Conforme salienta
Puech, de acordo com esse mito “notre espèce nait donc d’une suite d’actes répugnants de cannibalisme et de sexualité” (Le Manichéisme, p. 80). Contudo, Adão guarda em si a maior porção da Luz ainda cativa. Por isso, Adão e seus descendentes tornaram-se o objetivo central da redenção.
Não relembraremos a história de sua salvação, pautada no mesmo modelo da libertação do Homem Primordial. Porém, é óbvio que a natureza demoníaca da sexualidade foi a consequência lógica desse mito da origem do homem. Com efeito, a relação sexual e especialmente a procriação são atos nocivos ao homem porque prolongam o cativeiro da luz no corpo do seu descendente. Para um maniqueísta, a perfeição da vida significa uma ininterrupta série de purificações, ou seja, separações do espírito (luz) e da matéria. A redenção corresponde à separação da luz e da matéria, em suma, à destruição do mundo. [Eliade]