Criação [IEDM]

Serafim de Sarov — Conversa com Motovilov

Excertos do livro “Instruções Espirituais — Diálogos como Motovilov”, trad. de Helena Livramento

A criação

Muitos, por exemplo, interpretam as palavras da Bíblia: “Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida” (Gn 2, 7), como querendo dizer que até então não havia em Adão nem alma, nem espírito humano, mas somente uma carne criada do barro do solo. Esta interpretação não é correta, pois o Senhor Deus criou Adão do barro do solo no estado do qual fala o apóstolo Paulo quando afirma: “que vosso espírito, vossa alma e vosso corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da vinda do Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23).

Todas essas três partes do nosso ser foram criadas do barro do solo. Adão não foi criado morto, mas criatura animal atuante, semelhante às outras criaturas que vivem na terra e são animadas por Deus. Mas eis o importante. Se Deus não tivesse insuflado na face de Adão este alento de vida, isto é, a graça do Espírito Santo que procede do Pai e repousa no Filho e, por causa deste o não tivesse enviado ao mundo, por mais perfeito e superior às outras criaturas que Adão fosse, teria permanecido privado do Espírito deificante e seria semelhante a todas as criaturas que possuíssem carne, alma e espírito segundo a sua espécie, mas privados, no interior, do Espírito Santo que estabelece parentesco com Deus. A partir do momento em que Deus lhe deu o sopro de vida, Adão tornou-se, segundo Moisés: “uma alma vivente”, quer dizer, em tudo semelhante a Deus, eternamente imortal. Adão havia sido criado invulnerável. Nenhum elemento tinha poder sobre ele. A água não podia afo-gá-lo, o fogo não podia queimá-lo, a terra não o podia engolir e o ar não lhe podia ser nocivo. Tudo lhe era submisso, como ao preferido de Deus, como ao proprietário e rei das criaturas. Ele era a própria perfeição, a coroa das obras de Deus e admirado como tal. O alento de vida que Adão recebeu do Criador, o encheu de sabedoria a tal ponto que jamais houve sobre a terra, e provavelmente jamais haverá, um homem tão repleto de conhecimento e de saber quanto ele. Quando Deus lhe ordenou que desse nomes a todas as criaturas, ele as denominou de acordo com as qualidades, as forças, e as propriedades de cada uma, conferidas por Deus.

Este dom da graça divina supranatural, que veio do alento de vida que havia recebido, permitia a Adão ver a Deus passeando no paraíso e compreender as suas palavras bem como a conversa dos santos anjos e a linguagem de todas as criaturas, dos pássaros, dos répteis que vivem sobre a terra, de tudo o que nos é dissimulado, a nós, pecadores, desde a queda, mas que antes era perfeitamente claro para Adão.

A mesma sabedoria, a mesma força e o mesmo poder, assim como qualquer outra santa e boa qualidade tinham sido conferidos por Deus a Eva no momento de sua criação, não do barro do solo, mas de uma costela de Adão, no Éden das delícias, no paraíso desabrochado no meio da terra.

A árvore da vida e o pecado original

A fim de que Adão e Eva pudessem comodamente manter neles as suas propriedades imortais, perfeitas e divinas, vindas do sopro da vida, Deus plantou, no meio do paraíso, a árvore da vida em cujos frutos encerrou toda a substância e a plenitude dos dons de seu divino sopro. Se Adão e Eva não tivessem pecado teriam podido, eles e seus descendentes, comendo os frutos dessa árvore, manter neles a força vivificante da graça divina, bem como a plenitude imortal, eternamente renovada das forças físicas, psíquicas e espirituais, um não envelhecimento perpétuo, um estado de beatitude que atualmente a nossa imaginação tem dificuldade de representar.

Tendo porém saboreado o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, antes da hora e contrariamente às ordens de Deus, conheceram a diferença entre o bem e o mal, e tornaram-se presa dos desastres que se abateram sobre eles depois que infligiram a ordem divina. Perderam o dom precioso da graça do Espírito Santo e até a vinda de Jesus Cristo, Homem Deus, “não havia ainda Espírito rio mundo, porque Jesus não fora ainda glorificado” (Jo 7,39)

O espírito de Deus no Antigo Testamento

Isto não quer dizer que o Espírito de Deus tenha abandonado totalmente o mundo, mas a~sua presença não era tão manifesta como o era em Adão ou como o é em nós, cristãos ortodoxos, mas permanecia exterior e os homens o sabiam. Assim, por exemplo, muitos dos segredos concernentes à futura salvação da humanidade foram revelados a Adão e a Eva após a queda. Apesar de seu crime, Caim pôde ouvir a voz divina proferindo censuras. Noé conversou com Deus. Abraão viu Deus e seu dia e com isso rejubilou. A graça do Espírito Santo se manifestava externamente em todos os profetas do Antigo Testamento e nos santos de Israel. Os judeus tinham até escolas especiais para aprenderem a discernir os sinais das aparições de Deus e dos anjos e a diferenciar as ações do Espírito Santo dos acontecimentos da vida ordinária, privada da graça. Simeão, Joaquim e Ana e outros numerosos servidores de Deus eram frequentemente gratificados por manifestações divinas. Ouviam vozes, recebiam revelações confirmadas, depois, por acontecimentos miraculosos, mas verídicos.

O espírito de Deus nos pagãos

O Espírito de Deus se manifestava além disso, ainda que com menor força, nos pagãos que não conheciam o verdadeiro Deus, mas entre os quais ele encontrava também adeptos. As virgens profetisas, por exemplo, as sibilas, conservavam sua virgindade por um Deus Desconhecido — mas um Deus, apesar de tudo — que se julgava ser o Criador do universo, o Todo-poderoso que governa o mundo. Os filósofos pagãos, errando nas trevas da ignorância de Deus, mas buscando a verdade, podiam por causa dessa busca agradável ao Criador, receber numa certa medida o Espírito Santo. Está dito: “os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles não tendo Lei, para si mesmos são Lei” (Rm 2, 14). A tal ponto a verdade é agradável a Deus que ele mesmo proclama por seu Espírito: “da terra germinará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu” (Sl 85/84,12).

Foi assim que o conhecimento de Deus se conservou entre o povo eleito, amado por Deus, e igualmente entre os pagãos que ignoravam a Deus, desde a queda de Adão e até a Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.