Criar [PNTA]

VIDE: CRIAR ANIMAIS; CRIAR HOMEM; CRIAR PARA FAZER

Para distinguir notadamente o “criar” divino, Nothomb sempre que utiliza este verbo o faz com a primeira letra maiúscula, denotando uma obra exclusiva do Criador, e assim seguindo de perto o sentido do verbo hebreu ‘BR do qual só Deus pode ser o sujeito. Mas que quer dizer “Criar”, como já se menciona no RELATO DOS SEIS DIAS na abertura da “Criação”?

Interessante verificar que nas traduções o verbo “criar” neste RELATO é pouco frequente. Diz-se “Deus disse”, “Deus fez” (poiein), “Deus fez crescer”, “Deus criou” é quase uma exceção. Só no primeiro verso, e no vigésimo-primeiro, a tradução fala “criar” enquanto nos demais versículos relatando o desdobramento dos quatro primeiros dos seis “dias” da Criação, não se fala em “criar”, nem a luz, nem o firmamento, nem os astros, nem as plantas, mas que Deus os “fez” (poiein) ou os “fez fazer”, ou, no caso da luz, que sua palavra foi suficiente a suscitá-la (“Deus disse”).

No entanto neste texto capital de toda tradição judaico-cristã, onde nenhuma palavra nem seu lugar no texto são escolhidos ao acaso, o verbo traduzido por “criar” (como se tratasse de “criar um modelo”) não é sinônimo de “fazer” nem de “fazer fazer” nem exprime a realização, a passagem ao ato do programa que Deus se fixou para cada um destes “dias” simbólicos, anunciando cada vez suas intenções.

Precisemos que o hebreu, longe de temer como os ocidentais o efeito da repetição, não hesita jamais em empregar nas sequências sucessivas o mesmo termo, se é este que convém. A raridade das ocorrências no relato dito da Criação do verbo hebreu traduzido por “criar” (onde, a parte o título e a conclusão, não aparece senão no princípio do quinto dia e no final do sexto) mostra que não convém para designar não importa que obra do Deus Criador, mesmo a luz. A nossa noção “artística” de “criar”, mesmo com Deus por sujeito, a nossa concepção de inventar do novo, mesmo retirado do nada (o ex nihilo dos teólogos) “Criar” adiciona manifestamente algo de particular, que a parcimônia de seus empregos nos permite a princípio de cernir, até de definir sem muita dificuldade, por pouco que prestemos atenção.

O Criar da sequência inicial concerne o conjunto do processo que vai descrever o RELATO e não sua primeira etapa, assim como “os céus e a terra” designa o mundo ainda em projeto — trate-se a princípio de um título ou como sugere Rachi, de uma proposição subordinada, que se deveria traduzir: “Quando Deus começou a Criar o mundo”. Dito de outro modo, tende a um fim, uma meta que é anunciada aqui em seu início. É este fim, este coroamento, é a Criatura última, a última do sexto dia que o último dia da Criação, e cuja vinda à existência é saudada no texto por um triplo “criou” como o buquê de um fogo de artifício sobre a obra completada (Gen 1,27)

O “Criou” do versículo 1 anuncia portanto o triplo “Criou” do versículo 27 e indica o sentido, o fio condutor que subtende toda a obra divina, segundo a “Bíblia das Origens”, Deus não Cria o mundo senão em vistas do Homem, ele só programa as etapas e só as realiza com vistas ao Homem três vezes “Criado”, e é esta intenção, esta particularidade que orienta desde o início a Criação. O antropocentrismo flagrante da “Bíblia das Origens” é proclamado por este “Criou” desde a primeira linha.

Mas então se objetará talvez, que vem fazer o “Criou” do versículo 21, que nada tem de aparentemente antropocêntrico, ao contrário? Não surge subitamente no texto, vinte versículos depois do primeiro, a respeito dos peixes (aos quais estão associados os pássaros) muito mais próximos do Homem que os “animais terrestres” que os seguem e que, eles, não têm direito ao “criar”? Não é dito que o sexto dia, justo antes de Criar o Homem por três vezes, Deusfez” os animais terrestres, como “fez” o firmamento e os astros? Como se o texto empregasse arbitrariamente ora “Criar” e ora “fazer” ou ainda perífrases para dizer a mesma coisa. Como se não fosse o verbo que contasse mas o fato que Deus disto é sempre o sujeito, e se afirma assim neste RELATO como o único Criador?

Respondo que em um caso pelo menos, aquele da vegetação, é dito que é a terra que a “produz” e não Deus, mesmo se é dito anteriormente que Deus convidou à terra a proceder a este crescimento (1,11-12). Logo Deus não é sempre neste RELATO, se foi cuidadosamente redigido, o autor direto de sua obra. Iria ainda mais longe: ele não assume este papel em nosso texto senão como sujeito do verbo Criar. As três vezes onde é sujeito do verbofazer”, a forma utilizada deste verbo pode ser lida como um causativo, e traduzida não por “fez” mas por “fez fazer”.

As marcas distintivas da forma ordinária do “causativo” hebreu desaparecem na forma reduzida do “incompleto” que utiliza o estilo narrativo deste relato, em particular os versículos 7, 16 e 25, onde Deus é sujeito de WY’SS (apócope incompleta de ‘SSH, “fazer”). Da mesma forma nos versículo 4 e 7, quando é dito em nossas bíblias que Deusseparou”, a apócope incompleta WYBDL, de BDL, “separar”, pode ser lida “fez separar”.