RENASCIMENTO — UM OLHAR RÁPIDO SOBRE A ARTE RENASCENTISTA
Uma hermenêutica da Renascença através de sua arte
Julia de Castro Grant e Murilo Cerdoso de Castro
A arte surge necessariamente no interior da experiência humana como uma das formas fundamentais de toda cultura. Razão pela qual, muitas das vezes, as grandes transformações que se processam na arte, apontam ou antecipam transformações culturais. Um exemplo bem recente é o chamado “pós-modernismo”, que acabou se convertendo em uma expressão muito usada nas ciências humanas, para caracterizar a cultura de nossa época.
Identificado originalmente a uma corrente artística pretensiosamente revolucionária, na arquitetura do inicio deste século, o pós-modernismo se manifestou em outros domínios artísticos, chegando mesmo a qualificar uma corrente radical na própria ciência. Embora ainda muito controvertido, este movimento originário do meio artístico reúne em si uma série de aspectos que podem caracterizar de alguma forma traços da cultura contemporânea.
Essa capacidade da arte de congregar elementos que “re-velam” (mostram e ocultam ao mesmo tempo) uma época, e, por conseguinte, do artista se apresentar como uma espécie de profeta dos tempos, convidam-nos a refletir neste trabalho sobre o sentido da obra de arte, e da “re-velação” que possibilita de uma cultura do passado. Neste sentido, buscamos na hermenêutica, de certa forma, uma orientação para nossas investigações.
Hans-Georg Gadamer (1996), dando continuidade ao pensamento de Heidegger, fez da hermenêutica uma orientação e um caminho filosófico na revelação de uma cultura. Em sua obra mestre Verdade e Método, Gadamer elaborou a fundo a proposta hermenêutica de Heidegger, utilizando-a como uma possível chave para a interpretação da cultura. Tomando a arte como um exemplo, Gadamer a reconhece como muito mais que um simples material de consumo. A arte é expressão e compreensão do mundo, indefinidamente retomada pelo esforço de representação que constitui o jogo estético em si mesmo.
Se considerarmos com Michel Henry (1987) que toda cultura é uma cultura da vida, no duplo sentido que a vida constitui ao mesmo tempo o sujeito desta cultura e seu objeto. “É uma ação que a vida exerce sobre ela mesma e pela qual ela se transforma ela mesma enquanto ela é ela mesma aquilo que transforma e aquilo que é transformado.” Em termos mais simples podemos dizer que a cultura designa justamente esta autotransformação da vida, o movimento pelo qual ela não cessa de se modificar a si mesma a fim de alcançar formas de realização mais altas, ou seja a fim de crescer indefinidamente.
A vida que falamos não se confunde com o objeto de uma ciência qualquer como a biologia, se evidenciando a todos enquanto somos “seres vivos”. No próprio ato cotidiano de nos sentirmos, a vida se sente e se experimenta a si mesmo em todos os seres vivos. Neste sentido mesmo podemos dizer que a arte é, com efeito, uma atividade desta sensibilidade, a realização de seus poderes. Para Michel Henry a arte se destaca como manifestação cultural por ser a mais legítima representação da vida.
Uma história da arte, enquanto discurso histórico sobre a produção artística de cada época, pode assim se colocar como o estudo das maneiras pelas quais o espirito se ligou a perspectivas e significações na constituição de uma cultura. Entretanto, o perigo que ronda este esforço é o de se acabar preso, entre a perspectiva histórica e a perspectiva crítica, como nos lembra Henri Zerner (1976), perdendo contato com a vida que através da arte se manifesta.
Empírica e positivista, a história tradicional da arte tem uma grande desconfiança de toda teoria e mesmo de toda interpretação das obras. A crítica, por seu lado, toma quase sempre, como fato, que aquilo que procura definir, iluminar na obra, sendo o que justamente a torna uma obra de arte, não está ao alcance do tempo e, consequentemente da história.
Outro problema consiste em que a crítica hermenêutica, choca-se, logo de início, com o fato de que o visível não se pode dizer, não se reduz a um discurso. Esse obstáculo, que pode parecer insuperável, justifica em parte a trajetória da história da arte. Os filósofos, os psicólogos, os etnólogos veem na arte uma forma de expressão não verbal. Para Zerner a história da arte, no entanto, que há meio século sofre de profunda estagnação teórica, não se encontra em condição de responder às perguntas que lhe são assim colocadas.
Apesar disto, a história tradicional da arte continua tentando ser uma restituição do passado artístico, e neste sentido mantém sua proposta de: fazer o inventário das obras, estabelecer a biografia dos artistas, decifrar a autoria e a data das obras a partir de sinais externos (assinaturas, documentos de arquivos, tradições antigas, etc. …), dizer a data e a autoria mediante o estilo a partir dos dados externos, e, enfim, reconstituir, através do estudo dos textos, o modo pelo qual as obras foram vistas, pensadas e compreendidas.
São impressionantes os resultados dessa história da arte: ela descobre, restaura, salva. Mas o empirismo que caracteriza essa disciplina continua sofrendo críticas, devido à sua ingenuidade, real ou fingida. Afinal de contas o que ela traz, de maneira sub-reptícia, é apenas sua interpretação, sua ideologia, assentada no sistema de valores de cada escola de história da arte. Forma-se o perigoso “círculo hermenêutico, nos afastando da possível comunhão de sensibilidades entre o artista e o espectador de sua obra.
Segundo Zerner, desde o Renascimento, de Vasari até os teóricos da arte e mesmo além deles, uma corrente de ideias históricas se empenha em isolar a arte dos outros aspectos da vida. Trata-se, sem dúvida, de um desejo, de um ideal que a realidade da arte, da sua verdadeira história, e da sua crítica hermenêutica procuram ultrapassar, nem sempre com sucesso. Assim mesmo, ela continua se insinuando na história da arte, na história tradicional, que nada mudou desde Vasari, em seus fundamentos.
Durante quase cinco séculos, a arte definiu-se ao mesmo tempo que se fazia, deu realidade às suas reivindicações de autonomia, e a história da arte buscou acompanhar seus movimentos. Neste sentido, Vasari aplicou à história da arte um esquema biológico: nascimento (ou renascimento), juventude e maturidade da arte, em três grandes etapas, sendo a última em data caracterizada pelo domínio do estilo (“maniera”), a partir de Leonardo. Essa, resumida em grandes linhas, é a história da definição da arte, que se consagrou desde Vasari. Uma história impregnada da ideologia progressista que invadiu o pensamento moderno, vendo na arte o aperfeiçoamento cada vez mais preciso de seu sistema.
Por outro lado, para Vasari, a história da arte é a história dos artistas. A biografia é a explicação “necessária à compreensão” da própria arte. Mesmo a arte nacional justifica-se por intermédio do indivíduo; a arte francesa é a arte exercida por artistas franceses, devendo-se admitir que esses indivíduos possuem traços nacionais mais ou menos fixos, de ordem espiritual , com a clareza ou o equilíbrio do espírito francês, traços que se expressarão por certa forma da arte como uma “paleta francesa”.
Mais recentemente, a história da arte incorporou a ciência dos connaisseurs, a qual, até o meio do século XIX, havia permanecido independente e transmitia-se oralmente. Ela deu tratamento sistemático a suas técnicas de atribuição, submeteu o olho a um treinamento extraordinariamente especializado. Essa insistência obsessiva com a “mão”, essa necessidade de descobrir o artista atrás da obra impõe uma interpretação. É difícil compreender isso, enquanto se permanece no domínio da arte que a fez nascer, e que justifica parcialmente a sua prática. Ela mostra-se bem no que é, quando disseca-se uma obra em pequenos pedaços ou pedaços executados pelos diferentes membros da oficina do mestre.
Diante de todas essas idas e vindas para se compreender a obra de arte e a “re-velação” que pode ou não oferecer da época de sua produção, deve-se dar um destaque ao esforço da “escola de Warburg”. Carlo Ginzburg (1991) demonstra como em uma passagem programática de sua extensa bibliografia A. Warburg invoca, a exemplo de Burckhardt, uma história da arte com um alcance mais amplo e dilatado do que a história acadêmica tradicional — uma história da arte que possa desembocar na teoria da cultura (Kulturwissenshaft).
O objetivo de Warburg e de seus seguidores com F. Saxl, E. Panofsky e E. H. Gombrich, era duplo: por um lado, conhecer as obras de arte à luz de testemunhos históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer sua gênese e seu significado; por outro, a própria obra de arte e as figurações de modo geral deveriam ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstrução histórica.
Como sabemos a herança clássica, transmitida e deformada através de múltiplas mediações durante a Idade Média, “renasce” finalmente nos séculos XV e XVI. Mas o que significa este renascimento — para Warburg e sua “escola”, uma das revivescências que caracterizam periodicamente a civilização europeia. Mas Warburg vai além: a adoção do Pathosformeln da Antiguidade, por parte dos artistas do Renascimento, implica também em uma ruptura não só com a arte mas com toda a mentalidade medieval.
Panofsky e Saxl aprofundam esta intuição: a redescoberta do antigo, em particular de suas formas artísticas, implica na consciência exata da “distância cultural entre presente e passado”, ou seja, na fundação da consciência histórica moderna. Fundação, por sua vez, que Panofsky aproxima da descoberta renascentista da perspectiva linear, que formula de modo pretensiosamente científico o problema da “distância entre o olho e o objeto”.
Ginzburg conclui que diante de um problema de história da arte (a redescoberta das formas da arte clássica), pode se ensaiar também um movimento de interpretação da arte enquanto revelação de uma cultura. A escola de Warburg justamente se insere neste movimento, bem retratado por Panofsky e Saxl em sua tentativa de formular o problema histórico geral do significado do Renascimento. Evidentemente os danos que podem resultar de uma tal leitura “fisiognômica” dos documentos figurados são incontestáveis: pode se ler neles o que já se sabe, ou se crê saber.
Diante de todas essas considerações e dificuldades apontadas, na tentativa de se compreender um pouco melhor a Renascença, esta “época ambígua” no dizer de Gusdorf (1967), tomaremos uma obra maior de Rafael, como um caso exemplar da arte como possível revelação de uma cultura. Escolhemos a Stanza della Segnatura pela junção de ideias e estilo que parecem realizar o impossível: sintetizar uma época de tanto esplendor.
Para Kenneth Clark (1974), Rafael assimilou e unificou os sentimentos e os pensamentos dos maiores espíritos de seu tempo. Ele é o harmonizador supremo e por isto não esta mais na moda hoje em dia. No entanto, foi ele quem melhor conseguiu descrever a civilização europeia no Renascimento. Nos apartamentos do papa a expressão visual que ele soube dar às ideias é uma síntese tão exaustiva quanto foram os discursos dos grandes teólogos de Idade Média.
Rafael foi introduzido no Vaticano por seu concidadão Bramante, que parece ter entretido relações muito íntimas com Julio II. A visão de um único desenho de Rafael teria sido suficiente para provar ao Papa que Deus lhe enviara um outro gênio. A partir disto, não deixou de ser um grande risco, engajar um jovem homem de 27 anos que nunca tentou a pintura em afrescos e que talvez não fosse capaz de expressar grandes ideias pela pintura. Quanto mais, por se tratar, no caso das Stanzas, de decorar cômodos que deviam estar no centro da vida do Papa de suas decisões e de suas meditações.
A Stanza della Segnatura, em particular, destinava-se a se tornar a biblioteca privada do Papa, e também os aposentos onde seriam feitos julgamentos importantes. Rafael conhecia a biblioteca de Urbino, onde os quadros dos poetas, dos filósofos e dos teólogos estavam colocados sobre as estantes que continham suas obras, e ele decidiu levar esta ideia mais adiante. Ele não queria se contentar em pintar os personagens cujos livros preenchiam as estantes. Ele queria estabelecer relações entre eles e, ao mesmo tempo, entre todas as disciplinas às quais eles pertenciam.
O plano para Stanza della Segnatura era sublime: as pinturas deveriam representar a união da religião e da filosofia, da cultura clássica e do cristianismo, da Igreja e do Estado, da literatura e da lei, na civilização do Renascimento. De um lado a Disputa del Sacramento evocando a trindade, os santos e a teologia, na forma dos padres e doutores da Igreja discutindo a natureza da fé cristã a respeito da doutrina da Eucaristia. Questão que alimentava o debate àquela época, buscando na sutileza do pensamento identificar a dicotomia entre substância e função.
Do outro lado, a Escola de Atenas, onde, ao redor de Platão e Aristóteles, uma companhia inigualável de filósofos simbolizam em suas posturas e gestos o mais refinado pensamento que a Antiguidade nos legou. Ladeando este confronto, sobre uma terceira parede, um afresco simboliza a poesia e a música, e sobre uma quarta parede se honra o lugar da lei na civilização.
Rafael, orientado pelo próprio Papa, se aconselhou, junto a cada um dos eruditos que formavam uma boa parte da cúria papal, pois esta sublime obra não deveria se constituir num simples sincretismo, mas na representação daquilo que alguns autores reconhecem como a “grande síntese renascentista”. Por esta razão, nos grupos representados nos quadros, cada detalhe é fruto de muitas entrevistas e de profunda reflexão.
A arte de Rafael está em seu ápice nestes afrescos. Na Disputa del Sacramento, o realismo, a perfeita figuração do espaço em profundidade se revelam em pleno acordo com a problemática plástica de toda a concepção. O afresco, no limite superior da parede, onde está disposto, faz um arco que acompanha a curvatura do teto, acentuando a perspectiva em profundidade, já sugerida pela grade do piso na parte inferior, que se apoia sobre uma base retilínea, sustentada por um jogo de linhas retas e rígidas, obedecendo às leis da perspectiva. Céu e Terra se reúnem na representação, alojando respectivamente personagens celestes e terrestres, ao redor de uma convergência de elementos geométricos distinguidos sob a figuração da Trindade sobre o santo sacramento, representado ao centro desta epifania.
Por exemplo, dos dois personagens no centro da Escola de Atenas, Platão o idealista é posto a esquerda apontando com o dedo indicador o “céu das ideias” e a inspiração divina. Atrás dele deste mesmo lado esquerdo, se alinham os filósofos da intuição e da emoção. Eles se acham mais próximos da estátua de Apolo e se dirigem para o Monte Parnasso.
À direita de Platão andando ao seu lado, se encontra Aristóteles, o homem do bom senso, estendendo a mão como se indicasse ao seu mestre a necessidade de voltar-se para terra, em sinal de que as ideias se encontram aqui mesmo, sob o próprio véu das aparências. Atrás dele estão agrupados aqueles que representam as artes liberais do trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Curiosamente, Rafael representou a si mesmo neste grupo ao lado de Leonardo de Vinci.
Um pouco abaixo deles, Rafael representa um geômetra que parece ser Euclides, sob os traços de Bramante. É normal que este esteja presente pois o prédio onde estão reunidos os quadros destes mestres da razão humana, representa de certo modo o próprio sonho que Bramante alimentava para a nova Basílica de São Pedro. Mais tarde, Rafael deveria se tornar arquiteto, mas em 1510 ainda lhe era impossível conceber um tal prédio, capaz de produzir um dos efeitos mais inebriantes de espaço que a arte já havia criado.
Mesmo projetado por Bramante, Rafael soube se apropriar deste espaço com um repertório de modelos da escultura helenística, artisticamente adaptados ao seu estilo. Um dos figurantes, no entanto se afasta deste estilo: o filósofo sentado no primeiro plano, que não aparecia no esboço desenhado por Rafael. De onde ele viria? Hoje em dia reconhece-se sua origem como sendo do teto da Capela Cistina: Rafael tomou-o emprestado de Michelangelo.
Além dos personagens citados encontramos ainda: Sócrates contando seus argumentos com os dedos diante de Alcebíades, armado mas escutando afetuosamente; Pitágoras tentando apreender em tabelas harmônicas a música das esferas; Heráclito escrevendo suas charadas filosóficas; Diógenes deitado quase sem roupa sobre os degraus de mármore; Arquimedes desenhando suas figuras geométricas; Ptolomeu traçando o globo celeste; e outros tantos mais cuja identidade ainda hoje é controvertida.
Esta congregação de pensadores nunca havia sido reunida num único quadro, talvez nem mesmo concebida antes da Renascença e o que mais nos surpreende é que agora se encontra disposta na própria biblioteca do Papa, sob sua “proteção”. Em uma sala de importância particular na rotina do papa, onde teólogos e o próprio papa poderiam contemplá-los e quem sabe deles se inspirar. Eis um dos ideais do espírito renascentista, ao resgatar a Antiguidade em perfeita associação com a fé cristã.
Não temos evidência nenhuma sobre as leituras de Rafael. Certamente para esta empreitada ele deve ter se preparado bastante junto aos eruditos que circundavam o Papa assim como consultando a obra de Marsílio Ficino. O fato é que a Escola de Atenas reúne umas 100 figuras importantes do pensamento grego, todas juntas em um momento imortal sob o arco de um pórtico pagão.
Diante desta glorificação da filosofia, na mesma sala, na parede oposta, encontra-se uma apoteose da teologia, o quadro da Disputa del Sacramento. Segundo Huygue (1955 e 1960), um panorama tão majestoso que é capaz de converter até mesmo um céptico aos mistérios da fé. No topo, Deus o Pai (na figura de Abraão?) segura o globo com uma mão e com a outra abençoa toda cena. Abaixo dele, o Filho sentado como em uma concha; à sua direita Maria em adoração humilde e à sua esquerda o Batista com seu cajado de Pastor coroado com uma cruz. Sob ele uma pomba representando o espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade
Sentados em uma nuvem, a volta do Salvador estão doze figuras do Antigo Testamento ou da História Cristã: um Adão atlético, Abraão; Moisés e as tábuas da lei, Davi, Judas Macabeus, Pedro e Paulo; São João, São Tiago Maior, São Estevão, São Lourenço e dois outros de identidade duvidosa. Entre eles kerubims e serafins e anjos tecem uma harmonia de sons dividindo e unificando essa assembleia celeste da terrestre, dois kerubims sustentam, o evangelho, em torno do qual, teólogos se reúnem para desvendar os problemas da Teologia. São Jerônimo com sua Vulgata, Santo Agostinho com sua Cidade de Deus, Santo Ambrósio, os Papas Anacleto e Inocêncio III, os filósofos São Tomás de Aquino, São Boaventura e Duns Scoto; Dante; Fra Angelico e Savonarola, e num canto careca e feio seu amigo Bramante. Em todas estas figuras humanas Rafael alcança um alto grau de individualização, fazendo de cada face uma biografia completa, e reunindo em toda esta configuração elementos importantes do credo cristão.
Um outro aspecto que nos surpreende na Stanza della Signatura, dada a função que este aposento teria na vida do papa, é a conjunção em um mesmo ambiente de todos os elementos relevantes do pensamento renascentista. Com efeito, de acordo com Frances Yates (1966), tanto na Escola de Atenas quanto na Disputa del Sacramento, Rafael parece seguir, em princípio, uma técnica altamente promovida nessa época renascentista, resgatada também da antiguidade clássica, de autores como Cícero e Quintiliano: a arte da memória. Segundo esta arte, para se desenvolver a memória e torná-la capaz de sustentar o pensamento discursivo, era necessário se apoiar no uso de “lugares” e “imagens”, ou seja, dispor imagens que nos façam recordar o que desejamos, em lugares previamente vislumbrados para tal.
Concluindo, os principais traços do programa de renascimento cultural, parecem estar representados na Stanza della Segnature. Na Escola de Atenas se expressa o surgimento de academias laicas e livres paralelas às universidades convencionais, nas quais imperavam as versões cristianizadas dos pensamentos de Platão, Aristóteles, Plotino e dos estoicos e as discussões sobre as relações entre fé e razão. As academias que descobrem outras fontes do pensamento antigo, se interessam pela elaboração de conhecimentos sem vínculos diretos com a teologia e a religião, que, por sua vez, incentivam as ciências e artes.
Por outro lado, na Disputa del Sacramento em oposição à Escola de Atenas, valoriza-se a preferência pelas discussões em torno da religião e da fé em clara separação ao exercício de uma nova razão e de uma nova política, fundadas na filosofia Antiga. Assim sendo, no projeto desta stanza do Papa estão reunidas as imagens dos princípios que devem nortear o pensamento renascentista, sobre um fundo celeste, no caso da Disputa, e de um pórtico antigo, no caso da Escola.
Para Seznec (1993), o caráter didático da obra exposta na Stanza della Signatura é deveras explícito. Ele se revela à primeira vista, na demonstração do parentesco espiritual profundo entre a arte Rensacentista e a arte medieval. O destino mesmo da stanza lhe impunha este caráter: sala de tribunal, servindo inicialmente como biblioteca. Ora, as bibliotecas tradicionalmente recebiam uma decoração “enciclopédica”, cujo esquema assim como a ordenação dos livros era ordenada pela Biblionomia de Richard de Fournival.
Assim sendo, na Idade Média, engenhosas pinturas celebravam as artes liberais e todas as disciplinas então reconhecidas: Teologia, Filosofia, Medicina e Direito. Alegorias de todo tipo as representavam, ornando as bibliotecas desde esta época. Desta maneira entendemos melhor porque Rafael faz, na Stanza della Signatura, as Ciências e as Artes encontrarem as Justiça e as outras Virtudes irmãs: a Força, a Temperança e a Prudência.
As Ciências e as Artes não figuram nessa stanza, apenas sob a forma de alegorias, mas são ilustradas em quadros, onde o mundo pagão toma um lugar considerável. Embora o Direito seja glorificado através de uma cerimônia eclesiástica, e a Teologia por um concílio reunido ao redor de um altar onde se focaliza o divino sacramento da eucaristia, a Poesia e a Filosofia tem por representantes figuras de sábios e de deuses da antiguidade.
Apolo aparece três vezes. Sua estátua e a de Minerva ornamentam o pórtico da Escola de Atenas, onde grupos de estudiosos, dominados como vimos pelas figuras de Platão e Aristóteles, compõem as artes liberais, se posicionando assim em torno da Filosofia, figurada como eixo central por estes dois filósofos. Apolo aparece de novo na abóbada da sala, como espirito vitorioso do mundo obscuro da matéria, testemunhando o suplício de Marsias. Por último, Apolo é retratado, acima da janela, cercado de Musas, tocando uma viola às margens do Castilia, enquanto os poetas sobem a colina seguindo o apelo de seu canto.
Para Seznec, citando Edgar Wind, a chave desse ciclo de representações está na doutrina corrente no círculo de humanistas, ao qual pertencia Rafael, visando conciliar o pensamento de Platão, cujas obras foram redescobertas e traduzidas na Renascença, com o de Aristóteles, cuja herança intelectual havia predominado por toda a Idade Média. De acordo com esta corrente, toda e qualquer proposição de Platão poderia ser interpretada ou transposta em uma proposição aristotélica, se levada em consideração a diferença de linguagem de cada pensador, ou seja, o entusiasmo poético platônico e a análise racional aristotélica.
Razão pela qual na Escola de Atenas o deus da Poesia, Apolo, e a deusa da Razão, Minerva, presidem o debate que opõe esses dois filósofos ao centro do quadro e que se amplia e se particulariza através de seus seguidores, que se posicionam assim de um lado e de outro de Platão e de Aristóteles. Essa armadura intelectual comanda o ordenamento de todo o quadro: a dialética é assim promulgada como um contraponto visual, através da harmonia que reina nesta espécie de discordia concors.
O dedo de Platão apontando para o alto, pode ser seguido em sua direção através da abóbada da stanza, até alcançar no lado oposto a Trindade sobre a eucaristia, representada na Disputa del Sacramento. Assim o equilíbrio não é rompido, a ordem é preservada na simetria entre as representações das fontes dos princípios que devem reger o pensar e o agir humanos: Filosofia e Teologia. Neste sentido, concordamos com Seznec que a Stanza della Signatura marca o esforço do renascimento de arejar o pensamento medieval, mas não de rompimento com o mesmo. Mais do que uma restauração Rafael redescobre o segredo de uma arquitetura intelectual, perdida desde Dante e Giotto, e tenta a seu modo reestabelecer as bases de uma síntese necessária para o renascimento do “homem novo”, tão pregado por São Paulo.
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