EVANGELHO DE TOMÉ — Logion 35=>LOGION 36-37<=Logion 38
(36) Jesus disse: não se preocupem desde a manhã até a noite e desde a noite até a manhã pelo que tereis de vestir.
(37) Seus discípulos disseram: em que dia te revelarás a nós? em que dia te veremos? Jesus disse: quando deixeis vossas vergonhas, quando tomeis vossas vestes, as puséreis a vossos pés como os pequeninos e os pisoteáreis; então verei ao filho daquele que está vivo e não temereis. (Roberto Pla) EVANGELHO DE JESUS: BUSCAI PRIMEIRO O REINO DE DEUS
Roberto Pla Pela vestimenta, ou por seu contrário, a nudez, se vem expressar de maneira metafórica na linguagem testamentária realidades de ordem psíquica alheias ao que elas significam em seu sentido literal. Este fenômeno expressivo é bastante notório e muitas das locuções de “vestição” foram assumidas com facilidade em sua acepção metafórica pela exegese tradicional, entendendo-se que o sentido de “veste” pode aparecer aplicado ao que se superpõe, ou se agrega à coisa da qual se fala, em qualquer das esferas espiritual, psíquica ou física (material).
Tal é o caso deste logion 36. Na versão sinóptica de Mateus e Lucas resulta indubitável o sentido reto da veste para cobrir o corpo, e incluso a perícope o confirma: “(Não é) o corpo mais que a vestimenta?”, mas a leitura do texto completo permite esclarecer em seguida que tanto a vestimenta como o alimento são tomados ali como figuras para transmitir algo de maior alcance. O importante é a busca do reino e os demais são “agregados”, afãs próprios do viver mundano do gentio, quer dizer, do homem não dotado para assumir uma vida de disposição essencialmente religiosa.
A acepção metafórica neste logion ainda é mais acentuada que nos sinóticos. Este sentido de coisa agregada da que há de se desprender, desapegar, para ascender ao reino, é o que toma habitualmente a “vestimenta” no evangelho, embora às vezes possa aparecer como uma manifestação do poder verdadeiro. Assim ocorre quando Jesus no episódio da transfiguração que “suas vestimentas se tornaram resplandecentes” (Mc 9,36), ou quando Cristo ressuscitado pede a seus discípulos: permaneçais na cidade “até que sejais revestidos de poder” (Lc 24-49).
Falar de “revestimento” é uma forma muito paulina, embora exclusiva, de expressão e há muitos exemplos nas epístolas do apóstolo, mas é de observar que em todos os casos a significação profunda do “revestimento” é o despir-se até a nudez de todo vestido superposto, de toda agregação errônea à realidade “em si”, ao ser puro. Assim fala o apóstolo de: “revestimento de incorruptibilidade” (1Co 15, 53), das armas da luz (Rm 13,12), ou do Homem Novo depois do ato transfigurador de se despir da veste do homem velho “até alcançar um conhecimento perfeito”.
Estas, assim como as do Homem Novo, «revestido de Cristo», são as únicas vestes, desta nudez espiritual, que pode conservar o homem destinado a ocupar seu trono no reino.
Por essa razão, ao conselho formulado por Jesus de não se preocupar pelo que haverão de vestir, posto que o vestir é somente acessório, respondem os discípulos como uma pergunta que interroga sobre o essencial, por ser isto, o essencial, o único que preocupa seriamente aos discípulos que “adoram ao Pai em espírito e verdade”. Em que dia se revelará em nós o Cristo interior? Em que dia se descobrirá em nós o Cristo oculto?
A resposta seguinte (logion 37), serve para explicar em poucas palavras os termos da obra que o discípulo deve realizar:
a) Deixar a descoberto suas vergonhas, ou descobrir as vergonhas é uma paráfrase de certo uso na linguagem testamentária que se refere diretamente ao sexo; mas tem uma significação de desnudez, enquanto esta, a “desnudez”, vem em consequência do abandono ou eliminação de envolturas (manto, vestimenta, véu), graças ao qual se chega ao descobrimento ou manifestação de algo até então oculto. No texto do logion deve-se entender esta expressão como o equivalente de uma “revelação”, ou “aparição” identificável como uma teofania, ou manifestação de Deus.
b) “Pôr as vestimentas a seus pés”, pisando-as, tal como fazem os “pequeninos” (elakistos), entra no estilo figurado que utilizam os autores evangélicos, canônicos ou não, para explicar que a consciência do homem “recém-nascido do alto”, deve desprender-se, desapegar-se de toda e qualquer conexão residual, de qualquer superposição psico-somática, pois tais sobreposições se dão, em todo homem deste mundo, como um cúmulo de agregações descartáveis quanto ao homem pneumático puro. A consciência do homem deve ficar circunscrita finalmente ao âmbito estrito do ser verdadeiro, do ser “em si”. Nisso consiste a verdade do homem: em ser livre, o qual significa ficar liberado de qualquer identificação com algo diferente da essência pura. O que resta então, depois de concluir tal obra de decantação verdadeira — uma decantação obtida não sem trabalho, humildade, abnegação, sofrimento, gozo e amor — é o Filho do homem, o Espírito que dá Vida, o Filho de Deus vivo. Com a contemplação poderosa do Filho, todo temor, toda busca, concluiu.
c) “Virar o rosto” diante das “vergonhas” reveladas, uma vez postas à descoberto ao alcançar a desnudez pura, é a expressão de um velho símbolo testamentário no que se inscreve a humildade, a vacuidade e o esquecimento da obra realizada como virtudes supremas que devem reger a vida do homem em seguida ao logro da vitória gloriosa da realização espiritual. É esta última atitude “sóbria” (nepsis), muito evangélica, que consiste em “conservar as vestimentas”, emboras elas tenham sido reconhecidas e repudiadas como sobreposição. O autor do Apocalipse de João celebra esta atitude conservadora, sigilosa e prudente, como sinal de bem-aventurança.