Evangelho de Felipe [ASGP]

Desde a época do Evangelho de Tomé, onde ouvimos que “o Reino do Pai já está espalhado na terra, e as pessoas não estão cientes disso” (ditado 113), continuando no mundo do Islã Sufi e outros misticismos atuais, as pessoas espirituais têm procurado ver por sob e além das aparências, para encontrar o Divino oculto aí. O Evangelho de Felipe faz parte dessa tradição, onde “o mundo se tornou o éon e o éon é a plenitude … velada em um dia perfeito e uma luz sagrada” (seção 107).

O autor do Evangelho de Felipe é fascinado pelo velado, pela velação e pelos segredos que estão por trás e sob as aparências. O Evangelho de Felipe encontra significado velado no mundo, no éon além e dentro do mundo, e nas palavras de Jesus e na linguagem sacramental da igreja cristã gnóstica. Muitas das passagens desse texto são sobre palavras, os significados secretos das palavras, o significado alegórico das parábolas e o poder dos nomes divinos. O autor procura mostrar o significado velado por trás do que o hinduísmo chama de nomes e formas. Na seção 68, ouvimos falar de três locais físicos para sacrifício em Jerusalém e como cada um deles representa alegoricamente um aspecto da fé cristã. Na seção 80, a única a mencionar o apóstolo Felipe, esse apóstolo conta uma história curta que é imediatamente alegorizada para explicar seu significado secreto. Ouvimos na seção 105 que, embora atualmente tenhamos as coisas desta criação, por trás dessas aparências “os mistérios da verdade são revelados em forma e imagem”. Lemos na seção 59 que “a verdade não veio ao mundo nua e crua, mas veio em tipos e imagens”, uma ideia que pode ser atribuída ao grande filósofo Platão. Esse Evangelho não é apenas um conjunto de verdades doutrinárias dispostas em uma página; é um conjunto de exercícios espirituais que ajudam a treinar os leitores a tomar tipos e imagens e encontrar a verdade dentro deles.

Nesse Evangelho, o mundo é um texto (uma ideia muito pós-moderna desse documento do século II), e o dever do cristão é ler através de suas alegorias a verdade que vela. O Evangelho de Felipe mostra como interpretar o mundo textualmente, defendendo uma abordagem hermenêutica da espiritualidade e da própria realidade. Argumenta que há nomes e realidades por trás desses nomes, e que o próprio mundo é uma alegoria, um conjunto de aparências manifestas que podemos interpretar como um texto para revelar significados mais profundos e complexos. Devemos ir além dos tipos e imagens para a fonte suprema que habita neles agora.

De todos os aspectos do mundo, a sexualidade é aquele ao qual a maioria das pessoas, inclusive o autor do Evangelho de Felipe, dá a maior parte de sua atenção. O cristianismo que se tornou a igreja padrão tendia a considerar a sexualidade como algo semelhante ao demoníaco. Mas o cristianismo gnóstico do Evangelho de Felipe considera a sexualidade semelhante ao divino. Lemos sobre uma união sexual sacramental entre o divino e o humano em uma câmara nupcial entendida como o reino celestial. É-nos dito que “todo aquele que entrar na câmara nupcial acenderá a luz…. Se alguém se tornar um filho da câmara nupcial, ele receberá a luz” (seção 107).

A história mítica humana está inserida em uma metáfora sexual. As seções 70 e 71 discutem como Adão (alma) tinha uma companheira, Eva (espírito), com quem estava unido. Mas Eva se separou de Adão e a morte surgiu. Cristo veio para “corrigir a separação que existia desde o princípio, unindo os dois” na câmara nupcial; ali o espírito se une ao espírito, a Palavra à Palavra, e assim por diante. Aqueles que se unem sexualmente na câmara nupcial da realidade superior são capazes de se tornar humanos, espírito, Verbo e luz. “Se te tornares um dos que vêm do alto, são os que vêm do alto que repousarão sobre ti” (seção 96).

O ritual da câmara nupcial parece capacitar uma pessoa a dar à luz um Eu superior, a se tornar o que é imaginado à luz do rito. De acordo com uma das passagens mais marcantes do Evangelho de Felipe, “No mundo da verdade, se vires algo daquele lugar, te tornarás um com o que é/está aí. Viste o espírito e te tornaste o espírito; viste o Cristo e te tornaste o Cristo…. Nesse outro lugar, vês a ti mesmo — e te tornas o que vês” (seção 38). Essa é uma escrita poderosa destinada a fornecer um caminho para a compreensão, para guiar em direção à experiência.

O Livro Secreto de João, outro texto de Nag Hammadi, transmite o mito gnóstico fundamental da criação ao contar a história do aprisionamento da humanidade em um mundo sombrio, separado do Deus verdadeiro. O Evangelho de Felipe se baseia nesse mito e ocasionalmente se refere a aspectos importantes dele. Por exemplo, ouvimos sobre as tentativas dos regentes deste mundo de enganar a humanidade e sobre o fato de o Espírito Santo ter virado o jogo contra esses regentes. Por meio de seu engano, o Espírito Santo “realizou tudo por meio deles, como desejava” (seção 12). A grande diferença entre o Livro Secreto de João e o Evangelho de Felipe é que, embora o primeiro termine com uma nota positiva, mostrando a humanidade salva pelo poder da providência de Deus, ele é principalmente um relato bastante sombrio da queda e do aprisionamento da sabedoria de Deus nesse lugar inferior. O Evangelho de Felipe, por outro lado, está repleto de alegria e felicidade com a salvação por meio de Cristo que já ocorreu.

Lemos sobre as maravilhas do rito da câmara nupcial e o dom do Espírito Santo que não pode ser tirado. Lemos sobre a futura ressurreição, que depende de já termos ressuscitado agora, e como certamente escaparemos deste mundo no futuro porque recebemos os ritos e a luz que garantirão nossa perseverança no mundo superior. Neste mundo, recebemos a verdade em tipos e imagens; no mundo superior, nós a veremos face a face. O Evangelho de Felipe fala de e para pessoas que foram e que serão salvas do mundo; esse Evangelho é o que a religião gnóstica do Livro Secreto de João se tornou após uma ou duas gerações de integração com o cristianismo.

O Evangelho de Felipe nos diz que a verdade não pode ser encontrada somente por meio de palavras. Em vez disso, as palavras e o mundo são tipos e imagens que apontam para a verdade. Portanto, nem meus comentários aqui, nem a valiosa e detalhada discussão de Andrew Phillip Smith sobre o Evangelho de Felipe devem substituir sua própria decifração ou seu próprio engajamento em ir além dos tipos e imagens para a realidade que está por trás deles. Assim como o Evangelho de Tomé e, até certo ponto, os Evangelhos de Marcos e João, o Evangelho de Felipe é um exercício espiritual, uma coleção de enigmas e charadas que deve nos permitir passar do nível das coisas que são reveladas neste mundo para o nível das coisas que estão veladas. Idealmente, em algum momento, por meio de nosso próprio esforço, as coisas perfeitas se abrirão para nós. Juntamente com as coisas veladas da verdade, os santos dos santos serão revelados, e a câmara nupcial nos convidará a entrar (seção 105).

[Stevan Davies]