CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XV — SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — DOS CARISMAS DIVINOS
III. Do morto ressuscitado pelo abade Macário
É assim, como todos nós lembramos, que um morto foi ressuscitado pelo abade Macário, o primeiro que habitou o deserto de Scete.
Um hereje, seguidor de Eunômio, tentava subverter a fé católica, através dos artifícios da dialética. Já tinha enganado uma grande multidão de homens, quando, a pedido de alguns católicos, que estavam profundamente chocados por tão grande ruína, o bem-aventurado Macário ali chegou, para salvar a simplicidade do Egito inteiro do naufrágio da fé.
O herético o atacou com a sua arte dialética e tentava puxá-lo, aproveitando-se da sua ignorância, para as searas de Aristóteles. Mas o bem-aventurado Macário pôs fim a sua excessiva tagarelice por uma brevidade bem digna dos apóstolos, dizendo-lhe: “O reino de Deus não consiste em palavras, mas em obras de poder” (1 Cor 4,20). Vamos, pois, para os sepulcros e invoquemos o nome do Senhor sobre o primeiro morto que encontrarmos. Como está escrito, demonstremos a nossa fé por obras (Cf Tg 2,14). O testemunho divino revelará com toda evidência onde estão as marcas da verdadeira fé. E não será por frívolas disputas de palavras, que a verdade se tornará manifesta, mas pela potência dos milagres e pelo julgamento daquele que não pode se enganar.
O herege, ao ouvir estas palavras e tomado de vergonha diante do povo circunstante, fingiu, na hora, aceitar a condição proposta, prometendo que lá estaria no dia seguinte.
Nessa hora, enquanto todos se apressam, afluindo ao lugar designado, cheios de desejo de ver o espetáculo, ele, amedrontado pela consciência da sua infidelidade, foge de medo e deixa, sem demora, o próprio Egito.
Depois de o ter esperado com o povo até a nona hora, Macário viu que, por causa dessa consciência, ele evitara o encontro. Toma, então, consigo toda aquela gente que fora corrompida na fé pelo herege, e se encaminha para os sepulcros combinados.
As cheias do Nilo levaram os egípcios a adotar o uso de sepultar os corpos dos seus mortos em pequenas células mais elevadas, depois de os ter embalsamado com drogas de forte aroma. É que, durante uma grande parte do ano, a terra fica encoberta, em larga extensão, pela cheia regular das águas, como um imenso mar, a ponto de não restar outro recurso para viajar, senão o uso das barcas. Assim, a terra, continuamente saturada de água, impede o sepultamento no seu solo. Se, com efeito, se faz aí uma cova para receber os cadáveres, a força da inundação é tal, que a força a devolvê-los a superfície.
Parando, pois, o bem-aventurado Macário junto à tumba de um cadáver antiquíssimo, assim falou: Ó homem, se esse herege, esse filho da perdição, tivesse vindo até aqui junto comigo e se eu, invocando em sua presença o nome de Cristo, meu Deus, te houvesse chamado em voz alta, dize-me se te terias levantado na presença de todos estes que quase foram levados a ruína por sua impostura. Então o morto se levantou e respondeu que sim.
O abade Macário lhe perguntou, então, o que tinha ele sido quando vivia, em que tempo vivera, se tinha ouvido falar no nome de Cristo. Ele respondeu que vivera sob os mais antigos reis, e que não tinha ouvido falar de Cristo, nem de seu nome, naqueles tempos. “Dorme em paz, redarguiu o abade Macário, aguardando que o Cristo te ressuscite com todos os outros, em suas fileiras, no fim dos tempos”.
Assim, o seu poder e graça teriam ficado escondidos, enquanto dele dependia, se a necessidade de toda uma província em perigo, e a sua total devoção e sincero amor pelo Cristo não o tivessem compelido a praticar tal milagre. Pois é certo que não o fez por ostentação de vanglória, mas foi a caridade do Cristo e o bem de todo o povo que lhe arrancaram esse feito.
Foi o que fez também o bem-aventurado Elias, como se vê a leitura do livro dos Reis, quando pediu que o fogo do céu descesse sobre as vítimas postas sobre os paus da fogueira, para salvar a fé de todo um povo, em perigo pelos artifícios de falsos profetas.