Cassiano Collatio XIV-8

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL

VIII. A ciência espiritual

Mas voltemos à exposição da ciência que constituiu o exórdio desta conversação.

Como acima dissemos, a “praktike” se divide em muitas, profissões e atividades. A “theoretike”, por seu lado, se divide em duas partes: a interpretação histórica e a inteligência espiritual.

E por isto que Salomão, ao enumerar a graça multiforme da Igreja, acrescentou: “Todos os que estão junto dele, tem uma dupla vestimenta” (Prov 31, 21).

Quanto a ciência espiritual, ele compreende três gêneros: a tropologia, a alegoria e a anagogia, dos quais se diz nos Provérbios: “Quanto a ti, escreve estas coisas em tríplices letras sobre a largura do teu coração” (Prov 22,20).

A Historia abraça o conhecimento das coisas passadas e visíveis, que o Apóstolo narra deste modo: “Esta escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e o outro da mulher livre. O que nasceu da escrava, nasceu segundo a carne; o que nasceu da livre, em virtude da promessa” (Gal 4,22-23). O que se segue, pertence a Alegoria, porque aí se diz que as coisas que aconteceram realmente, prefiguravam um outro mistério. “Estas mulheres — continua ele — são as duas Alianças: uma, a do monte Sinai, gerando na escravidão, e é Agar. O Sinai é um monte da Arábia, que simboliza a Jerusalém de agora, que e escrava com os seus filhos” (id 24-25).

A Anagogia se eleva dos mistérios espirituais aos segredos do céu, mais sublimes e sagrados, como se vê no que o Apóstolo acrescenta: “Mas a Jerusalém do alto e livre, e é ela que é nossa mãe.” Porque está escrito: Alegra-te, estéril que agora dás à luz, irrompe em gritos, tu que não geravas, porque os filhos da abandonada são mais numerosos do que os daquela que tinha esposo” (id 26-27).

A Tropologia é a explicação moral relativa a purificação da vida e a formação ascética, como se por estas duas Alianças compreendêssemos a “praktike” e a ciência da “theoretike”. Ou que quiséssemos tomar Jerusalém ou Sião pela alma humana, segundo estas palavras: “Louva, Jerusalém, o teu Senhor; louva o teu Deus, Sião” (SI 147,12).

Deste modo, portanto, as quatro figuras, se assim quisermos, se reúnem em uma só, de maneira que a mesma e única Jerusalém pode ser entendida em quatro accepções diferentes: segundo a historia, e a cidade dos Judeus; segundo a alegoria, a Igreja de Cristo; segundo a anagogia, a cidade celeste, “que é a mãe de todos nós” (Gal 4,26); segundo a tropologia, e a alma humana, que é, sob esse nome, frequentemente increpada ou louvada pelo Senhor.

Destes quatro gêneros de interpretação, diz o bem-aventurado Apóstolo: “Agora, pois, irmãos, se eu venho a vos falando em línguas, que proveito vos trago, a não ser que vos fale em revelação, ou em ciência, em profecia ou em doutrina?”(1 Cor 10,1-4)

A Revelação se refere a alegoria, pela qual aquilo que a narrativa histórica esconde, se torna manifesto pelo sentido espiritual. Para dar um exemplo, tentemos descobrir como “os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e foram todos batizados em Moisés na nuvem e no mar”, e como “todos comeram do mesmo alimento espiritual e beberam da mesma bebida espiritual, do rochedo que os acompanhava, e o rochedo era o Cristo” (1 Cor 11,13).

Esta explicação, que mostra a prefiguração do corpo e do sangue de Cristo que recebemos todos os dias, tem a natureza da alegoria.

A Ciência, também lembrada pelo Apóstolo, representa a tropologia.”Esta nos faz discernir, mediante um exame prudente, a utilidade ou decência das coisas que dependem do juízo prático. Como se dá quando nos é ordenado “julgar”, de nós para nós mesmos, “se convém que uma mulher ore a Deus, de cabeça não velada” (1 Cor 11, 13). Tal interpretação contém, como dissemos, um juízo moral.

A Profecia, que o Apóstolo pôs em terceiro lugar, significa a anagogia, que transfere o discurso para as coisas futuras e invisíveis, como neste casos “Não queremos, irmãos, que ignoreis o que diz respeito aos que adormeceram, a fim de não vos entristecerdes como os outros que não tem a esperança. Se, na verdade, cremos que o Cristo morreu e ressuscitou, devemos também crer que Deus trará com Jesus os que adormeceram em Jesus. Assim, nos vos declaramos sobre a palavra do Senhor, que nos, os vivos, reservados para o tempo da vinda do Senhor, não viremos em frente dos que adormeceram em Cristo. Por que o próprio Senhor, ao sinal dado, a voz do arcanjo, ao som da trombeta divina, descera do céu, e os mortos que são em Cristo ressurgirão primeiro” (1 Tes 4,12-15).

Nesta espécie de exortação, a figura que aparece e a anagogia.

A Doutrina expõe simplesmente a ordem da historia, em que não há nenhum sentido mais oculto do que aquele que soa nas próprias palavras. Assim, “eu vos ensinei primeiro, como eu mesmo recebi, que Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia, e apareceu a Cefas” (1 Cor 15,3-5). E também:” Deus enviou o seu Filho, formado duma mulher, nascido sob a Lei, a fim de libertar aqueles que estavam sob a Lei” (Gal 4, 4-5). Ou estas palavras:”Escuta, Israel, o Senhor teu Deus e um Senhor único” (Deut 6,4).