Apocalipse Hades

Evangelho de Tomé – Logion 106

Quem explica mais coisas do Hades é o autor do Apocalipse e estudaremos várias passagens de seu escrito. Quando o Filho do Homem se revela ao autor como o “Primeiro e o último”, “o que vive”, o confessa que tem “as chaves da Morte e do Hades”. Com isto quer dizer que o que alcançou a unidade com Filho do Homem, não se retem na Morte e no Hades, senão que passa pelos caminhos destes ginetes sem detenção alguma.

Segundo diz também o autor do Apocalipse: “Havia um cavalo esverdeado; o que o montava se chamava Morte e o Hades o seguia”. A cor do cavalo se explica pelo verdor do cadáver e o fato de ir atrás do Hades, dá a ordem processional dos fins últimos: A Morte, e o Hades, e depois, a Glória da ressurreição.

Por último, dá o Apocalipse, em uma passagem muito extenso e muito revelador alguma informação acerca da hora final dos tempos. Pela dificuldade de explicar o que aborda, se atém a umas formas míticas das que não será fácil desprender-se.

“O mar devolveu os mortos que guardava, a Morte e o Hades devolveram os mortos que guardavam, e cada um foi julgado segundo suas obras”.

Ao dizer “o mar”, o texto quer dizer, sem dúvida, o reino dos céus em sua acepção subjetiva de ser “as águas”, o elemento designado às almas pela Escritura. Os “mortos” que nesse mar habitam são as almas vivas separadas do corpo. Dito de outra maneira; A Morte e o Hades devolveram as almas vivas que depois da morte do corpo residiam no Hades, que é o mar psíquico.

Havia chegado a hora da consumação, o final do mundo, a terminação do tempo. Por isso havia advertido o autor do Apocalipse um pouco mais acima que “o céu e a terra fugiram de sua presença”, isto é, da “presença” de Aquele. Com isso quer dizer que os reinos que conformam o mundo deixaram de ser, tal como já o havia anunciado Jesus no evangelho quando disse: “Os céus e a terra passarão”.

Mas a Morte e o Hades formam parte dos céus e da terra, e neles, no mundo psicofísico, estão. Por isso seu destino é “passar”, terminar em simultaneidade com eles, com o mundo.

A Morte “passa” porque com o “passar” do mundo a Morte cessa por si só. No mundo está o vivente que a Morte separa da Vida, e o que há de ficar quando o mundo “passe” é a Vida, o que não admite a Morte. Assim pois, a Morte, falta de razão de ser, se desvanecerá como a névoa, posto que nunca existiu em verdade.

Quanto ao Hades, é um lugar sem lugar, invisível, o “estado” ou maneira de ser das almas. Isto quer dizer que as almas sem corpo são almas somente e seu lugar próprio é o reino das almas, o qual por ser puramente subjetivo não está acima nem abaixo, pois não tem lugar. Talvez o mais aproximado a sua carência de lugar seja dizer que está “dentro”, atravé, pois sua substância consiste em ser uma réstia de pensamentos e sentimentos emaranhados.

E por que ia a necessitar essa substância das almas um lugar diferente dos céus e da terra criados? Na terra “vivem” os pensamentos e os sentimentos, a substância, das almas com corpo, e não se vê porque razão não pode essa substância conviver com a substância das almas separadas do corpo.

Assim pois, o Hades não tem porque ser um lugar, senão uma denominação para se referir ao “mar psíquico” das almas que vivem sem corpo e que hão de residir ali até que consumam a purificação que não concluíram em sua vida corporal.

Se se diz do Hades que tem portas é porque quando as almas estão carregadas de conteúdos transitórios, o qual se reputa como impurezas, se diz que “entram”, e logo, quando todo o transitório, mortal, que há nelas, foi descartado pela purificação, se diz que “saem”. Mas da mesma maneira se poderia dizer que quando o mortal se aloja nas almas, não saem elas da Vida, e no entanto, se o mortal é nelas calcinado, a Vida é reconhecida e resplandece.

O processo de purificação que cabe à alma separada não tem porque ser diferente — e não o é — da purificação da alma unida ao corpo. Enquanto a alma não tiver sido purificada pelo espírito padece a “pena de dano” que consiste em não ver a Deus; mas essa privação a conhecem muito bem muitas almas e outras “passam” por ela sem inteirar-se, e são almas que vivem em corpo neste viver terreno, pois essa e não outra é a pena capital da alma.

De qualquer forma, a obra da alma consiste na “negação de si mesma”, a morte do transitório, até o ponto de vir a ser somente a essência, o espírito, que quando foi ungido pelo espírito ao qual se une, é o Cristo oculto, eterno, preexistente. Por isso se diz que Cristo, a luz inextinguível que resta , tem as chaves do Hades e abre suas portas para sempre, pois esse é o Juízo.

“A Morte e o Hades foram arrojados ao lago de fogo — este lago de fogo é a morte segunda”.

A Morte e o Hades acolhem em seu seio às almas separadas, que em conjunto são como um mar, um oceano psíquico, e este mar se costuma qualificar de “subterrâneo” porque ele descansa a terra e somente pode ser visto em transparência de matéria, igual que a substância da alma, os pensamentos e sentimentos, somente são conhecidos através do corpo em que se manifestam. Pois bem, este “mar” repousa por sua vez, sobre o lago de fogo, a raiz, a origem de tudo, aquele que só pode ser : visto” através da alma feita quieta e transparente pela purificação. Quando se compreende este mistério da interpenetração dos Reinos é possível receber a intuição da “presença” de Deus.

Com respeito ao fogo sabemos que no Deuteronômio foi notificado: “Tu Deus é um fogo devorador”. Desse mesmo fogo fala Jesus quando disse: “Vim a lançar um fogo sobre a terra”. Inclusivo, aquelas línguas “como de fogo” que se repartiram e se pousaram logo sobre cada um dos doze renovados apóstolos quando se reuniram o dia de Pentecostes, eram, sem dúvida, vástagos do mesmo fogo de Deus.

A opinião expressa às vezes pela exegese manifesta de que há duas classes de fogo, um de purificação e outro de castigo, parece responder a uma concepção muito limitada da realidade do fogo, deste fogo.

O fogo superior é sempre a ação formosamente destrutora que com sua destruição incansável impulsiona a Sabedoria de Deus. À alma, este fogo e chega sempre como conhecimento que vem para aliviá-la de sua carga de ignorância de Deus.

Dito de outra maneira: a ignorância é a palha que o fogo calcina, e de passagem, deixa o grão desnudo, puro, para a consumação. Ao inverso, o conhecimento o descobre ao grão de beleza de sua desnudez e o grão, depois, se desveste e arroja ao fogo a palha que o estorva para a consumação.

Não são em verdade dois caminhos, senão um e o mesmo, o que descreve o fogo. O retorno e a destruição convergem em ser fogo para consumar. a obra de Deus.

Pela mesma convergência de ser um só caminho que parece dois, há que entender a referência apocalíptica à “morte segunda” provocada pelo fogo. O texto testemunhal desta “morte segunda”, que é a porta para a consumação, aparece nas condições prévias que põe Jesus: “Nega-te a ti mesmo, toma tua cruz e segue-me”.

A “negação de si mesmo” é uma maneira de explicar esse difícil caminho que consiste primeiro em destruir o que é palha em um mesmo e logo na generosidade e valor para desprender-se dela, porque o fácil é crer que a palha é idêntica a si mesmo.

Esta é uma experiência comum e muitos a conhecem. Por cada “camisa” da qual a alma se despoja “há pranto e ranger de dentes”, porque a “morte” que a alma entrega ao fogo, parecia se vida que vestia ao grão; parecia ser o grão mesmo e não o vestido. Ignorava a alma, como logo descobre, que sua desnudez é o único resplendor verdadeiro.

Isto é o que se explica na parábola da cizânia: “E os arrojarão no forno de fogo; ali será o pranto e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. O que tenha ouvidos que ouça”.

A “morte segunda” que o Apocalipse descreve, é a morte da alma, o último trânsito da negação de si mesmo, que Jesus anuncia quando diz em sua hora de agonia: “Minha alma está triste até o ponto de morrer”. Em verdade, quando o lago de fogo tiver feito sua obra, é chegada a hora decisiva, difícil e generosa de “entregar a alma para salvar a Vida”.

Esta entrega da alma para ressuscitar à Vida, pode se fazer como o fez Jesus e o fazem talvez, os “poucos”, os eleitos que chegam ao Filho do Homem antes de saborear a morte. Mas também há que fazê-la depois da morte “primeira”, a do corpo. Em tal caso, reservado aos “muitos”, a “morte segunda”, a da alma, virá por imersão no lago infinito de fogo eterno que é o Hades.

A misericórdia de Deus é a obra eterna de seu fogo devorador. Por isso, quando diz Jesus que o pecado contra o Espírito não será perdoado, nem neste mundo nem no outro (no Hades), o que explica é que o que não tenha recebido a unção ígnea do Espírito antes da “morte primeira”, receberá este batismo em Espírito Santo e fogo, depois, em um imenso banho de fogo preparado para sua alma no Hades, e pelo que há de vir sua venturosa “morte segunda”.

Ali, naquele oceano infinito, receberá a alma a luz do conhecimento que necessita para saber “ver” através do cristal diáfano e já “minguado”, de sua alma negada a si mesma, o raio da presença de Deus que garante sua bem-aventurança.

Roberto Pla