Excertos de Ewa Kuryluk, Santa Verônica e o Sudário
O termo acheiropoietos não vem do Grego clássico mas do koine da comunidade judaico-cristã, pois não foi encontrado nenhum traço anterior ao Novo Testamento. Acheiropoietos foi inicialmente usado como uma designação do “feito por deus” e permanece em oposição ao “feito pelo homem” e perecível, nas cartas de Paulo e no Evangelho segundo Marcos. “Pois nós sabemos”, escreve Paulo, “que se a tenda terrena em que vivemos for destruída, temos ainda o edifício de Deus, uma casa não feita pelas mãos (grifo meu), eterna nos céus”. (2 Cor. 5:1). Numa tendência similar, ele compara Adão, o primeiro homem e um “ser vivo”, a Cristo, “o último Adão” e um espírito doador de vida”, e explica que “não é o espiritual que é o começo, mas sim o físico…”. O primeiro homem era da terra, um homem de barro; o segundo homem é do céu” (1 Cor. 15:45-7). Paulo usa também acheiropoietos como referência à circuncisão espiritual cristã que substituiu o costume judeu: “nele (Jesus) você também foi circuncidado com uma circuncisão feita sem as mãos (grifo meu)” (Col. 2:11). No Evangelho de Marcos a distinção entre o feito pelo homem e o divino é atribuída a Jesus pela falsa testemunha que no julgamento do Senhor assevera que “nós o (Cristo) ouvimos dizer, ‘Eu destruirei esse templo que foi feito com as mãos e em três dias construirei outro, não feito pelas mãos’ (grifo meu)”. (Mc 14:58).
Nos escritos cristãos primitivos acheiropoietos foi usado raramente e de preferência referindo-se às passagens já citadas do Novo Testamento; possuía então um sentido mais amplo e designava tudo que havia resultado da criação divina — inclusive a natureza e a humanidade. O conceito de acheiropoietos tem suas origens na filosofia platônica e neoplatônica que diz que todas as coisas terrenas têm seus protótipos no céu; esses protótipos, produtos do espírito de Deus, foram chamados de acheiropoietoi e tornaram-se, no século III, objeto da controvérsia entre os realistas (Methodius de Olimpo) e os espiritualistas (escola de Orígene) que brigavam a respeito da interpretação correta das palavras de Paulo (2 Cor. 5:1). Mas acheiropoietos mudou, de um termo teológico razoavelmente obscuro para uma palavra mais comum, só nos dias da época bizantina, quando começou a ser usado para designar imagens “não feitas pela mão”.
A criação dos acheiropoietoi milagrosos foi moldada a partir do fenômeno físico de projeção e reflexão; eram associadas à percepção e ao sonho, imaginação e fabricação de arte; aludia ao nascimento e ao renascimento real e espiritual, à sexualidade e à procriação, ao batismo e à ressurreição, e a encarnação e ao retorno da morte de Jesus. A produção divina dos acheiropoietoi envolvia excreção e/ou emanação. Água e outros fluidos, luz, fogo, e energia espiritual faziam o papel de agentes e eram aplicados a vários tipos de material (têxteis, madeira, pedra, etc.) que eram marcados por eles: manchados e umedecidos, impressos e impregnados, espalhados, queimados, tingidos, entalhados, gravados, etc. O milagre era mediado pelas mulheres.
Os acheiropoietoi bizantinos são um eco das imagens divinas antigas que se acreditava caírem do céu. Sua mitologia era devida à existência dos meteoros, e eram tratadas como poderosas filactérias. Na Grécia antiga essas representações “feitas por deus” eram chamadas de diipetes (caídas do céu) e eram na sua maioria associadas a Pallas Athena que “atravessava o céu como um meteoro brilhante” (Iliad. 4.73); daí o nome palladioti (estátua de Pallas). O mais famoso paládio de Athena pertencia a Troia. Foi atirado do céu por Zeus na ocasião da fundação da cidade e mantido como um penhor pela segurança de Troia. A fim de induzir a deusa a proteger a cidade, Hector pediu à sua mãe que separasse o maior manto, e aquele que fosse mais ricamente bordado, para oferecê-lo a Minerva” (Iliad. 6.295). Outras lendas posteriores contam-nos que o paládio foi carregado para fora do templo da deusa por Odisseu e Dionedes, que possibilitaram assim a captura de Troia, e mencionam também um segundo paládio que foi levado à Itália por Enéas e mantido no templo de Vesta, em Roma. Mas a capital romana possui também seu próprio objeto divino, o ancila de Numa, um escudo que havia descido dos céus em resposta às preces do rei.
No século VII a imagem de Jesus de Edessa (v. Primeiras Imagens de Jesus) assumiu presença histórica. O presente de Jesus a Abgar não permaneceu no nicho sobre o portão da cidade, mas foi levada a Santa Sofia, a principal igreja da comunidade grega, onde foi mantida numa urna dourada. Nos grandes festivais da Igreja, o pano era exibido e parece ter sido a causa de muita excitação visual, apesar de ter sido difícil distinguir o que as pessoas viam nele do que projetavam nele. Obviamente, os adoradores animavam o retrato no pano com suas próprias fantasias; desse modo, o retrato parecia sempre vivo e em constante metamorfose. Assim, no domingo de Páscoa, alguns peregrinos testemunharam como a face de Cristo mudou de idade: às seis da manhã ele parecia uma criança, às nove parecia um menino, ao meio-dia um jovem, e às três ele era um adulto pronto a carregar a cruz para salvar a humanidade. O ícone logo começou a suplantar a carta, e em séculos subsequentes Edessa, famosa no passado por estar sob a proteção da Palavra de Jesus, tornou-se principalmente associada à Sua Imagem.
Antes do final do século VI os acheiropoietoi tinham presença sólida nos campos e cidades do império Oriental. “Esses quadros, a grande parte transcritos pela pena humana, poderiam somente pretender ser um retrato secundário e um documento impróprio; mas havia alguns de procedência superior, cuja semelhança derivava de um contato imediato com o original… O mais ambicioso aspirava passar de uma relação filial com a imagem de Edessa a uma fraternal”. O ícone de Abgar foi comemorado em novas lendas. Ouvimos que a filha do Rei Chosroes, o mesmo cujo exército foi derrotado em Edessa com ajuda do retrato “verdadeiro” de Cristo, estava possuída por um demônio. Seu pai tentou pegar a imagem de Edessa mas foi impedido pela população local: fizeram uma cópia exata e a enviaram a ele no lugar do original. Entretanto, assim que a réplica chegou a solo persa, o demônio o sentiu e, aterrorizado pelo seu poder sagrado, abandonou o corpo da garota. Outra duplicada foi venerada pelo Rei Persa Khavad I, o marido da mãe de Chosroes, em agradecimento pela vitória que lhe foi predita por Cristo. Parece que no final do sétimo ou no começo do oitavo século os monofisitas edessenos, competindo com os gregos, adquiririam sua própria imagem “verdadeira” de Cristo, um evento surpreendente se considerarmos seu desagrado pela representação.