Tresmontant Homem Velho

Claude TresmontantSão Paulo e o mistério do Cristo
O HOMEM VELHO E O HOMEM NOVO
O plano da economia da criação do homem, São Paulo no-lo indica num capítulo da primeira carta aos Coríntios, consagrado à ressurreição:

Está escrito (Gên. 2, 7): o primeiro homem, — Adão —, tornou-se uma alma vivente. O último Adão, porém, será um espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o animado (o psíquico), depois o espiritual. O primeiro homem é de terra, feito de ; o segundo homem é do céu. (I Cor. 15, 45.)

Paulo contrapõe neste texto a ordem do animado, do psíquico, à ordem espiritual. O primeiro homem, conforme diz o Gênesis, foi criado “uma alma vivente”. Mas, segundo a Bíblia hebraica, também os animais são almas viventes. O conjunto do reino animal, da ordem biológica, forma, pois, o que a Bíblia chama “a carne”. O hebraico emprega de maneira equivalente as expressões “toda a alma vivente” ou “toda a carne” para exprimir a ordem biológica do mundo animal. “Toda a carne” é o conjunto dos seres vivos, tanto homens como animais, (cf. Gên. 6, 13, 17; 7, 15; S. 136, 25.) E, mais especialmente, para significar o conjunto dos homens. (Gên. 6, 12; Is. 40, 6; Jer. 12, 12; 23, 31; Zac. 2, IV.) A carne, portanto, no sentido bíblico, é a ordem biológica, animada, viva e consciente. E se, como o pensam muitos biólogos, a consciência é co-estensiva à vida, a Bíblia defende uma posição muito moderna, a saber que o biológico é também psicológico.

Paulo opõe esta ordem conjuntamente biológica e psicológica à ordem que ele chama de espiritual (pneumatikon), e afirma que esta, oriunda “do céu”, isto é, sobrenatural, vem em último lugar no plano da criação de Deus. Ela constitui um galardão outorgado ao homem, a fim de que possa realizar seu destino sobrenatural.

O primeiro homem é terrestre, vem da terra. Em hebraico, adam significa simplesmente homem, no sentido específico. Essa primeira humanidade é animal, provém do mundo animal. A segunda, porém, — o segundo Adão —, será do céu, graças a uma transformação operada pela” obra de Deus através do Cristo e no Espírito.

Duas etapas são, portanto, necessárias para realizar o homem e encaminhá-lo para a plenitude de seu destino, conforme o texto profético do Gênesis que promete criá-lo à imagem e semelhança de Deus. A primeira continua apenas a criação natural empreendida já com a cosmogênese e com a biogênese. A segunda, porém, transpõe um limiar decisivo passando da ordem natural para a sobrenatural e é formada pela criação de uma humanidade santa, espiritual, na qual habita o Espírito Santo de Deus, para participar com o Cristo da vida trinitária de Deus. A criação inteira foi encetada no Cristo e é nele que ela continua pela sobre-naturalização da humanidade e pela constituição de uma humanidade espiritual. E é ainda no Cristo que ela terá seu remate quando o Corpo Místico tiver atingido sua idade e conformação perfeita, a plenitude; numa palavra, quando Deus for tudo em todos.

Esta Obra só acabará com a Ressurreição, quando o Cristo entregar o reino nas mãos do Pai.

Importa, por conseguinte, que o homem nasça pela segunda vez. Tal é o ensinamento expresso do Evangelho de João:

“Aquele que não nascer do alto, não pode ver o reino de Deus. Nicodemos respondeu-lhe: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe e renascer? Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não renascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito”. (João 3,3)

É exatamente o pensamento de São Paulo. O homem que primeiro foi criado como ser biológico e psicológico, isto é, uma carne, deve transformar-se pelo Espírito de Deus e no Cristo, a fim de se tornar um ser espiritual, capaz de Deus. Se alguém está em Cristo, nova criatura é. (2 Cor., 5, 17). As coisas antigas já passaram, eis que se tornaram novas, (ibid.) O que Cristo veio fazer foi uma humanidade nova. (Ef. 2, 15.) A nós nos toca cooperar nesta transformação, nesta mutação, despojando-nos do homem velho, a fim de revestir o homem novo: despojai-vos do velho homem que vivia conforme o primeiro modo de existência, — o velho homem que ia se corrompendo pelos desejos da vaidade —, e renovai-vos no espírito de vosso pensamento, revesti o homem novo, o homem criado segundo Deus na justiça e na santidade da verdade. (Ef. 4, 22.) Despojai-vos do velho homem com suas ações, e revesti o homem novo, o homem renovado para o conhecimento, à imagem daquele que o criou. (Col. 3, 9.)