Suso Livrinho da Verdade

Henri Suso — Livrinho da Verdade
Excertos


Resumo
Excertos de GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
O Livrinho da verdade é um breve tratado de mística que compreendia, nem sempre com suficiente clareza (Denifle o definiu como “o livro mais difícil da mística alemã), os problemas fundamentais da especulação eckhartiana e os expõe na ordem ontológica e moral que se tornou clássica de Plotino em diante. A obra acusa a influência do mundo conceituai escolástico e revela já, sob a influência direta do Mestre, o pleno e insuspeitável desejo de ortodoxia que declara ater-se à doutrina dos Padres e à ensinança da Igreja. Mas é esta a primeira e última obra de índole teológico-metafísica de Suso. Uma vez liberada do encanto da especulação pura, a alma terna e femininamente romântica de Suso se encontra de novo a si mesmo no mundo dos símbolos e das visões e ainda afirmando a inefabilidade do Divino e a necessidade moral de evadir-se de todas as imagens, se abre regozijada a todas as formas puras de beleza nas quais vislumbra as pegadas do Inexpressável.

Suso é um místico com coração de poeta, como Eckhart foi um místico com inteligência de metafísico e Tauler um místico com alma de educador. Se o misticismo o conduzia para o silêncio e para a noite sem rosto, o impulso poético o empurrava para o exterior, para o mundo das cores e das imagens e lhe enchia o coração de emoções suaves que, a seu espírito vigilante e ansioso de amor divino, deviam, ainda que inocentes, apresentar-se com um sutil encanto tentador e mundano. Por mais afins que nos pareçam o misticismo e a poesia, podemos imaginar que mesmo a força do seu sentimento estético devia ser motivo de não poucas amarguras interiores: a beleza podia falar também uma linguagem de sedução desde as belas mãos e de um rosto sorridente e despertar a antiga natureza. Era necessário instaurar novamente e sem transações o Divino no humano, reduzindo todo o sentimento e toda a forma ao encanto do que não tem forma e assim, com o progresso de sua purificação moral, se refinava cada vez mais a visão das coisas e a palavra se cobria de uma musicalidade interior que revelava admiravelmente o equilíbrio da adquirida serenidade do espírito. A prosa de Suso está dominada por um ritmo mágico e apaixonado, que marca o ritmo de seu fervor infinito e de sua insaciável sede do Divino: as imagens brotam de sua pena como as prediletas rosas deste maio, esperado sempre com a ânsia de um rapaz enamorado e refletem o espanto com que as recebia, como um dom inesperado, em suas visões e em seus êxtases. Mas tudo, palavras e imagens, está envolvido por uma atmosfera de sonho e de encantamento e por uma inefável vibração de sentimento, própria de quem harmoniza em si, por um prodigioso destino, os sofrimentos mais atrozes com um amor inextinguível. Em Eckhart as belas imagens estão disseminadas como poucas flores legendárias em um imenso e árido deserto ao qual vivificam prestando-lhe austera beleza; para Suso a primavera não tem tempo nem limites, está sempre repleta de flores, sempre acariciada por um sopro refrescante.

O Livrinho da verdade é um solo invernal ainda, já lavrado e semeado. As doutrinas que expõe de maneira tão impessoal e despida não reaparecem nas obras posteriores sob as antigas formas; ficam invisíveis, constituindo o substrato racional de suas confidências e de suas místicas efusões ou ressurgem, como na segunda parte da Vida, harmonicamente unidas com as imagens preferidas. Separando-o da especulação pura de Eckhart, a veemente sensibilidade estética o mantinha sempre em contato com o mundo visível dos ritos e da liturgia e ao mesmo tempo conservava nele um sentido preciso da historicidade de Cristo, em sua concreta e inconfundível pessoa. Apesar da unidade que havia experimentado no conúbio místico, seu poético amor pelas belas formas o mantinha afastado dos torvelinhos do panteísmo e lhe inspirava páginas emocionadas, onde em vão o filósofo buscará o vigor de um pensamento racional, mas onde a Igreja tampouco encontrará rastros de doutrinas heréticas ou suspeitas.

Quem quiser voltar à sua própria origem — diz o Livrinho da verdade — deve conhecer o princípio de si e de todas as demais coisas, pois seu princípio é também seu fim. Este princípio não pode ter nome, já que sua natureza é infinita e, portanto, incompreensível para a natureza humana. Poderíamos chamá-la de nada eterno. Contudo, por mais que transcenda todo o raciocínio, é sempre necessário dar-lhe um nome; é,portanto,Inteligência vital e essencial que se compreende e é vida de si mesma: é a Verdade eterna e incriada da qual mana e à qual retorna todo ser, e é unidade absoluta. Em seu fundo a Divindade é única e simples e vive sem operações extrínsecas em tranquilidade e névoa interior. Mas por sua onipotência é também a origem de onde procedem as emanações. Assim a Divindade flui em Deus e se revela como trindade de pessoas, como Deus uno-trino é fonte de toda a operação. A Divindade é Deus e Deus é a Divindade; mas nosso intelecto distingue e vê um ritmo de operações onde não há mais que absoluta unidade. Em Deus todas as coisas são desde a eternidade como em seu eterno modelo e nele são Deus mesmo, uma mesma vida e uma mesma essência; são o próprio Uno sem nenhuma distinção. Quando, pela criação, as coisas saem de Deus, cada uma delas toma sua distinta substância segundo a forma própria que lhe fornece a essência natural separada da essência divina e de qualquer outra substância criada; mas o que são, recebem de Deus. Enquanto a essência da criatura está em Deus, não é criatura; mas a cada criatura mais vale sua essência criada que a própria essência que possui em Deus, já que, se isto torna possível o mal como recolhimento da criatura em si mesma e como isolamento egocêntrico, torna também possível o retorno ao Uno e à reconquista consciente e eticamente válida do Bem.

Este retorno é possível por Cristo. Enquanto cada indivíduo é substância individualizada em seu próprio corpo, no tempo e no espaço, isto é, pessoa empírica, Cristo assumiu a natureza em sua essência universal, reunindo de um modo incompreensível e irrepetível, na unicidade de sua pessoa, a divindade e a humanidade. Também o homem deve tender para esta união, mas para consegui-la deve renunciar a si mesmo. De fato, o homem tem o ser em comum com as pedras, a sensibilidade com os animais, o crescer e o viver com as plantas, a natureza racional com os homens, mas possui de próprio sua própria pessoa individual e inconfundível. A este eu deve renunciar se quer chegar à união com Deus, em quem toda a distinção se anula; e a ele, uma vez alcançada a unidade, acontecerá como ao ébrio que se esquece de si e de sua própria consciência. Não é que o homem que renúncia a si mesmo possa destruir sua personalidade: a anulação é moral, não ontológica; fica-lhe o ser, mas sob outra forma, com outra glória, provido de uma potência muito diferente: esta nova forma é a natureza e a essência divina na qual ele se espraia, como esta se espraia nele, para ser uma só coisa, não por natureza mas por graça. O grau supremo da união não se alcança nunca durante esta vida, porque no homem, tanto seu corpo como suas múltiplas necessidades, o impedem. O corpo é a marca característica do homem, como criatura e essência e, como tal, inibe fatalmente a realização absoluta do destino espiritual da alma. A muito poucos é concedida aqui embaixo uma união divina por comunhão participada; mas esquecem completamente sua vida temporal e, transformados na divina imagem, se identificam com ela. Cristo é o primogênito de um Pai de quem eles, por Cristo e em Cristo, são filhos. A alma que pode alcançar a experiência interior desta beatitude supera toda a dualidade e distinção, próprias da lógica humana e pode intuir de modo super racional o múltiplo no Uno; se intui também a si, como una com o Nada eterno; e pode conciliar no Ser super essencial todas as oposições. Nesta mística noite O intelecto deve desaparecer com suas imagens e conceitos. A compreensão humana submerge no Nada divino e, mesmo que a distinção sobre o ser de Deus e da alma perdure ainda, já não reconhece nenhuma distinção entre sujeito e objeto: sua vida se particulariza em um eterno presente e neste abarca, sem distinção de tempos, o que nossa memória distribui e seleciona. Assim o homem volta a ser como era em Deus antes de ser criado e completa seu ciclo espiritual.

Portanto, não se deduz disto, que a alma seja ao mesmo tempo incriada e criada: ela é e continua sendo criatura; mas, perdida no Nada, não sabe realmente se é criatura ou o próprio Nada. Assim como o olho quando olha perde a consciência de si, tornando-se por seu ato idêntico ao seu objeto, e não obstante continua sendo em si o que é, também a alma pode ser idêntica ao Uno e ao mesmo tempo contemplar e atuar exteriormente. é este o conhecimento matutino, que vê a todas as criaturas, sem diversidades nem diferenças, na Unidade divina, enquanto o conhecimento vespertino conhece as criaturas em si mesmas e em suas distinções e individualidade. No conhecimento matutino a união suprema se realiza não nas faculdades mas na própria essência da alma (o Grunt der sele de Meister Eckhart): a essência da alma se une com a própria essência do Nada e as forças da alma com a operação do Nada, que o Nada opera em si mesmo.

O homem que pôde conseguir a união absoluta não pode deixar de fazer o Bem: para chegar ao ponto mais elevado de suas possibilidades espirituais teve que morrer para a sua natureza criada e egoísta e somente assim renasceu por graça divina no reino do espírito. Agora atua por hábito virtuoso, infundido nele divinamente, e realiza suas obras movido não pela natureza mas pela graça. Havendo-se perdido a si mesmo e relegado sua vontade individual ao fundo do seu eterno Nada, todas as suas ações são livres em Deus: sua vontade não é atraída para o exterior por infinitos motivos que a desviam de sua autêntica natureza, senão que está unida à vontade divina e não quer senão o que ela é, enquanto este querer está em Deus. E visto que mesmo na união mais íntima a alma e Deus conservam cada qual seu próprio ser, é natural que o gozo estático não seja contínuo e permanente, ainda que o homem interior fique todavia unido, mas sem doçuras excepcionais, com o Fundo inefável. Por conseguinte, nem sequer as mais graves amarguras externas podem perturbar esta íntima possessão. Não obstante são pouquíssimos, como já dissemos, os que podem saborear de antemão, na mística experiência, a suprema união que poderá verificar-se unicamente no além. É necessário que todos os demais não se entreguem a perigosas quimeras especulativas, senão que se atenham aos dogmas e aos mandamentos da Igreja católica e atuem em harmonia com esta. Quem, sem ser alcançado pela luz e pela graça divina, se atreve a interpretar o sentido do Nada eterno, cai inexoravelmente no erro e na desordem moral. Os bigardos e os Irmãos do Livre Espírito são homens “selvagens”, que confundem a verdadeira com a falsa liberdade e concebem a vida moral como simples capricho e como desprezo a toda norma e a toda a ação. Não se deve interpretar o Nada eterno como não-ser, como se neste se anulassem, com total indiferença, todos os valores; Deus é a fonte de toda a ordem e de todo o valor objetivo e somente o pensamento, que sabe distinguir o valor da opinião, a liberdade do capricho, o essencial do acidental, pode conduzir com equilíbrio e prudência à beatífica unidade.

Enganam-se os bigardos quando apelam às teses mais audazes de um mestre ilustre (Eckhart); mas é preciso interpretá-lo corretamente. Quando Eckhart fala da absoluta unidade de Deus e parece negar a Trindade, se propõe justamente referir-se à unidade da essência. Quando afirma a aniquilação do homem em Deus, não pretende na verdade negar toda a distinção, mas somente a separação, pois distinção e separação não são uma mesma coisa. Quando chama ao homem bom “filho unigênito do Pai”, significa não uma regeneração natural, mas uma regeneração.

Quando sustenta que o que Cristo faz também o homem pode fazer, refere-se ao justo como tal, em sua formal perfeição inalcançável; e se diz que Deus deu também à alma o que deu ao Filho unigênito, isto deve referir-se ao gozo da essencial beatitude que pode realizar-se apenas na vida ultraterrena. Todas as asserções do Mestre que se referem à identidade unitária de Deus e alma devem, portanto, interpretar-se com discrição, salvando a distinção e aprofundando a gota de verdade que até os bigardos reconhecem.

O Livrinho da verdade termina oferecendo um critério para distinguir os verdadeiros amigos de Deus: o homem verdadeiramente justo morreu para si, para o pecado e para todas as coisas criadas; já não está vinculado ao passado e ao futuro senão que vive em um eterno presente e não se propõe nada seu; não está submetido a nenhuma lei, pois faz espontânea e desinteressadamente o que a maioria só faz por obrigação ou por temor ao castigo. As práticas externas não são para ele o essencial, porque sua ação é a renúncia e sua obra consiste em permanecer quieto, pois atuando descansa e trabalhando é como se não fizesse nada. Com os homens, vive sem ter a impressão de viver: ama-os sem apego e os compadece com verdadeira liberdade, sem ânsia nem solicitude. Reza e se confessa, mas suas orações e sua confissão nada pedem nem o despojam de pecados, senão que expressam seu imutável amor. Cumpre, assim, tudo o que se refere às necessidades exteriores, mas sem aderir-se com a vontade ao que faz; o corpo não é mais que uma máquina que funciona automaticamente por necessidade natural. E se às vezes, abandonado a si mesmo, pode oscilar entre opiniões incertas, basta voltar-se a unir, em seu fundo, com a Verdade para encontrar de novo sua unidade e sua serenidade inquebrantável.

Deve-se reconhecer que Suso foi muito hábil ao expor o sistema de Eckhart do ponto de vista ortodoxo, omitindo ou atenuando os aspectos mais equívocos de seu pensamento e que seu esforço em reduzir não poucos motivos do misticismo neoplatônico do Mestre às doutrinas livres de toda suspeita do tomismo, foi realmente engenhoso; mas mesmo quando sua defesa se faz direta e explícita, não é difícil perceber a inutilidade de suas nobres intenções. Na realidade o Livrinho oculta um defeituoso acordo entre as exigências teológicas de sua inteligência e os aspectos imanentistas de sua experiência religiosa e contém sua doutrina, não a do Mestre, isto é, uma doutrina onde as teorias genuinamente eckhartianas são substituídas diretamente por outras mais cautelosas e ortodoxas, que se propõem representar o fenômeno místico como excepcional e sobrenatural.

A breve menção do “fundo da alma” nada mais é que uma indicação indeterminada que não ousa converter-se em teoria completa. Nem a declarada unidade do ser super essencial chega jamais a proclamar que a criatura é um “puro nada”. Suso reivindica o valor da criação diante da geração eterna e, por conseguinte, acentua o ser do criado como tal, assinalando que a corporalidade é o limite concreto e insuperável da criatura: se em Meister Eckhart o critério ontológico cedia ao ético-místico anulando inexoravelmente a substância individual, pode dizer-se que em Suso, como a exigência moral da despersonalização conserva sua firmeza, o critério ontológico reaparece com sua instância metafísica. Mas, visto que a experiência mística não atesta nenhuma distinção senão uma unidade indivisível, é necessário indagar-se com Delacroix se a tão defendida distinção é simplesmente uma reserva doutrinal e uma posição lógica de intenção restritiva diante de um estado de consciência, ou se revela antes, no próprio estado de consciência, algo que se expressa como limitação. Cremos que também se pode aceitar o segundo significado. Em Suso como em Tauler e na Teologia alemã, surgem — e não por simples exigências teológicas ou metafísicas — não raras instâncias realistas e humanas.

De qualquer maneira, o Livrinho da verdade, ao enfrentar e contradizer com valentia os teólogos oficiais, provocou, como vimos, receios e suspeitas. E Suso compreendeu que, ainda que pudessem ser fundamentadas as discussões e merecida a condenação, continuava sendo inatacável por parte dos homens o que deriva somente de Deus: a luz interior e a beatitude da Comunhão com o Invisível. Para ele, afastar-se das disputas queria dizer unir-se mais estreita e mais coerentemente consigo mesmo e com o Deus interior.