No “Prólogo” do Opus Tripartitum, Eckhart expõe a “primeira proposição” da qual, se formos cuidadosos, quase tudo o que se pode conhecer de Deus pode ser deduzido (LW, I, 168/85). A proposição é: ser é Deus (esse est deus). Ele não diz, como fez Tomás de Aquino, que Deus é ser (deus est suum esse), mas adota a expressão mais extrema de que ser é Deus. Tomás de Aquino, realista e aristotélico, enfatizou que as criaturas possuíam sua própria e proporcional participação no ser, enquanto Deus possuía a plenitude ilimitada do próprio ser. Mas o místico Eckhart enfatiza, em vez disso, a dependência radical das criaturas em relação a Deus. Por si mesma, diz ele, a criatura é “absolutamente nada” (nihil penitus), um “puro nada” (ein reines Nichts: Q, 171, 9/Serm., 173) nem mesmo um modicum. A criatura não tem ser “em si mesma”, mas apenas “em Deus”. As coisas criadas têm ser, sustenta Eckhart, assim como o ar tem luz (LW, II, 274-5). O ar não “possui” a luz; ele simplesmente o recebe enquanto o sol o ilumina. A luz não está “enraizada” no ar, mas em sua fonte, o sol. Da mesma forma, a criatura não “possui” o ser, não o “segura”, mas recebe continuamente o ser de sua fonte, o próprio ser. O ser é Deus, isto é, o ser pertence propriamente somente a Deus, em quem somente ele está originalmente “enraizado” (LW, II, 282).
A prova que Eckhart dá para a proposição de que o ser é Deus é a seguinte. A relação entre o próprio ser (ipsum esse) e um ser particular (ens hoc aut hoc) é como a relação entre a própria brancura e qualquer coisa branca. Assim como as coisas brancas são brancas por compartilharem da própria brancura, os entes individuais existem em virtude de serem eles mesmos. Mas se o ser não fosse Deus, mas algo diferente de Deus, então o próprio Deus existiria em virtude de algo diferente dele mesmo, e outros entes existiriam em virtude de algo diferente de Deus. Mas se fosse assim, Deus não seria (o que queremos dizer com) Deus. Segue-se também disso que Deus existe. Isso pode ser demonstrado pela própria versão de Eckhart do argumento ontológico. Nada é mais evidente do que uma proposição idêntica. Mas se é verdade que “o ser é Deus”, então é verdade que Deus é. Pois os dois termos, ser e Deus, são idênticos.
Além disso, se o ser é Deus, então nada da perfeição do ser lhe falta. Deus é a pureza e plenitude do ser (plenitudo esse, purum esse: LW, III, 77). Ele contém e inclui (praehabeat) et includat: LW, I, 169) de forma preeminente as perfeições limitadas e múltiplas que foram “emprestadas” (Q, 119, 20-20, 6/C1. 128) às criaturas. Finalmente, se o ser é Deus, então Deus é “um”. Ele possui seu ser em uma simplicidade atemporal que exclui inteiramente a sucessividade e a multiplicidade, ou seja, a “negatividade” das criaturas:
Tudo o que está aquém de Deus, na medida em que está aquém do ser, é ao mesmo tempo ser e não-ser, e algo de ser é negado a isso. Pois está abaixo do ser e fica aquém dele. Portanto, a negação lhe convém. (LW, II, 77)
Mas deve-se negar toda negação no próprio Deus. Deus é a “negação da negação”:
Portanto, nenhuma negação, nada negativo, convém a Deus, exceto a negação da negação, que é o que o um, tomado negativamente, significa: Deus é um. Mas a negação de uma negação é a afirmação mais pura e plena. (LW, II, 77)
A frase “negação da negação” é, pelo menos linguisticamente, uma notável antecipação da formulação dos idealistas posteriores. No entanto, Eckhart não pretende usar essa expressão “dialeticamente”, ou seja, ele não quer dizer que Deus superou a alteridade e voltou a Si mesmo. Ele está se referindo à simplicidade imaculada e à indivisibilidade da natureza divina. Se há algo no movimento idealista posterior com o qual ele se assemelha, é o auto-idêntico na “Identitätsphilosophie” de Schelling. Mas deve-se insistir que o “Um” de Eckhart não precisa de diversificação e enriquecimento, porque já é a plenitude do Ser (plenitudo esse). É importante manter este ponto em mente ao discutir abaixo a desanalogia entre Eckhart e Heidegger. Pois o Deus de Eckhart é a plenitude do Ser, a falta de toda negação e, portanto, em nenhum sentido “necessidade” do homem. O homem não é necessário para trazer Deus para o seu “próprio” como na visão de Heidegger da relação do Ser e do homem. É verdade, como veremos a seguir, que os sermões alemães de Eckhart às vezes sugerem algo diferente. Mas é por isso que devemos ler os escritos latinos, pois estes sempre fornecem um corretivo que evita uma má interpretação da linguagem ousada de Eckhart nos escritos vernaculares. Nunca se deve esquecer que Eckhart se considerava um filho fiel da Igreja e de São Domingos, e que não tinha a menor intenção de ensinar uma metafísica herética que negasse as doutrinas ortodoxas sobre Deus, criaturas e alma humana.
A ênfase neoplatônica que Eckhart coloca na “unidade” do ser divino reaparece nas obras alemãs em termos da distinção entre a “Deidade” (Gottheit, divinitas) e “Deus” (Gott, deus). “Deus” refere-se ao ser divino na medida em que se relaciona com as criaturas e na medida em que é nomeado a partir dessas relações. Por isso, “Deus” é chamado bom como a causa da bondade das criaturas, sábio por causa da ordem que estabeleceu no universo, etc. atribuída a Ele. A Deidade é aquela que é mais pura que a bondade e a verdade, que é ainda anterior ao Filho e ao Espírito Santo. O “um” refere-se a Deus:
… lá onde Ele está em Si mesmo, antes de fluir para o Filho e o Espírito Santo… Um Mestre disse: o um é uma negação da negação. (Q, 252, 32-5/Serm., 230)
A Deidade é a unidade absoluta do ser divino, a negação de toda multiplicidade, não apenas da multiplicidade das criaturas, mas também da multiplicidade das Pessoas na Trindade divina. A Deidade é o “fundo” mais profundo (Grund: Q, 264,7/Ev., 258) do qual até mesmo as Pessoas da Trindade fluem. Mas porque esta base está “escondida”, é igualmente um “abismo” (Abgrund: Q, 213,34/Serm., 224). Eckhart também fala da Deidade oculta como um “ermo” divino (Wüste: Q, 213,18/Serm., 223) e como o “ser nu” de Deus (Q, 210,13/Serm., 220). A Deidade transcende totalmente o poder do pensamento para representá-la. Eckhart diz que este não é o Deus do pensamento, mas o próprio Deus como Ele é em si mesmo, “o Deus divino” (der göttliche Gott: Q, 60,26/C1., 70), que não pode ser reduzido às dimensões da inteligência humana.
A afirmação de Eckhart de que ser é Deus pode parecer emprestada do ensino de Tomás de Aquino de que Deus é seu próprio ato de ser. Mas enquanto Eckhart muitas vezes reveste seu pensamento na linguagem de Tomás de Aquino, a tendência básica de seu pensamento é bem diferente. Pois Eckhart nega o princípio central da metafísica tomista, a primazia do esse. Assim, em um surpreendente conjunto de questões disputadas realizadas em Paris, Eckhart parece se contradizer categoricamente e negar ser de Deus. Depois de aceitar os argumentos de Tomás de Aquino para a identidade de ser (esse) e compreender (intelligere) em Deus, ele afirma em suas Perguntas parisienses que chegou a uma conclusão muito pouco homística:
. . . Não sou mais da opinião de que Ele compreende porque é, mas que é porque compreende, de modo que Deus é intelecto e ato de compreender, e o ato de compreender é o fundamento do próprio ser. (LW, V, 40/45)
Há algo maior ou mais profundo em Deus do que “ser”, e isso é “compreender”. Deus não está sendo, formalmente falando:
. . . em Deus não há ser (ens) nem ato-de-ser (esse), porque nada está formalmente presente tanto na causa quanto naquilo de que é causa, se a causa for uma causa verdadeira. Mas Deus é a causa de todo ser. Logo, o ser não está formalmente presente em Deus. (LW, V, 45/48)
Eckhart tenta conciliar esta posição com a que adotou nos Prólogos que {esse est deus} argumentando que o ser não pertence a Deus “formalmente”, mas sim em um sentido “superior”. Isso ocorre porque Deus é “uma causa verdadeira”, isto é, uma que é de um tipo essencialmente superior ao seu efeito, neste caso criaturas. Agora as criaturas têm “ser” propriamente falando, pois ser “criado” é receber ser. Mas Deus é a causa do ser das criaturas. E como Ele é uma causa “verdadeira” ou transcendente, Ele não compartilha o “ser” com as criaturas em um sentido “unívoco” (LW, V, 45/48). Assim, Deus não tem o ser propriamente dito, mas a “pureza do ser” (puritas essendi: LW, V, 45/48).
Mas a pureza do ser é identificada por Eckhart como compreensão. A compreensão não é o ser, mas aquilo pelo qual o ser é conhecido. As ideias não são coisas, mas os meios pelos quais as coisas são conhecidas. Pois vimos acima que Eckhart segue o ensinamento de Aristóteles de que, para conhecer, a alma deve ser “pura” ou “sem mistura” com o que ela conhece. Se o olho fosse colorido, veria todas as coisas sob essa cor. A compreensão deve, se quiser conhecer todas as coisas, estar separada de todos os entes. Mas Deus é o que chamamos de ens separatissimum, o mais afastado de todos de todo “isto ou aquilo”. Portanto, Deus conhece todos os entes, mas não é Ele mesmo um ser. Ele é a “pureza” do ser, isto é, da compreensão.
A noção de que a compreensão é de alguma forma “não-ser” enquanto seu objeto é “ser” é outro tema sugestivo para o historiador da filosofia moderna. Encontramos uma ideia semelhante na “Primeira Introdução à Wissenschaftslehre” de Fichte, e é também essa mesma dualidade que está por trás da famosa observação de Hegel no “Prefácio” da Fenomenologia de que o verdadeiro é tanto substância (ser) quanto sujeito (negatividade). O assunto para Hegel é “negatividade pura e simples”, o “tremendo poder do negativo”. Uma ideia semelhante pode ser encontrada em Jean-Paul Sartre, para quem conhecer é negar.
A “essência nua” de Deus, a vida pura, simples e interior de Deus, é a vida da compreensão, ou, como Eckhart traduz intellectus em seus sermões vernáculos, a vida da “Razão” (Vernunft):
Se tomamos Deus em Seu ser, então O tomamos em Seu vestíbulo, pois o ser é o vestíbulo em que Ele habita. Mas onde está Ele então em Seu templo, no qual Ele brilha como santo? A razão é o templo de Deus. Deus habita em nenhum lugar mais autenticamente do que em Seu templo, na Razão. Como aquele outro mestre disse, Deus é Sua Razão, que vive no conhecimento de Si mesmo, permanecendo somente em Si mesmo, onde nada jamais O perturba. Pois Ele está ali sozinho em Sua quietude. Em Seu conhecimento de Si mesmo, Deus conhece a Si mesmo em Si mesmo. (Q, 197,25-33/Serm., 207-8; cf. Q, “Einleitung”, 23).
Ao atribuir tal primazia à compreensão, Eckhart está defendendo as tradições de sua ordem contra os franciscanos que enfatizavam a vontade divina. Eckhart retoma o “pensamento autopensante” de Aristóteles e o conforma às necessidades de sua metafísica cristã. Como tal, Vernunft de Eckhart, a vida de Deus conhecendo a Si mesmo, fornece um elo negligenciado na conexão familiar entre Aristóteles e Hegel. Quando Hegel identifica o Absoluto como a “Ideia” absoluta, ele concorda com o intelectualismo dominicano-aristotélico da Idade Média, e com o Eckhart alemão em particular.
A atividade do pensamento pensando em si é inteiramente autocontida, começando e terminando na própria mente divina. Portanto, é para Eckhart a forma suprema de “vida”. Com Aristóteles, Eckhart sustentou que uma coisa viva é
. . . aquilo que é movido de si mesmo como de um princípio interior e em si. Mas aquilo que não é movido a não ser por alguma coisa externa, não é nem se diz que vive. Disso resulta que tudo o que tem uma causa eficiente anterior e acima de si mesmo, ou uma causa final fora ou diferente de si mesmo, não vive no sentido próprio. Mas esse é o caso de todas as criaturas. Somente Deus como fim último e primeiro motor vive e é vida. (LW, III, 51)
Deus não requer nenhuma causa eficiente para colocá-lo em atividade, nem age por causa de qualquer fim fora de si mesmo. Ele é a causa e o princípio de todas as coisas, mas Ele não requer nenhuma causa ou princípio para Si mesmo. Daí Eckhart cita com aprovação a Proposição VII do Liber XXIV Philosophorum:
Deus é o princípio sem princípio, o processo sem variação, o fim sem fim. (LW, III, 16, n. I/C1. 239)
A vida do pensamento autopensante é autossuficiente, autocompleta. É neste contexto que Eckhart diz que a vida de Deus é “sem porquê”. Embora seja a explicação (ou “por quê”) de todas as outras coisas, ela mesma não precisa de explicação de seu próprio ser (LW, III, 41/C1. 255). Assim, Deus criou o mundo, não de qualquer falta em Si mesmo que Ele esperava preencher (um “porquê”), mas do brotar dentro de Si mesmo (ebullitio) de Sua própria vida que se derrama sobre as criaturas. Em uma passagem incomumente rapsódica para os escritos latinos, Eckhart diz:
A vida significa um certo transbordamento pelo qual uma coisa, brotando em si mesma, primeiro se inunda completamente, cada parte de si se interpenetrando umas às outras, antes de se derramar e brotar em algo externo. (LW, II 22/C1., 226 )
Embora seja um exagero ver em Eckhart a primeira teoria do processo de Deus, é verdade que ele enfatizou a qualidade viva e ativa da natureza divina. Ele estava à vontade com a doutrina cristã da Trindade, pois viu ali um processo de vida dando origem à vida. E ele considerava o ato da criação como uma extensão adicional da vida interior da Trindade (LW, II, 22/C1. 226). O Pai é o único, o princípio (principium) da vida; o Filho é o gerado; o Espírito é seu amor e ardor mútuos um pelo outro. A criação é o transbordamento, o transbordamento desse processo vital interior em tempo, número e multiplicidade.
Assim, para recapitular a doutrina de Deus de Eckhart, Deus é esse, unum, vivere e intelligere. Mas apenas o último nome penetra além do vestíbulo na essência nua de Deus e fornece o fundamento dos outros nomes.