Ruysbroeck Modo Primeiro Advento

Ruysbroeck — ORNAMENTO DAS NÚPCIAS ESPIRITUAIS

TRIPLO ADVENTO DO CRISTO NA ALMA (cont.)

DO MODO DO PRIMEIRO ADVENTO

CAPÍTULO VIII — DO MODO PRIMEIRO DA PRIMEIRA VINDA

A primeira vinda do Cristo, na prática da vida afetiva, consiste, como nós havíamos dito, numa impulsão interior e sensível do Espírito Santo, que nos estimula e nos arrasta em direção a todas as virtudes. Ora, esta vinda pode-se comparar a irradiação e a potência do sol, que, num instante, do ponto onde se levanta, clareia, banha com seus raios e aquece o mundo inteiro. Também o sol eterno, que é o Cristo, estende seus raios e sua claridade do cimo do espírito onde mora ; ilumina e inflama a parte inferior do homem, isto é, seu coração e suas potências sensíveis, e isto num instante menor que um piscar d’olhos, pois a obra de Deus é rápida, mas, quem deseja experimentar deve ter os olhos da inteligência aptos para a visão interior.

O sol que brilha sobre as terras altas, no centro, contra as montanhas, faz nascer um verão precoce que produz bons frutos, proporciona vinhos potentes e enche a terra de alegria. Nas terras baixas, em direção às extremidades do mundo, o sol também estende seus raios, mas o país é mais frio e a força do calor é menor. Entretanto, faz crescer bons frutos em grande número, mas, o vinho é raro.

Da mesma forma, quando ainda se habita a parte inferior de si-mesmo e a região da sensibilidade, a praticar tudo com boas intenções e com a graça de Deus as virtudes morais e as obras exteriores, proporciona-se muitos frutos excelentes em virtudes, mas, o vinho das alegrias interiores das consolações materiais é mais raro.

Também aquele que quer usufruir da plena fulguração do sol eterno, que é o Cristo em pessoa, deve permanecer com os olhos abertos e habitar sobre os cumes, na parte elevada, recolhendo todas suas potências, e elevando em direção a Deus um coração livre e liberado de preocupações que causam a alegria ou o pesar, e toda criatura. Lá, no coração livre e elevado, resplandece o Cristo, verdadeiro sol de justiça, e estão os cumes dos quais quero falar. O Cristo, com efeito, sol grandioso e claridade divina, clareia, banha com seus raios e abraça por meio de sua vinda interior e a pela virtude de seu Espírito, o coração livre e todas as potências da alma. E, é a primeira obra desta vinda interior na prática da vida afetiva. Assim como a virtude e a eficácia do fogo podem abrasar tudo o que é apto para queimar, também o Cristo, pela sua vinda interior, queima pelo ardor abrasador os corações livres e elevados que estão dispostos, e nesta vinda ele diz: “Partís a praticar desta maneira o que convém para o advento.

CAPÍTULO IX — DA UNIDADE DO CORAÇÃO

O ardor abrasador que acabamos de falar faz nascer uma unidade do coração, que nós podemos adquirir se o Espírito de Deus inflamar este coração com seus fogos. Pois é próprio do fogo unificar e tornar semelhante tudo o que ele pode pegar e transformar.

A unidade consiste para o homem sentir-se recolhido interiormente com todas suas potências, na morada de seu coração. Ela dá paz interior e repouso para o coração, e é um elo que recolhe e envolve corpo e alma, coração e sentido, e todas as potências sensíveis e espirituais na unidade do amor.

CAPÍTULO X — DO RECOLHIMENTO

A unidade do coração por sua vez dá nascimento ao recolhimento, em que nada pode estar dotado se não estiver em si-mesmo recolhido em um. Este recolhimento consiste em se voltar interiormente em direção ao seu próprio coração, a fim de poder compreender e sentir a operação e a linguagem íntimas de Deus. É como um fogo sensível de amor, aceso e atiçado pelo Espírito de Deus no interior, sem que se saiba de onde vem nem o que é.

Capítulo XI — Do Amor Ressentido

Dotado de recolhimento, o homem ressente no coração um amor que o penetra e atinge a potência afetiva de sua alma. Não se pode provar, com efeito, este amor e esta afeição do coração sem estar recolhido intimamente na alma.

Ora, este amor de afeição que se ressente também é um desejo ardente e uma prova muito viva de Deus, como um bem eterno que resume todo o bem. Faz renunciar a toda complacência levada na criatura, mas, não aos serviços que ela pode prestar. A afeição interior, com efeito, sente-se tocada intimamente pelo amor eterno, que deve ser cultivado sem cessar, e ela abandona e despreza facilmente todas as coisas, a fim de poder ganhar o que ela ama.

CAPÍTULO XII — DA DEVOÇÃO

O amor ressentido faz nascer a devoção a Deus e a sua honra. Pois ninguém pode ter em seu coração este sentimento de devoção afetiva sem ter provado a Deus o amor da afeição que acabamos de falar. A devoção existe quando o fogo deste amor faz subir ao céu sua chama ardente. Ela leva então e estimula o homem para o serviço de Deus; ela faz florescer em nosso corpo e em nossa alma a honra e a reverência diante Deus e diante de todos os homens, e Deus reclama de nós em todo o serviço que nós lhe devemos. A devoção nos purifica por inteiro de tudo o que poderia ser para nós um entrave ou um estorvo, e ela nos coloca no caminho direto que leva a beatitude.

CAPÍTULO XIII — DA AÇÃO DE GRAÇAS

Da devoção íntima nasce a ação de graças, ninguém está mais apto a agradecer e louvar a Deus que o homem intimamente devotado. É com toda justiça que devemos a Deus louvação e ação de graças, pois é Ele que nos faz criaturas inteligentes, e que dispôs e ordenou para nós servir ao céu, à terra e aos próprios anjos. Pois Ele se fez homem por causa de nossos pecados e nos deu seu ensinamento, sua vida e seus exemplos. Revestido de uma forma humilde, Ele se colocou a nosso serviço, para sofrer por nós uma morte ignominiosa, pronto a nos dar em recompensa a possessão de si-mesmo e de seu reino eterno. Esquecido dos nosso pecados, nos poupou, frequentemente nos perdoou e nos perdoa ainda; ele derramou em nossa alma sua graça e seu amor, e ele quer fazer sua habitação eterna e morada em nós e conosco. Cada dia de nossa vida ele se digna de nos visitar por seus augustos sacramentos, para responder às nossas necessidades. Ele legou-nos seu corpo e seu sangue como alimento e bebida, que se adaptam ao apetite e à afeição de cada um. Na natureza, nas Escrituras e em tudo que Ele criou, quis dispor como um exemplar e um espelho, onde nós possamos contemplar e aprender a maneira de transformar todas nossas obras em virtudes. A saúde, a força, a energia são suas generosidades, como também as vezes a doença enviada para nosso bem, a miséria no exterior ao mesmo tempo que a paz e o repouso no interior; e de Ele por fim nós temos nosso nome de cristãos, como nossa origem cristã. Por tudo isso é preciso dar graças a Deus desde aqui em baixo, a fim de que possamos lhe dar eternamente lá no alto.

Mas nós também devemos louvar a Deus com todo nosso poder, e isto consiste em prestar honra, reverência e veneração a toda potência divina, pela vida inteira. Louvar a Deus é obra própria, por excelência, dos anjos e dos santos no céu, assim como dos homens amantes na terra. Deve-se louvar a Deus pela afeição e pela elevação das potências, em palavras e obras, com o corpo e com a alma, nos seus bens e no serviço humilde onde se cumpre em todas as circunstâncias. Os que não louvam a Deus aqui em baixo permanecerão mudos eternamente. Louvar a Deus é pelo coração amante o que há de mais doce e mais alegre; e um coração pleno de louvor deseja que todas as criaturas se pareçam com ele. Louvar a Deus, isso não tem fim, pois é a beatitude, e convém de fazê-lo eternamente.