ISAAC LURIA — ROMPIMENTO DOS VASOS
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Cabala
Gershom Scholem: Grandes Correntes da Mística Judaica
Ao lado dessa concepção do processo cósmico, deparamos duas outras importantes ideias teosóficas. Luria as exprimiu em audaciosa linguagem mística, as vezes talvez demasiado audaciosa. Essas duas ideias são a doutrina do Schevirat Ha-Keilim, ou “Ruptura dos Vasos” e a do Tikun, que significa arranjo ou reparação de um defeito. A influencia das duas ideias no desenvolvimento do pensar cabalístico posterior foi tão pronunciada quanto a da doutrina do Tzimtzum.
A primeira considera que a luz divina que inundou o espaço primevo — do qual o espaço tridimensional é um desenvolvimento ulterior — desdobrou-se em vários estágios e apareceu sob uma grande variedade de aspectos. Não cabe entrar aqui em detalhes, quanto ao seu curso. Luria e os seus seguidores tendem, neste caso, a se perderem em descrições em parte visionárias e em parte escolásticas, do processo que ocorre em um reino de existência que, usando um termo gnóstico, bem poderíamos denominar esfera do Pleroma, ou a “plenitude” de luz divina. De acordo com essa doutrina, o ponto decisivo é: o primeiro ser que emanou da. luz foi Adam Kadmon, o “homem primevo”.
Adam Kadmon nada mais é que uma primeira configuração de luz divina que flui da essência do En-Soph para dentro do espaço primordial do Tzimtzum — na verdade, não de todos os lados mas, como um feixe de luz, em uma direção apenas. Ele é, portanto, a primeira e mais alta forma pela qual a Divindade começa a se manifestar depois do Tzimtzum. De seus olhos, boca, ouvido e nariz jorram as luzes das Sefirot. A princípio essas luzes estavam amalgamadas num todo sem nenhuma diferença entre as várias Sefirot, neste estado não necessitavam vasos ou recipientes para contê-las. As luzes provenientes dos olhos, entretanto, emanaram em uma forma “atomizada” na qual cada Sefirá era um ponto isolado. A este “mundo de luzes puntiformes”, Olam Ha-Nekudot, Luria também chama de Olam Ha-Tohu, isto é, “mundo da confusão ou desordem”. Em resposta a uma pergunta concernente à diferença entre sua doutrina e a de Cordovero, Luria expressou-se no sentido de que a Cabala de seu predecessor tratava, no conjunto, apenas dos eventos nesta esfera e de um estado do mundo correspondente a eles. Entretanto, desde que o divino esquema das coisas predeterminou a criação de seres e formas finitos, cada qual com seu próprio lugar designado na hierarquia ideal, foi necessário que estas luzes isoladas fossem capturadas e preservadas em “recipientes” especiais criados — ou melhor emanados — para este propósito particular. Os vasos correspondentes as três Sefirot mais altas abrigaram por conseguinte sua luz, mas quando chegou a vez das seis Sefirot inferiores, a luz jorrou toda de um só golpe e seu impacto foi demais para os vasos que se quebraram e despedaçaram. A mesma coisa, embora não exatamente na mesma proporção, também ocorreu com o vaso da última Sefirá.
Esta ideia da “ruptura dos vasos” foi desenvolvida por Luria de um modo extremamente original a partir de uma sugestão feita no Zohar. Em um Midrasch, que já mencionei na Primeira Conferencia, há uma referencia á destruição dos mundos antes da criação do cosmo atual. A interpretação dada pelo Zohar a esta Agadá é de que ela se reporta á criação de mundos em que apenas as forças da Guevurá, a Sefirá do julgamento severo, eram ativas e que foram portanto destruídas por esse excesso de severidade. Este acontecimento por seu turno é situado em conexão com a lista dos reis de Edom no capítulo 36 do Gênesis, a respeito dos quais nada é dito exceto que construíram uma cidade e morreram. “E esses são os reis que reinaram na terra de Edom”, — significando Edom o reino de julgamento rigoroso, não temperado pela compaixão. Mas o mundo é mantido tão-somente pela harmonia entre a graça e o julgamento estrito, entre o masculino e o feminino, harmonia que o Zohar chama de “balança”. A morte dos “reis primordiais”, a cujo propósito mais coisas são ditas no Idra Raba e no Idra Zuta no Zohar, reaparece agora, no sistema de Luria, como a “ruptura dos vasos”.
Na descrição que os discípulos originais de Luria fazem do acontecimento, este não tem nenhuma característica de caos ou anarquia. Pelo contrário, é um processo que segue certas leis ou regras muito definidas que são descritas com grandes pormenores. Subsequentemente, porém, a imaginação popular apoderou-se do lado pitoresco da ideia e deu uma interpretação literal, por assim dizer, a metáforas como “ruptura dos vasos” ou “mundo tohu”; deste modo, a ênfase foi gradualmente deslocada da natureza legal para a natureza catastrófica do processo.
A causa desta “ruptura dos vasos”, que liberta toda a complexidade do drama cosmológico e determina o lugar do homem nele, aparece na doutrina de Luria e Vital sob vários aspectos. No sentido imediato, o acontecimento é ligado a certas falhas técnicas, na estrutura do átomo-cosmo sefirótico, das quais o “acidente” decorre necessariamente. Num sentido mais profundo, entretanto, o evento se deve áquilo que proponho chamar, com Tishby de causa catártica. Para Luria, as raízes mais profundas das Klipot, ou “cascas”, isto é, as forças do mal, já existiam antes da Ruptura dos Vasos e foram misturadas, por assim dizer, com as luzes das Sefirot e do Reschimu, ou resíduo do En-Soph no espaço primordial. Na realidade o que levou ao rompimento dos vasos foi a necessidade de purificar os elementos das Sefirot pela eliminação das Klipot, a fim de dar uma existência real e identidade separada ao poder do mal. O Zohar, como vimos, já define o mal como subproduto do processo vital das Sefirot e, mais particularmente, da Sefirá do Julgamento estrito. De acordo com Luria, esses produtos residuais encontravam-se originalmente misturados à substancia pura do Scholem Din (Julgamento), e foi só depois da ruptura dos vasos e do subsequente processo de seleção que o mal e as forças demoníacas assumiram existência real e separada num reino próprio. Não foi dos fragmentos dos vasos quebrados, mas da “escoria dos reis primordiais” que o domínio da Klipá surgiu. Mais que isso, a imagem organológica do Zohar desenvolveu-se até a conclusão lógica: a Schevirá é comparada á “irrupção” do nascimento, a mais profunda convulsão do organismo que, casualmente, também é acompanhada pela exteriorização daquilo que poderia ser descrito como produtos residuais. Deste modo, a mística “morte dos reis primordiais” é transformada no símbolo muito mais plausível de um “nascimento” místico de novos recipientes puros.
Esta interpretação catártica do significado da Schevirá foi aceita por todos os cabalistas da escola luriânica. Para alguns deles, entretanto, a ideia de que as raízes do mal residem no “mundo dos pontos”, continuou a ser um obstáculo, pois parecia sugerir uma concepção dualista de Deus, isto é, uma das heresias mais sérias. Por isso sustentaram o ponto de vista de que os poderes do mal se desenvolveram a partir dos fragmentos esparsos dos recipientes que haviam afundado nas profundezas inferiores do espaço primordial e lá constituíram a “profundeza do grande abismo”, na qual mora o espirito do mal. Como todas as tentativas de responder à pergunta, “Unde malum?”, esse esforço para achar uma explicação racional para a existência do mal, ou melhor, de seu mito, não consegue dar satisfação completa. Uma vez mais o caráter gnóstico da doutrina evidencia-se claramente. Também a mitologia dos sistemas gnósticos reconhece o dramático processo do pleroma no qual partículas de luz dos cones são expulsas e caem no vácuo. Da mesma maneira, Luria calcula a queda das divinas “centelhas de luz” do reino divino nas profundezas inferiores.
Os cabalistas posteriores especularam muito sobre este ponto. De acordo com alguns deles, a Ruptura dos Vasos está relacionada, como tantas outras coisas, com a lei de vida orgânica no universo teosófico. Assim como a semente precisa rebentar a fim de germinar e florescer, do mesmo modo os primeiros recipientes tiveram de ser quebrados para que a luz divina, a semente cósmica, por assim dizer, pudesse preencher sua função. De qualquer forma a Ruptura dos Vasos, sobre a qual encontramos exaustivas descrições na literatura do cabalismo luriânico, é o ponto decisivo no processo cosmológico. Tomada como um todo, é a causa daquela deficiência interior inerente a tudo o que existe e persiste enquanto o dano não for reparado. Pois quando os recipientes se quebraram a luz ou se difundiu ou refluiu à sua fonte, ou fluiu para baixo. Os diabólicos mundos ínferos do mal, cuja influencia se infiltrou em todos os estágios do processo cosmológico, emergiram dos fragmentos que ainda retinham algumas centelhas de luz divina — Luria fala exatamente de duzentos e oitenta e oito. Deste modo, os bons elementos da ordem divina vieram misturar-se aos viciosos. Inversamente, a restauração da ordem ideal, que constituí o objetivo original da criação, também é o propósito secreto de existência. Na realidade, a salvação nada mais significa senão restituição, reintegração do conjunto original, ou Tikun, para usar o termo hebraico. Naturalmente muitos dos mistérios do Tikun constituem a principal preocupado dos sistemas teosófico, teórico e prático de Luria. Seus detalhes, sobretudo no aspecto teórico, são de natureza altamente técnica e não me deterei aqui para descrevê-los. O que precisamos considerar são as poucas ideias básicas que encontram sua expressão na teoria do Tikun.