HUGO RAHNER — MITOS GREGOS EM INTERPRETAÇÃO CRISTÃ — OGDÓADE
Mitos Gregos em interpretação cristã, Hugo Rahner, Herder: Barcelona, Espanha, 2003, 381 p. ISBN 84-254-2283-3 título original: “ Griechische Mythen in christlicher Deutung” © 1945, “ Orden der Gesellschaft Jesu, Munich” trad. Carlota Rubies, prólogo de Lluís Duch (autor dos livros “ Mito, interpretación y cultura” e “ Antropologia de la religión” publicados pela mesma editora). Contribuição e tradução de Antonio Carneiro das páginas 96, 97, 98 e 99.
III O MISTÉRIO DO BATISMO
O antigo cristão, para expressar esta salvação através do batismo — que excede em muito a qualquer anseio antigo — “ conforme a sua imagem” , e para dizer o que, junto com Paulo, acreditava desta semelhança com a vida glorificada do Ressuscitado, recorreu a um símbolo extraído de seu entorno piedoso e místico, símbolo que posteriormente, e em sua interpretação cristã, teria uma longa tradição: trata-se do “ mistério da Ogdóada ”1.
Cristo ressuscitou ao oitavo dia, no dia de Helios que, a partir desse momento, seria para os cristãos o primeiro dia, ao igual que outrora foi o primeiro dia da criação do universo. Na sessão de Eranos do ano passado falamos do mistério da luz desse dia de sol. Segundo a antiquíssima concepção pitagórica, o número oito simboliza o consumado, o eterno e o quieto. O oito é o número do cubo, do corpo que se dilata em direção para todos os lados a intervalos regulares, o oito é o número das esferas que giram ao redor da terra, “panta okton” tudo é oito, segundo um antigo provérbio2. Também sabia disso o homem antigo. Agora vê em tudo o símbolo místico do número oito, em suas íntimas convicções de fé e no característico obrar do batismo, e o reveste com um significado cristão. Ao oitavo dia ressuscitou o Senhor; em dia de Páscoa, no oitavo dia de liturgia, Cristo foi batizado. É o mesmo dia em que o Espírito se derramava sobre as águas. Oito pessoas iam na Arca de Noé e esta arca salvífica simboliza a cruz. Tudo está cheio de prodígios e símbolos ocultos. Na “ segunda Epístola de Pedro” (2Pd 2,5) lemos “ Se tampouco perdoou ao mundo antigo, pelo menos preservou ao predicador da justiça. Noé, com sete pessoas, (“ogdoon Noe” ) ao inundar com o dilúvio o mundo dos ímpios.” Isto prefigura o batismo segundo lemos na “ primeira Epístola de Pedro” (1Pd 3,20-21): … “ Nos dias de Noé, o justo, ao construir a arca na qual poucas pessoas, a saber, oito, se salvaram no meio das águas. O que era figura (“antitypon”) do batismo agora, o qual de uma maneira semelhante os salva a vós mesmos, não ao tirar manchas da carne, mas sim justificando a consciência para com Deus pela ressurreição de Jesus Cristo.” A partir daqui gerou-se uma grande quantidade de imagens em torno do mistério do número oito tal e qual as encontramos já desenvolvidas no século II com Justino. Referindo-se à passagem mencionada disse: “ Este é o sentido da palavra de Deus, que nos tempos do dilúvio o mistério para salvação dos homens era já veladamente realidade. Noé, o justo, junto às demais pessoas do dilúvio, a saber, sua mulher, seus três filhos com suas respectivas mulheres, no total de oito pessoas, simbolizam com este número o dia em que Cristo ressuscitou, ao oitavo dia que em virtude d’Ele é sempre o primeiro dia. Pois Cristo, o filho primogênito de todas as criaturas, é também o princípio de uma nova estirpe que Ele devolve à vida por meio da água, a fé e a cruz no mistério da cruz” (Diálogo con Trifón).
O batismo é o renascer da vida eterna, o trânsito ao incorruptível e a paz que expressa o símbolo da Ogdóada, é a antítese do nascimento terreno. Nos “Excertos de Teodoto” de Clemente lemos: “Ao que engendra a Mãe é conduzido à morte e ao mundo; ao que Cristo regenera é transferido à vida, à Ogdóada. Tais morrem para o mundo, mas vivem em Deus, a fim de que a morte seja aniquilada pela morte e a corrupção pela ressurreição”3. A pia batismal é a tumba da vida corruptível e ao mesmo tempo o seio materno da nova vida da Ogdóada do céu; em um sentido completamente diferente e mais sublime que o da Mãe Terra, é o seio materno e tumbo ao mesmo tempo4; a piscina batismal como seio materno e tumba também em Cirilo de Jerusalém, “Mystagogus Catechesis” 2,4 (PG 33, 1080 C), em Pseudo-Dionísio Areopagita, “Ecclesia Hier.” II,2,7 (PG 3, 396 C), em Agostinho de Hipona, Sermão 119, 4: “Vulva matris aqua baptosmatis” ; vide também A.Dietrich, “Mutter Erde”, op.cit., p.114.)). Orígenes escreveu um dos hinos mais belos sobre este “mistério da Ogdóada”, uma louvação ao domingo (“Sonntag”, literalmente dia do sol em alemão) como oitavo dia:
Este dia o criou o Senhor. Há algo que se possa comparar à ele?
Nele teve lugar a reconciliação de Deus e o homem.
Nele apagou-se a batalha do tempo e a terra se fez digna do céu
posto que os homens que eram indignos dela se fizeram dignos
do reino dos céus, posto que o Primogênito foi elevado de nossa
natureza por cima dos céus; abriu-se o Paraíso, pois obtivemos de
novo a pátria velha ao ter sido retirada a maldição e acabado o pecado.
Se bem Deus criou todos os dias, este dia o criou de um modo especial.
Nele fez que se cumprissem seus mistérios supremos.5
Alexandria sempre mostrou grande compreensão por este mistério. Assim o demonstram todavia as palavras de Cirilo: “Para nós este oitavo dia é o dia da ressurreição em que Cristo, que por nós sofreu a morte, ressuscitou. Nós assemelhamos à ele em espírito ao morrer pelo batismo para poder assim participar en ressurreição. O momento mais apropriado para uma cerimônia de iniciação como esta (teleiosis) é o ‘ mysterion’ de Cristo que simboliza a Ogdóada”6. A mística latina do sacramento também conhece este símbolo, seja o “sacramentum ogdoadis” em palavras de Hilário7 ou o “ sacramentum octavi” daquele que tão frequentemente fala Agostinho de Hipona8 : o número oito é o símbolo do renascimento a partir do batismo e também para a Vida Eterna que, no sentido místico, começa na água e se consuma na bem-aventurança, a paz eterna, a contemplação de Deus. Entre o batismo e a visão de Deus se encontra a subida da alma do gnóstico cristão, a paulatina deificação na virtude do batismo. Este também é um mistério do número oito. Escutemos a Clemente de Alexandria:
Daquele que, como disse o apóstolo, chegou a ser um homem perfeito,
disse David: acharão repouso na montanha sagrada de Deus. Reunir-se-ão
na Igreja suprema dos céus, na que se reúnem os filósofos de Deus, cujo
coração é puro e que carecem de mancha alguma. Pois não permaneceram
no sete da paz mas sim que por suas boas ações assimilaram-se à Deus e
levaram-se como herdeiros do que pertence à Ogdóada, pois atenderam à
visão pura da contemplação insaciável.9
A partir deste simbolismo místico do número oito os antigos cristãos determinaram o lugar na terra em que se celebraria este mistério, aquele “ ínfimo lugar cheio de graça” , o batistério e a piscina batismal. Edificaram os batistérios preferentemente em planta octogonal e rodearam a piscina de água vivificadora com uma balaustrada octogonal. Conserva-se uma cópia de uma inscrição desaparecida de Ambrósio, efetuada para o Batistério de Santa Tecla em Mediolano. Apresentamos a versão métrica:
Com oito nichos se erige o templo para o divino ofício,
sua pia é octogonal, digna de tal quefazer sagrado.
No oito místico deverá criar a casa de nosso batismo,
pois nele se brinda a salvação eterna ao povo inteiro
pela luz do Cristo ressuscitado, que fez saltar os ferrolhos da morte
e liberou a todos os mortos da cripta,
redimiu aos pecadores penitentes da mácula da culpa,
purificando-os na água desta fonte cristalina.10
No verso final Ambrósio se expressa com umas palavras que apontam para o sentido mais profundo da paradoxa mística que se produz no mistério do batismo: “nam quid divinus isto, ut puncto exiguo culpa cadat populi” :
Acaso pode Deus obrar algo mais sublime
que em um lugar tão ínfimo resolver a culpa dos povos?
O que segue está baseado em F. J. Dölger, “Zur Symbolik des altchristlichen Taufhauses. Das Oktogon und die Symbolik der Achtzahl”, em “Antike und Christentum” 4 (1934), pp. 153-187. ↩
Teón de Esmirna, “Expositio rerum mathematicum” (ed. Hiller, p.105, 12). ↩
Excertos de Teodoto 80, I. ↩
Clemente de Alexandria, ((Stromata Purificação|“Stromata” IV, cap.25,160 ↩
“Selecta in Psalmos” (Lommatzscch XI, p.359 s.), vide também H.Rahner, “Tauffe und geistliches Leben bei Origenes” , em “ Zitschrift für Aszese und Mystik 7 (1932), pp 205-223. ↩
“Glaphyra in Exodum 2” (PG 69, 441 BC). ↩
“Instructio psalmorum 14” (CSEL 22, p. 12, 24). ↩
“Epistula 55, 9, 13, 15.” Outros tantos textos em F. J. Dölger, “Theologisches Wörterbuch, op. cit.,” pp. 165 ss. ↩
Texto latino em F. J. Dölger, “ Theologisches Wörterbuch, op.cit., ” pp.155 junto com uma tradução em prosa completa. ↩