Merton Culto Espiritual

Thomas Merton — Ascensão para a Verdade

CAPÍTULO XI — “VOSSO CULTO ESPIRITUAL”

S. Paulo escreveu aos cristãos de Roma exortando-os, como fez com todas as igrejas, a praticar o ascetismo. Isto lhes era necessário, para que vivessem a sua vocação. A renúncia a si mesmo é a característica dos que seguem a Cristo, porque o sinal do cristão é o sinal da cruz. Incorporados a Cristo pelo batismo, devemos crescer em boas obras, cujo princípio é o Espírito, o Espírito de nossa adoção como filhos de Deus. “Os que são impelidos pelo Espírito de Deus, diz S. Paulo, são filhos de Deus. Se viveis conforme a carne, morrereis. Mas se pelo Espírito mortificais os atos da carne, vivereis” E assim acrescenta o Apóstolo : “Exorto-vos, irmãos, a oferecer vossos corpos como um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, vosso culto espiritual”.

Que significa este sacrifício dos nossos corpos a Deus? Os cristãos não se atiram dentro de vulcões, como os Aztecas. Que sacrifício este? S. Tomás de Aquino esclareceu a teologia de S. Paulo. Podemos sacrificar nossos corpos a Deus aceitando o martírio, isto é, uma morte violenta infligida por causa da fé. Podemos sacrificar o corpo a Deus também pelo jejum, a abstinência e outras obras ascéticas. Mas não podemos, a título de renúncia, destruir inconsideradamente a saúde do corpo. Isso nos incapacitaria para o terceiro modo de sacrificar nossos corpos a Deus, isto é, em boas obras e no culto. S. Tomás discute as qualidades deste sacrifício, que deve ser guiado pela fé e a pura intenção, constituindo, sobretudo, um “culto espiritual”.

A razão traz consigo a decência e a ordem. S. Tomás cita outro princípio de S. Paulo: “Tudo se faça entre vós com decência e ordem”. A nossa ascese torna-se espiritual, ordenada e decente, quando as ações exteriores se ordenam às virtudes interiores e todas juntas se dirigem ao crescimento da vida sobrenatural de fé, esperança e caridade, nas almas. Os atos exteriores de mortificação e oração são meios para um fim espiritual, e não fins em si mesmos. Ora, o uso racional dos meios que levam a certo fim exige neles proporção ao fim. Como bem observa S. Tomás, com equilíbrio e bom senso aristotélico, “um médico tenta dar ao paciente a saúde que pode, mas não todos os remédios que conhece: porque ele só prescreve o remédio de que o doente parece precisar para a cura”. Um homem que toma remédio não por estar doente mas por um “complexo de compulsão” pelo remédio, é um hipocondríaco. Há também hipocondríacos espirituais que tomam remédios desnecessários e ao mesmo tempo deixam de aceitar as penitências que realmente lhes fariam bem, as únicas que exigem disciplina da sua vontade e razão. A verdadeira medida da ascese, diz S. Tomás, é a caridade. A renúncia só é a marca do cristão por ser a predisposição negativa para a caridade que é a única a nos dar a conhecer se pertencemos ou não ao Cristo. Se temos de renegar-nos a nós mesmos, é que, na prática, o amor que concentramos em nós é um amor roubado a Deus e aos outros homens. O amor só vive pela doação. Quando furta e é furtado, ele morre, porque deixa de ser livre.

S. João da Cruz repete o ensino de S. Paulo e S. Tomás, em outro capítulo da Noite Escura da Alma, onde descreve aquela gula pela penitência exterior, que ele considera uma imperfeição de “principiantes”. Chega mesmo a dizer que esta forma de ascetismo “não é” melhor do que a penitência dos animais”.

Este termo aparentemente humilhante tem para S. João um sentido preciso. Que “animais”? Lembremo-nos da distinção paulina entre o “homem animal” (animalis homo) que não entende as coisa de Deus” e o “homem espiritual que julga de todas as coisas”. Eis a exegese que S. João faz do texto: “Por homem animal entende-se quem só usa dos sentidos: por espiritual, o que não é preso nem guiado por eles”. É a interpretação tradicional da passagem.

Avidez por mortificações exteriores é uma sorte de sensualidade às avessas. Leva o penitente a punir sua carne pelo prazer destes exercícios. Seria, entretanto, ignorância da psicologia religiosa rotular de “masoquismo” todas estas manifestações de entusiasmo religioso. Devem-se distinguir cuidadosamente os excessos de uma alma psicologicamente sadia e as aberrações de um neurótico. S. João não fala duma doença, mental, mas de uma imperfeição espiritual. É preciso dizer imediatamente que ninguém de saúde acha prazer no sofrimento como tal. Um amor mórbido pelo sofrimento em si mesmo é sinal de neurose. O santo fala não de neuróticos mas de atletas. O prazer que esses homens tiram de seus jejuns e penitências não lhes vem da pena que inflingem ao corpo, mas do sentimento de fazerem coisas objetivamente penosas, sem, no entanto, sofrerem tanto quanto se poderia esperar. É mais a deliciosa experiência de ter superado a dôr pela coragem e a força moral. Longe de ser neurótico, este instinto natural é muito sadio. É bom para o homem tirar deleite da sua força. Se a maioria dos homens não sentisse prazer em vencer os obstáculos, seria tão deprimente atacá-los, que provavelmente desistiriam de enfrentá-los. Apesar disso, a maior fortaleza é aquela em que vencemos os obstáculos sem nenhum sentimento de satisfação. O homem mais bravo não é o que não sente medo, mas o que o supera e assim pode avançar friamente em presença do terror.

Mas se é sadio o deleite proveniente de força moral, o seu abuso é uma imperfeição moral. A finalidade da mortificação é libertar o espírito para torná-lo plástico nas mãos de Deus. Quem concede excessiva atenção aos exercícios penitenciais por eles mesmos, acaba preocupado só consigo. Ao invés de sair de si mesmo, aprisiona o espírito no labirinto da vontade própria e da ilusão.

Ora, o segredo do desprendimento consiste, como vimos, em agir sem ceder aos impulsos da fantasia, ao bel-prazer, seguindo a razão iluminada pela fé, seja ou não seja do nosso gosto o caminho que ela nos traça. Para os membros das ordens religiosas o caminho é o da obediência.

Eis como explica S. João a imperfeição a que dá o nome de “gula espiritual”. Primeiro, qual é a essência desta desordem? Ela consiste em seguir a atração “da doçura e do prazer que encontram nos exercícios (penitenciais) e procurar mais a suavidade espiritual do que a pureza e a discreção espirituais, que é o que Deus olha e aceita na jornada espiritual”

O leitor precisa de ser posto ao par das explicações que a palavra “discreção”, tem na ascética cristã.

“Além das imperfeições em que essa procura de suavidade os faz cair, a sua gula espiritual impele-os a ir cada vez mais longe, e assim excedem os limites da moderação dentro dos quais se adquirem as virtudes e em que elas consistem. Pois algumas das pessoas, atraídas pelo prazer que nisso encontram, matam-se com penitências e outras se enfraquecem com jejuns, fazendo mais do que a sua fraqueza pode suportar, sem o conselho de alguém, tratando mesmo de evitar aqueles aos quais deviam obedecer nesses assuntos. Alguns até ousam fazer as coisas apesar de lhes ter sido mandado o contrário”.

A situação é daquelas que quem já viveu num mosteiro fervoroso reconhecerá facilmente. Deve-se, aliás, dizer que é melhor que os monges sejam animados a fazer mais do que podem. A paixão que leva os homens a assumir coisas duras e aparentemente heróicas, fornece boa matéria prima para a santidade. Com boa direção, é possível fazer alguma coisa de tais homens. Mas que fazer com gente que já decidiu de antemão que todo obstáculo é insuperável? Eles transformam os mosteiros em hospitais, e seus diretores espirituais devem ficar contentes se conseguem levá-los a guardar os jejuns da Igreja e a dizer as suas orações de obrigação. Voltando a S. João e a seus atletas espirituais, vemos o místico carmelita demonstrar mais uma vez claramente o papel da razão como pedra angular da sua ascética:

“Estas pessoas são mais imperfeitas e faltas de razão, pois elas colocam a penitência corporal acima da submissão e da obediência, que é a penitência da razão e discreção, e por isto um sacrifício mais agradável a Deus do que qualquer outro. (Seu apego à penitência corporal) não é mais do que a penitência dos animais, à qual são atraídas, exatamente como os animais, pelo prazer e o desejo que aí encontram. Desde que todos os extremos são pecaminosos e que, assim procedendo estão fazendo a sua própria vontade, essas pessoas crescem no vício e não na virtude.”

É significativo que boa parte da linguagem mais forte usada por S. João é dirigida contra homens que desafiam a razão com um desordenado amor de penitência corporal. Mas o que há de mais importante sobre este parágrafo da “Noite Escura” é que ele estabelece’ o princípio fundamental a que já aludimos, critério da verdadeira discreção.

O progresso ou a morte da vida espiritual depende cia clareza com que se vêm e julgam os motivos dos atos morais. Usando um termo canonizado pela tradição ascética, o primeiro passo para a santidade é o conhecimento (gnosis) de si mesmo. A função da razão é julgar desses motivos, sondar a pureza de intenção e avaliar os objetos do desejo e todas as circunstâncias que acompanham a nossa atividade moral. Mas esta obra da razão é dificultada pelo hábito de agir por movimentos instintivos da paixão e do desejo.

Ora, os impulsos de desejo que apresentam o maior problema na vida ascética não são aqueles que tendem ao mal. Pelo contrário, a mais importante tarefa da razão, na vida espiritual, é desmascarar os impulsos desordenados que parecem à primeira vista espirituais e tendentes ao bem mais alto. A razão do malogro de muitos homens piedosos é que eles praticam o mal para a glória de Deus.

A aparente crueldade de S. João da Cruz consiste em que ele dirige a implacável luz de sua inteligência purificada sobre objetos e desejos que dão a impressão de pertencer à própria essência da santidade. E ele os condena a todos. Não que sejam todos maus. Mas o simples fato de não serem assás bons significa que não são dignos do nosso desejo. Devemos deixá-los. O asceta renuncia não só a coisas boas do mundo, mas até a alguns dos mais elevados dons de Deus. Não que se deva formalmente recusar um dom de Deus. Devemos, porém, ter o cuidado de receber de tal modo as suas dádivas extraordinárias, que o nosso desejo se concentre no Doador e não no presente.

Mas os prazeres da vida interior são tão grandes e puros, acham-se tão acima das cruas alegrias dos sentidos, que exercem terrível atração sobre as almas. A lembrança que deixam e a esperança da sua recaptura comovem o homem em suas profundezas e quase o rompem de desejo. Ele será capaz de realizar as façanhas mais árduas, se espera que isso lhe devolva dois dedos da alegria que um dia saboreou no que lhe pareceu ser uma visão de Deus. Mas S. João da Cruz lhe dirá que esses impulsos devem ser degolados com a espada da razão, e que o caminho de Deus é um caminho de renúncia, sem refrigério nem prazer, onde não se procura a luz mas a fé, até que, enfim, possamos andar totalmenta às escuras, no silêncio e na noite.

É por isto que algumas das máximas do santo esfriam o entusiasmo de contemplativos imaturos. Serão realmente do autor da Viva Flama do Amor?

“Entra em combinação com a tua razão para fazer o que ela te aconselha no caminho para Deus, e ela te será mais útil do que todas as obras que fizeste sem ela e todos os prazeres espirituais que procuraste.

Abençoado é aquele que põe de lado o seu prazer e inclinação e olha as coisas segundo a razão e a justiça, afim de realizá-las.

Quem age segundo a razão é como quem come unr alimento substancial, e quem é movido pelo desejo da sua vontade é como quem come um fruto sensaborão.”

Outra máxima um tanto curiosa, mostra um novo aspecto do assunto, lembrando a doutrina que os leitores costumam logo associar a S. João da Cruz: a da oração passiva e da luz infusa e do amor do Espírito Santo. Adverte esta máxima que, às vezes, a alma é movida passivamente por impulsos espirituais procedentes de outro:

“Considera que teu anjo da guarda nem sempre move o teu desejo a agir embora ele sempre ilumine a razão. Pelo que não te detenhas a desejar antes de realizar uma ação virtuosa, pois a razão e o entendimento te bastam”.

S. João pensava, talvez, nos Quietistas que acreditavam que os praticantes da oração espiritual não deviam jamais realizar qualquer ato de virtude sem sentir-se positivamente impelidos por um impulso interior de Deus.

Este é um dos poucos lugares em que ele se refere à mediação do» anjos em nossa vida mística, aspecto muito sublinhado pelo Pseudo-Dionísio. Em todo caso, ele fala aqui definidamente de mística. A razão não desempenha papel ativo na experiência mística como tal. A contemplação é mística, estritamente falando, na medida em que as nossas faculdades são movidas passivamente por especiais inspirações de Deus. Há um nível da oração em que as faculdades não são totalmente absorvidas em Deus. Mas quando a vontade e a razão podem ainda agir por própria iniciativa, mesmo se em conjunção com alguns movimentos passivos recebidos de Deus, a nossa contemplação é menos pura.

Há, contudo, uma continuidade essencial entre esses dois níveis de atividade espiritual. A doutrina de S. João neste ponto é também baseada no ensino de S. Tomás. Trata-se do princípio tomístico que se reflete na máxima acima citada. A vida espiritual do cristão é uma ascensão ordenada para a plenitude. Do princípio ao fim dessa subida, o homem é movido, iluminado, robustecido e elevado pela ação de Deus. No começo, é pela instrumentalidade da razão, que Deus age, iluminada pela graça e dirigida pelas virtudes. Mais tarde, Deus move o espírito do homem, de modo mais direto, através das inspirações especiais que os sete Dons do Espírito nos dispõem a receber. Mas o fim é um só, quer seja a razão, quer seja a ação direta de Deus que nos mova, e uma só a obra, pois é sempre Deus que conduz à divina união o espírito do homem, pela perfeição da fé, da esperança e do amor.